Se você tem a sensação de que o Sistema no qual vivemos exerce algum tipo de pressão sobre os seus pensamentos e que sobre eles são impostos certos limites, saiba, você é uma pessoa “normal”. O grande mal da sociedade é o de negligenciar as armadilhas socioculturais e, mesmo atrás das telas que buscam impedir o nosso livre pensar, acreditar que temos pleno domínio daquilo que pensamos. Se acreditar ter um pensamento livre de influências externas à nossa própria mente já é no mínimo ingênuo, supor que sabemos de tudo é pelo menos estúpido.

A forma como a humanidade tem se desenvolvido na maior parte do tempo é um tanto quanto paradoxal. O gênero humano evoluiu por milhares de anos atribuindo a si valores supremos (“somos as criaturas mais poderosas e inteligentes, temos domínio sobre todos os seres vivos”) e, ao mesmo tempo, conferindo autoridade a entidades divinas. Seja em religiões mais tradicionais, ou nas menos conhecidas, é comum a presença de uma entidade para a qual volta-se toda a atenção. O pensamento coletivo tem sido, em grande medida, fundamentado no compartilhamento de mitos e crenças em deuses. Esses compartilhamentos estão diretamente ligados ao modo como ocorreu e ocorre a construção do pensamento humano no âmbito social. A criação de uma identidade religiosa, nacional ou familiar é capaz de incutir em seus membros a falsa ideia de que o pensamento coletivo é sempre o verdadeiro. Com o tempo, simplesmente reproduzimos conceitos que foram consagrados pelo uso, enquanto acreditamos fielmente que nós, e somente nós (enquanto indivíduos) somos autores de nossas próprias convicções. Olhar para tudo isso e fazer um trabalho desconstrutivo é realmente desconcertante.

Poucos têm a coragem ou o desejo de abdicar de suas amarras reconfortantes e buscar a compreensão da vida exatamente (ou o mais realista possível) como ela é: sem deuses, sem pós-morte, sem fantasias.

Particularmente, eu gostaria de ser mais livre do que suponho ser. Ter mais liberdade de poder aprender para ser alguém, e não ter que direcionar boa parte da minha atual existência para ser um médico e continuar dedicando parte da minha existência futura para ser um médico residente e bem capacitado, e dedicar a outra parte restante para ter o que comer até cessar o metabolismo celular. Vale dizer que o que me causa mais espanto é observar que, para a grande maioria das pessoas, essa sucessão de eventos não apresenta nenhum problema, pelo contrário, pode fazer de mim uma pessoa “bem sucedida”. Como? Viver é só isso? Ser bem sucedido é fazer as coisas dessa forma? Bastaria, para ser alguém, vender o meu tempo de vida para ser um profissional e para ter o que comer?

Quando digo “a grande maioria das pessoas” não estou levando em consideração apenas a minha minúscula redoma de vidro – os meus familiares, amigos e outras pessoas que conheci nas últimas três décadas -, isso seria superficial demais. Algo mais aprofundado se faz necessário nessa análise. Uma boa sugestão é olhar para a História; entender os eventos que marcaram a humanidade e, mais recentemente, analisar as mídias de telecomunicação (principalmente as redes sociais) revelará mais evidentemente que a vida está mais pautada na alienação que na liberdade de pensamento. A humanidade, como está organizada, é injusta e irreversível! Não vejo a menor graça na vida que as mídia pregam por aí!

Em um determinado final de semana desse ano [2018], num ajuntamento de Homo sapiens de um mesmo círculo afetivo, tive um daqueles momentos de reflexão sobre a sociedade. De forma profunda ele me serviu para manter aceso o sinal de alerta de que as coisas não vão bem no mundo, ou, como dizia Hamlet, “há algo de podre no Reino da Dinamarca“. Na ocasião, como de costume, inúmeras mentes com um potencial intelectual existente optaram por silenciar seus pensamentos e entregarem-se aos famigerados programas televisivos de sábado e domingo. Aquele contato que tive com a TV e seus programas causaram-me uma espécie de “repulsa interior“. Para mim, é constrangedor o descaso que existe para com a vida, sobretudo na maneira como eles tratam os seres humanos na mídia… como corpos anencéfalos e como verdadeiras marionetes – e você acredita que eles ainda riem e aplaudem isso?

