Estive a pensar na vida. Parece-me que esse acometimento – o pensar – funciona como uma câmera de vigilância, sempre ligado, como que buscando por cenas para nas quais aguçar o seu foco; esse, tão certeiro quanto as flechas douradas de Apolo. A diferença é que isso acontece sem que eu procure diretamente, simplesmente está ali, quando vejo, estou pensando. É uma doença? Seria um sinal de loucura?

Quer continuar a leitura? Já te esclareço: a viagem será longa! Se haverá um começo, um meio e um fim, não posso prometer. Mas posso tentar!

Vamos ao assunto. Há uns quinze dias, quando eu visitava a casa de parentes, algo me ocorreu – e foi justamente quando na televisão passava um programa esquisito (depois  te conto do que se tratava… sossega-te, só por um instante!). Interessantemente, ou coincidentemente, hoje, enquanto lia um belo livro (que livro!), a saber Memórias Póstumas de Brás Cubas, foi como se tais dias se fizessem reduzidos a ontem. Não pareciam tão distante. Pois bem… Na ocasião do livro, Quincas Borba e Brás Cubas filosofavam a respeito de dois cães que brigavam por um osso. Analisavam cada detalhe daquele comportamento canino. Naquele instante, enquanto eu lia, a câmera que há em mim – e provavelmente em você, leitor – focou pontos distintos da vida dos seres vivos. Em milésimos de segundos, minha formação em Ciências Biológicas levou os meus pensamentos às savanas africanas (vi leões brigando sabe-se lá pelo que, zebras disputando um parceiro sexual, hipopótamos demarcando violentamente um território num rio de águas lamacentas), em seguida, já em outro lugar, gorilas aprestavam suas brutalidades numa pugna, enquanto aves disputavam um território passageiro – brigas ferrenhas!; quando não, estava eu em uma loja de aquários: o famoso peixe brigão (Betta splendens) estava a encarar-se frente ao espelho, enfrentando a si próprio. Passou. Voltei a mim mesmo, cessou-se a viagem. Mas segui pensando: por que de tanta disputa?

 

Luta de animais.png

 

Biologando, vale dizer algo. O comportamento agressivo desses animais ocorre por diversos motivos. Geralmente são mais acentuados no período de acasalamento – época reprodutiva. Principalmente em machos, isso é destacadamente elevado. Nesse período, o hormônio testosterona – ou derivados – encontra-se em doses altíssimas na circulação desses seres, mas não apenas esse; outros hormônios como o GnRH2*, o cortisol e derivados, a adrenalina ocasionalmente, etc, também atuam promovendo um comportamento de competitividade, necessário para a manutenção da vida animal. Esses comportamentos sociais modulados por hormônios não são obras do desejo, pelo contrário, são selecionados pela natureza, e isso leva milhares de anos – mas é decisivo para a dinâmica de populações.

Sabendo disso, astutamente, o Homo sapiens – vulgo humano – leva a cabo há muitos e muitos anos certas ideias absurdas. Não! ridículas! Com certeza você já ouviu falar de rinhas de animais. Aquela cena horrorosa em que dentro de um cercado, ou de grades, dois representantes vertebrados disputam por suas vidas em troca de um orgulho descabido de seres ditos sapiens. Ao ver tal cena, como uma briga de galos, um biólogo pensaria em algumas possibilidades para explicar o porquê das brigas entre os animais: por questões que já falei anteriormente, eles se enfrentam ferozmente; além disso, eles são machos, territorialistas e altamente agressivos. Como não brigariam? Mais uma possibilidade: além desses fatores, eles são criados com o mínimo contato com outros animais, isso quando não são mantidos isolados em pequenos espaços (aguçando ainda mais esse comportamento agressivo). Para fechar a estupidez com chave de ouro, seus instintos são reforçados com adestramentos de luta, alimentação altamente energética e, porque não, maus tratos físicos e psicológicos (sim, traumas psicológicos ajudam a manter a agressividade sempre à espreita). Com tudo isso preparado, a seleção natural humana fez a sua péssima lição de casa. Instaura-se o caos para o deleite humano. Lamentavelmente, é como dito em um site: “A ‘luta’ só termina quando um dos animais morre ou o dono do pet desiste. Em combates profissionais, há o ‘Till Death do Us Part’ (até que a morte nos separe). Nesse combate a morte de um dos animais sinaliza o fim do sofrimento”

FONTE: https://img.r7.com/images/2013/01/22/14_48_22_742_file?dimensions=660×440&no_crop=true

Pergunto-te, caro leitor: sabendo que a rinha de animais é considerada um crime previsto por lei, por que humanos seguem fazendo isso? Seria falta de inteligência? Certamente! Ainda mais curioso, sabendo-se que os próprios humanos (obviamente) criaram essa lei, na qual diz no Art. 1º que “fica proibido em todo o território nacional, realizar ou promover “brigas de galo” ou quaisquer outras lutas entre animais da mesma espécie ou de espécies diferentes“, como podem ser vítimas do próprio laço?

Qual a lógica de se colocar dois animais dentro de uma jaula para travarem uma batalha sangrenta sem a menor necessidade biológica? Por que, numa vida na qual substrato energético vale ouro, dois seres brigariam – valendo-lhes a própria vida – sem que nada  racional fosse angariado com isso? Brigam pelo mero prazer de sofrer? Ossos quebrados, pele rasgada, face deformada, risco de morte… Tudo isso por prazer? Pior, seria isso tudo pelo prazer de quem assiste? É verdade isso ou o louco sou eu que não tenho a capacidade de enxergar diversão e entretenimento em tal mostra de mediocridade? Ops! Você pensa que continuo falando da horrenda briga de galos, não é? Mas não! Eu voltei ao início do texto, e me esqueci de te avisar. Aquele programa de televisão, ao qual eu assitia na casa dos meus parentes, era de lutas. Lutas humanas. MMA (do inglês: mixed martial arts). Seres humanos se acham os mais inteligentes do Reino Animal, os únicos capazes de pensar e de ter consciência reflexiva (dizem). Mas vivem como se estivessem na savana africana, disputando um lugar ao sol da evolução. “Intrigantemente” não é isso que se passa; fazem o que fazem porque querem e, claro, porque os outros humanos animais acham isso legal (em todos os sentidos). O mais curioso é que a expressão facial de quem assistia à luta naquele dia era exatamente como a dos três homens na foto acima – esperavam pelo que sairiam mais ferido.

Nessas brigas de galos está cada vez mais difícil discernir qual deles não tem consciência reflexiva, se o galináceo ou o dito sapiens. Ou será eu, que ainda não me convenci de que isso não é ridículo?

 

 

#VocêJáParouParaPensar?

 

*Gonadotropin release hormone – type2 (Hormônio liberador de gonadotrofinas – tipo 2): responsável por modular o comportamento reprodutivo em vertebrados.

NOTA: o desenho dos galos brigando – na imagem de capa – foi retirado daqui.

 

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos