PARTE I – Um intervalo de tempo

Confesso que tentei resistir em escrever estas palavras, porém, não pareço haver aplicado resistência suficiente nessa causa. A Verdade é que certas coisas das quais deveriam ser óbvias a nós, mas que são pouco compreendidas (talvez por falta de questionamento próprio), chamam-me a atenção. Não por serem óbvias, mas porque, mesmo óbvias, são ignoradas.

Eu considero que a nossa existência material pode ser metaforizada a partir de uma ampulheta, a qual uma vez virada tem todo o seu conteúdo na parte superior, e o seu esvaziamento inicia-se logo após a fecundação dos gametas.

(Primeiramente, cabe aqui uma definição: segundo o dicionário, ampulheta é artefato de medir o tempo constituído por um recipiente originalmente de vidro, dividido em dois compartimentos simétricos, geralmente cônicos, que se comunicam pelo vértice, através do qual cai, aos poucos, certa quantidade de areia muito fina (ou água ou mercúrio), e cujo esvaziamento total da parte superior equivale a um período de tempo predeterminado).

#VocêJáParouParaPensar? O que poucos percebem é que a nossa existência desde sempre representa uma luta que tenta retardar o encontro inevitável com a morte. Curiosamente, nada assusta tanto as pessoas quanto a ideia do inevitável: todos morreremos; e nessa assombração reside muitos sonhos, muitas metas e, por fim, muitos desesperos. Contudo, eu tenho um certo desvio de conceito quanto à morte. Esta, que nos espreita à janela, é bem paciente; sabe que seu encontro conosco já está marcado e nada há que o impeça de acontecer; portanto, embora possa ser adiado, jamais será cancelado. Onde a morte existe o tempo é diferente – às vezes nulo -, enquanto que para nós ele é feroz, veloz, fugaz e atroz. O Homo sapiens é a única espécie que sofre angústias pela morte, pois somente ele sabe que morrerá. Pombos, pardais, cães e gatos, por exemplo, jamais preocupam-se com o dia em que morrerão, mais lhes vale garantir a sobrevivência do presente. Acho que quando disseram “não presumas o dia de amanhã, pois não sabes o que produzirá o dia“, diziam isso para alguma espécie não-sapiens… ou entendemos errado a sugestão.

Corremos para um lado, fugimos para o outro; subimos montanhas, descemos vales; “amamos” as coisas, odiamos as pessoas; cuidamos da vil aparência e esquecemos da consciência; mas, no final das contas, há de cair o último grão de areia; e nessa hora nada haverá que se fazer, pois a ampulheta só é virada uma vez – não existe aquela “vida eterna” na qual nossos corpos participarão do banquete infinito na terra das luzes. A Vida acontece em nós no intervalo de tempo entre o primeiro e o último grão de areia.

 

PARTE II – Separação e culpa

A separação refere-se àquele que “se vai” imediatamente após o último grão de areia cair. Quando ocorre a separação, geralmente, muitas pessoas choram [e o fazem de acordo com o grau da afinidade vivida], enquanto que outras, além de chorarem, refletem sobre o que a vida representa. Considero-me parcialmente neste grupo – não sou de chorar pela morte – talvez eu não seja afetivo o suficiente (duvido), ou, talvez eu reflita demais (mais provável).

Sempre acreditei que as nossas lágrimas no dia de um velório são justificáveis apenas se elas representarem um “queria que você ficasse mais um pouco comigo, fomos tão Humanos juntos”. Dói-me ver uma pessoa chorando porque “gostaria de haver conversado mais”, ou “porque não te dei tanto carinho e atenção quanto poderia?”, ou “fica mais um pouco para eu fazer aquele chocolate quente que você sempre me pediu mas que eu nunca tive tempo”. A ampulheta só é virada uma vez.

Por favor, por favor, POR FAVOR! Não faça assim! Não deixe para amar quando o amor não fizer mais sentido e não puder ser expresso. Não deixe para beijar quando o corpo estiver frio. Não espere pelo dia em que a mão não puder se mexer para apertá-la intensamente. Não faça isso! As dores que poderá sentir serão profundas, a amargura e o vazio ser-te-ão tão presentes quanto a certeza de que não dá mais: o último grão já caiu. O último grão… já caiu? Não alimente aquilo que, num silêncio de crisálida, virará uma culpa que voará pela sua cabeça.

 

PARTE III – A “traição” da ampulheta

Além da separação culposa, existe aquela que evoca os nossos mais profundos sentimentos, em que nossas mais profundas sensações são testadas. Não entendemos se o que sentimos é o que sentimos. Tal separação acontece quando a ampulheta tem menos areia do que imaginávamos que tivesse, por isso, o último grão cai em um curto intervalo de tempo – muito menor que o esperado. A ampulheta acaba de nos trair – ou, sendo mais realista, fomos traídos pela esperança do “amanhã”. Não fomos avisados de sua brevidade – ou não demos ouvido à sua voz, que nos diz o quanto devemos ser intensamente Humanos, o tempo todo.