A capacidade do pensamento livre e crítico da realidade é definitivamente propalada por essas emissoras para o abismo da ignorância e manipulação das massas. As pessoas existem apenas para consumirem coisas (desde ideias, costumes, hábitos e produtos até a rasa crença de que somos donos absolutos de nossas próprias escolhas). Nunca se fala de se tornar um ser Humano – o público parece que, se sabe dessa possibilidade, não gosta nem um pouco dela!

Não bastasse a ação da mídia enquanto os olhos dos telespectadores estão diretamente voltados para tela, quando a TV é desligada as conversas beiram à imitação da baixeza de pensamentos. É como se os corpos funcionassem como reservatórios de alienação e ignorância. O egoísmo funciona como a principal moeda de troca entre a massa de humanos. Cada um quer uma vida linda e maravilhosa – mas só para si. Não vi em nenhum momento o “outro” ser incluso na equação da vida. Parece que nem existe o “outro” nessas comunidades. Isso me causa uma tristeza e estranheza muito grande! Não quero vender meu tempo de vida para acabar desse jeito. Acho esse um comportamento mordaz, insano e vil – um verdadeiro calabouço de desolação no qual não quero entrar.

Mesmo assim, depois de tudo que disse, não vejo uma razão se quer para desistir de lutar pelo bem e pelo próximo. Os fatos citados são atrocidades que, por incrível que pareça, podem servir de incentivo à mudança!

Dessa forma, uma sugestão interessante para notarmos que somos de fato influenciados pelo sistema para ter o pensamento cada vez mais limitado é o reconhecimento de nossa ignorância. Não sabemos tanto quanto acreditamos saber.

Na mais humilde e realista percepção, acredito que tornamos concretos os pensamentos da massa e atribuímos a eles uma realidade que funciona enquanto ele é compartilhado. Por muitos anos acreditou-se que os oceanos eram habitados por grandes monstros e que, ao chegar em sua “borda” os navios cairiam no abismo. Na medicina, acreditou-se por muitos séculos que os males sofridos pelas pessoas estavam diretamente relacionados com o ar, e que nele existia uma força vital responsável pela vida. Observe a foto de “médicos medievais”, em que eles utilizavam máscaras com projeções que pareciam longos bicos. Nesse longo bico colocavam ervas aromáticas, pois acreditavam que o que causava a peste negra era transmitido pelo ar (confiram aqui) – logo, o aroma das ervas ajudaria a dissipar o mal… você não faz ideia do poder que tem uma crença quando ela é compartilhada por várias mentes… ou faz?

Se esses exemplos estão longe demais da sua realidade, que tal falar de Brasil? Embora seja de uma herança histórica muito mais antiga, por muitos anos a elite brasileira acreditou que o trabalho braçal era uma forma desonrosa de atuação e que, portanto, deveria ser feito por escravos ou, no máximo, por serviçais assalariados (também considerados inferiores). A miscigenação também foi, durante muito tempo (e faz-se de conta que não é mais) considerada como motivo de muitas mortes na sociedade brasileira – como se essa “mistura” diminuísse a pureza da “raça suprema” (a saber, a europeia) -, até que descobriram que o culpado era o mosquito que transmitia a febre amarela. Por fim, sendo muito mais abrangente, não seria nada mal citar a bíblia nesse contexto, uma vez que o cristianismo é a religião predominante nesse país. Um livro escrito por humanos e para humanos, a Bíblia Sagrada contém muitas informações que não apresentam nenhuma evidência científica, mesmo assim insistem em dizer que Deus modelou o barro e surgiu a espécie humana.

Entender que o nosso pensamento não é tão livre quanto supomos pode nos dar condições de superar esses limites e buscar humildemente por uma clareza melhor de como nascem as ideias em nossas mentes. Falo disso em uma publicação um pouco mais antiga – vale a pena conferir. Nesse sentido, acho interessante falar um ponto que sempre ressurge nas conversas: minha relação com a igreja.

Desde que deixei de frequentar uma igreja e me assumi como alguém que não acredita em Deus – e, consequentemente, na Bíblia – é bem comum que levantem as possíveis causas desse afastamento. Entre elas, a que ocupa o pódio é sem dúvidas “foi depois que você começou a ler sobre filosofia que deixou de ir para a igreja?“. Quando muito, me perguntam se eu acho que as igrejas deveriam acabar (deixar de existir). Obviamente que a resposta para as duas perguntas é “Não!. Ler é algo de que sempre gostei, se fosse por leitura, teria deixado a igreja muito antes. E, não, de forma alguma as igrejas deveriam ser fechadas. Vejo que, apesar do teor de dominação e imposição ideológica que as igrejas apresentam, elas permitem que seus membros tenham o mínimo de contato com uma ética e normas de conduta que, minimamente, permitem o indivíduo tentar tratar melhor o próximo – ainda que seja na depreciável relação de troca (eu ajudo meu irmão porque Deus manda e, em troca, garanto a minha salvação).