Veja, se ampulheta marca o período em que a Vida será expressa em nós, e a Vida está em nós, logo, nós traímos a nós mesmos. Acreditamos que o tempo é igual para todos. Esperamos o dia seguinte para perceber que o anterior foi curto demais quando, na verdade, já nos dizia a sabedoria: “vigiai pois não sabeis o dia nem a hora em que o ladrão há de vir”, ou, em outras palavras “viveis com prudência, pois não sabes quando cairá o último grão”.

Ampulhetas vizinhas

Ao lado de minha antiga residência, vivia um casal e sua filha. O esposo, sempre sorrindo e tocando o seu violão, a esposa, com uma voz suave e aveludada qual considero impossível de não ultrapassar as barreiras do espírito e alegrar os céus, cantava louvores ao seu Deus. A criança, por sua vez, houvera herdado o dom de cantar e de tocar. Acho que não preciso dizer o que acontecia quando os três decidiam reunir-se num só momento. Uma família, um sentimento, uma existência social, mas três ampulhetas trabalhando independentes uma da outra. Hoje, uma dessas ampulhetas não “trabalha” mais – caiu-se o último grão. O violão deixou de tocar e com ele um sorriso a menos para iluminar aos que andam sem direção. O que sobrou foi um par de corações juvenis, cheios de força, mas com um ponto de interrogação dizendo “mas como assim?”, “já acabou?”. O Esposo faleceu uma semana após dar entrada no hospital, foi algo rápido, que dava a sensação de irreal, deixando o imaginário às vezes confuso. De toda essa história, o que assuste os humanos é o fato de ter sido tão de repente – ontem um sorriso, hoje um ente.

Para mostrar mais uma vez que ampulheta não tem nenhum tipo de aviso prévio, no dia 18 de agosto de 2016, outra dessas ampulhetas parou repentinamente. Desta vez, na Bahia. O último grão que anunciara o encontro deu-se pela noite, na calada, no escuro de um quarto, debaixo dos cobertores. Curiosamente, apesar de inesperado, o encontro respeitou a um pedido da outra parte. Esta, minha avó, dizia sempre que “não queria dar trabalho a ninguém”. Assim foi: morreu enquanto dormia. O meu irmão mais velho, Rodrigo, escreveu sobre ela tornando desnecessária qualquer elucubração sobre a pessoa da minha avó:

Hoje recebi uma notícia devastadora. Minha avó, mãe do meu pai, faleceu em sua casa, enquanto dormia. Ela, que enfrentou todas as dificuldades que um ser humano pode enfrentar, passou por cima do machismo, da pobreza, do desamparo, da fome e uma venceu. Nunca leu um livro sobre a história do seu povo, nunca frequentou uma universidade, aprendeu a escrever o próprio nome tardiamente, sempre foi um dos meus exemplos do combatividade e perseverança. Criou 8 filhos sozinha, numa sociedade que a desprezava por ser mãe solteira, mas não por opção, mas porque cansou de agredida em casa. Conheço poucas pessoas que foram tão ferozmente agredida por nossa sociedade misógina, machista, racista, mas ela venceu. Depois de uma vida inteira de batalha, pôde ver seus filhos, filha e netos crescerem, tornarem-se independentes, construírem famílias, concluir um mestrado, abrirem suas empresas, mas tudo isso porque ela resistiu. Foi abençoada com uma morte tranquila, em sua cama, na paz do sono profundo. Não tive a oportunidade de lhe dizer isso pessoalmente, mas sou profundamente marcado por essa gigante que caminhou na terra. A humanidade perdeu hoje uma das suas melhores representantes

(por Rodrigo Teles Medrado, 18/08/2016).

Não quero aqui concluir nada, afinal, a ideia nunca foi essa. Mas quero que fique uma reflexão para você que me está lendo. Desejo que você possa enxergar a sua existência ao exemplo de uma ampulheta e, a partir daí, aceitar o encontro, buscando ferramentas para aturar enquanto ele não acontece. Os grãos estão caindo, um após o outro, sem parar. Você porventura sabe quanto tempo ainda resta para o último? Podemos ser Humanos aqui e agora. O inevitável encontro acontecerá, num intervalo de tempo que nos é desconhecido. Não criemos razões de culpa, também que não seja fomentada nenhuma auto-traição. Vivamos aqui, Humanamente, agora!

 

#VocêJáParouParaPensar?

 

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

 


A imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.