Essas atitudes nem sempre são explícitas. Geralmente os crentes são levados a acreditar que isso não é necessariamente uma troca, uma vez que as partes envolvidas sequer são da mesma natureza. Resumidamente, acontece o seguinte: eu ofereço um pão ao necessitado, e Deus me dá um lugar no céu; mas, dizem os religiosos, isso não é uma troca… pois, de um lado, o necessitado é feito de átomos combinados. Do outro, o Deus é feito de imaginação e compartilhamento de ideias. Não se troca algo material com ou por algo imaterial. Não significa que igrejas são lugares horríveis e sombrios, eu nunca disse isso. Apenas ressalto que, se as igrejas não impedissem seus membros de pensarem por conta própria e enxergarem o mundo sem viseiras, sem imposições de dogmas e sem punições grotescas, seria sim um lugar interessante. Mas não precisa pensar muito para saber que se elas adotassem minhas sugestões, simplesmente deixariam de ser consideradas como necessárias para a maior parte de seus fieis. As pessoas querem mesmo um consolo fácil e rápido para suas dores, além de buscarem respostas prontas e simples para suas angústias existenciais. Ou seja, a igreja é um lugar perfeito para isso.

Assim, o saldo de observações preliminares acerca da dinâmica social revela que quanto mais certeza uma pessoa tem de um fato ou conhecimento compartilhado, e quanto mais direta e objetiva é essa certeza, menos ela se interessará por buscar novas descobertas. Uma vez que dá trabalho sair da zona de conforto e enfrentar seus próprios dogmas e questionar sua própria identidade, permanecer inerte e nutrir crenças que outrem nos disseram mostra-se como uma atitude muito mais econômica. Gastar energia com uma mudança pressupõe um reconhecimento de que não sabemos de tudo. Mas, se buscamos por pessoas que só repetem os fatos, quem nos dirá que estes fatos estão errados? Ainda, se esses fatos alimentam um Sistema que busca por mentes alienadas e pouco exigentes, até parece que alguém que se erguer para dizer que existe mais coisas além do céu e da terra do que pensa a nossa vã filosofia ficará impune. Será imediatamente considerado o louco da vez, sem direito a defesa e tachado como “o ser errado” e, por que não, “a ovelha perdida”.

Nem tudo que reluz é ouro. A imensa liberdade que as redes sociais colocou nas mãos de seus usuários fez com que eles acreditassem que seus mitos e crenças lhe conferiram o poder de discriminar e reprimir todos os demais que são diferentes. Vivemos a era da informação. Saber de cor os nomes de lugares, capitais de estados e datas importantes é coisa de enciclopédias. Uma simples googlada pode nos informar sobre quase tudo. A grande questão é saber o que fazer com essas informações. O Homo sapiens evoluiu lentamente sem precisar lidar com esse colossal volume de dados, enquanto as informações disponíveis simplesmente explodiram numa rede que desde a década de 1960 (com a internet) despejam mais e mais conteúdo de acesso público. O caldeirão de informações continua fervendo e algumas instituições e ideologias pegam uma colherada do caldo e criam seus próprios pratos – os mais famintos acabam se alimentando de qualquer coisa que tenha uma boa aparência e esteja quente. Às vezes a disenteria é inevitável. Carecemos de pessoas inteligentes que sabem observar e absorver informações criticamente e falar coisas coerentes.

Por fim, enquanto a humanidade não entender que essa liberdade de pensamento não é exatamente tão livre assim e, a partir disso, tentar ao menos reconhecer-se como uma criatura passiva de manipulações ideológicas, seguiremos sendo sapiens apenas na classificação da espécie. Mais uma vez digo: O grande mal da sociedade é o de negligenciar as armadilhas socioculturais e, mesmo atrás das telas que buscam impedir o nosso livre pensar, acreditar que temos pleno domínio daquilo que pensamos#VocêJáParouParaPensar?

 

Você já segue o Blog Devaneios Filosóficos? Aproveite e faça essa boa ação, siga o Blog e receba uma notificação sempre que um novo texto for publicado. Também, se gostar, siga e compartilhe a nossa página no Facebook.

 

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos