Compreender a subjetividade humana é uma tarefa que exige um elevado grau de imparcialidade, humildade e uma profunda análise de informações que, por sua vez, engloba uma série de grandes áreas do conhecimento. Por se tratar de um Blog, não deixarei este texto penosamente denso no que diz respeito à presença de inúmeros dados científicos. Ao invés disso, e com o objetivo de levantar questionamentos e expor uma alternativa de visão sobre o assunto, trarei alguns pontos importantes que poderão servir como uma sugestão para que você possa continuar uma reflexão aqui iniciada. Os textos do Blog Devaneios Filosóficos nunca servirão como fim, mas como meios e, sempre que possível, como ferramentas auxiliares à sua caminhada reflexiva.

Assim, como o título sugere, a ideia central desta publicação é dialogarmos sobre o que é uma vida sem Deus. Muito se fala de “uma vida debaixo da Graça divina“, ou, por exemplo, “como Deus pode mudar a sua vida“; entretanto, escolhi outro caminho, talvez na contramão, para levantar questionamentos que considero interessantes. Você já parou para pensar? Quais os fundamentos dos valores morais, sociais e individuais utilizados por uma pessoa que decidiu “abandonar” os “caminhos santos” e que descobriu, por exemplo, o ateísmo como “estilo de vida”? Ademais, você já se questionou e investigou cuidadosamente como o fator “crença em Deus” atua sobre a sociedade e quais seus impactos sobre a vida tanto individual quanto coletiva? Se esses apontamentos te chamaram a atenção, convido-te a prosseguir com a leitura que, de antemão, vos digo: é provocativa, analítica, crítica, longa (mas não cansativa) e sincera (mas não desrespeitosa). Digo também que será uma honra ler os seus comentários sobre este texto – críticas e apontamentos são essenciais para que possamos construir um conhecimento sólido. Dessa maneira, e sem mais delongas, se a leitura não é um enfado para você, siga em frente!

 

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A ideia de que há um Deus

Antropólogos e, especificamente, paleoantropólogos têm investido muito tempo e dedicado longos artigos científicos e livros ao entendimento da evolução do Homo sapiens. Durante décadas, estudos cada vez mais bem estruturados buscam informações que nos permitam compreender melhor quais os passos da espécie humana desde os nossos ancestrais até o presente momento, numa trajetória de aproximadamente 300 mil anos.

Entre os diversos fatores e características estudados, destaca-se o complexo mecanismo pelo qual a organização humana foi ganhando gradualmente uma solidez capaz de, em pleno Séc. XXI, apresentar-se numa configuração que permite a possível interação entre bilhões de sapiens sem que eles necessariamente ocupem o mesmo território geográfico e sócio-político. Nessa organização e evolução, o fator “crença” é um componente indispensável na análise de nosso desenvolvimento. E, claro, entre as crenças, a religiosa é de longe a de maior importância – uma vez que sintetiza o modo com que grandes grupos são capazes de cooperar, ainda que não se conheçam.

Cabe ressaltar que é academicamente aceito dizer que as diferentes culturas humanas mais antigas apresentaram um traço em comum, que foi a crença numa concepção não-humana de existência que fosse responsável pela criação e/ou manutenção de tudo que nos cerca. Com o passar do tempo ocorreram mudanças às vezes sutis, às vezes bruscas, nos formatos de contemplação e assimilação do divino. Hoje percebemos que não é universal a crença necessariamente em um deus, ou em uma divindade una que permeie essa concepção; entretanto, sabe-se que de uma maneira ou de outra a espécie humana tem buscado respaldo durante muitos anos em entidades abstratas no intuito de responder suas mais primitivas questões existenciais. Mitologias, crenças animistas, religiões xamânicas, tradições de crença poli ou monoteístas hoje são bastante conhecidas e coexistem no tempo e no espaço. Mas o que elas têm em comum que são capazes de mobilizar, unificar e sustentar tantos povos por tanto tempo? Para o texto não assumir dimensões ainda maiores, pautarei a fala no conceito de Deus dentro da crença judaico-cristã (sobretudo no cristianismo) e, por vezes (se necessário), falarei do islamismo.

Deus nasceu? Quando Deus nasceu? Quem o fez e de que Ele é feito? Antes de Sua existência, o que havia? […]

Essas certamente não são perguntas que apresentam respostas lógicas, uma vez que nenhum argumento inteligente seria capaz de respondê-las com clareza e honestidade. Provar a existência ou a ausência de Deus é algo ainda mais complexo – pensadores, filósofos, antropólogos e teólogos travam embates no decorrer de longos séculos, sem chegar a respostas consonantes. Cientistas e teólogos dificilmente compartilham de um mesmo ponto de visão, haja vista que um acordo nessa área é quase impossível.

Mesmo assim, apesar das inúmeras controvérsias e desencontros no meio acadêmico, é na vida prática que as coisas se mostram ainda mais nubladas. Mas cabe um adendo: são nubladas no que diz respeito às raízes mais profundas da crença, porém muito transparentes em relação à sua penetração e permanência no imaginário coletivo. As três religiões monoteístas mais difundidas atualmente – Cristianismo, Islamismo e Judaísmo (nessa ordem) – representam cerca de 51% da população mundial. Entre os seguidores dessas, os que declaram sua fé em Deus a partir do cristianismo, por exemplo, somam cerca de 2,18 bilhões de fiéis, e é comum a existência de uma ideia que traz à tona, ainda que de forma tímida, um dos porquês da persistência da crença em um Deus gerador e mantenedor de todas as coisas: “Deus é um mistério, a ‘natureza humana’ é incapaz de decifrar e compreender a sua existência“. Uma passagem bíblica – retirada do Antigo Testamento e traduzida por João Ferreira de Almeida – ilustra de forma interessante um possível diálogo entre Jó e Deus. Após uma sequência de perguntas e argumentações feitas por Deus a Jó – no capítulo anterior -, Ele prossegue a conversa:

Respondeu mais o Senhor a Jó, dizendo:
Porventura o contender contra o Todo-Poderoso é sabedoria? Quem argui assim a Deus, responda por isso.
Então Jó respondeu ao Senhor, dizendo:
Eis que sou vil; que te responderia eu? A minha mão ponho à boca.
Uma vez tenho falado, e não replicarei; ou ainda duas vezes, porém não prosseguirei.
Então o Senhor respondeu a Jó de um redemoinho, dizendo:
Cinge agora os teus lombos como homem; eu te perguntarei, e tu me explicarás.
Porventura também tornarás tu vão o meu juízo, ou tu me condenarás, para te justificares?
Ou tens braço como Deus, ou podes trovejar com voz como ele o faz?
Orna-te, pois, de excelência e alteza; e veste-te de majestade e de glória.
(Jó 40: 1-10)

Observe que o posicionamento de Deus é de total poderio sobre tudo e sobre todos, uma vez que Ele seria capaz de responder grandes questões da vida; ao passo que Jó, um homem “vil”, nada sabe – assumindo, em ato de respeito e submissão, que concordará com tudo que Deus disser. Deus é tudo ao mesmo tempo. Mas, sendo tudo, também deve ser o nada – já que o nada está contido no tudo. Para ampliar o saber e para que você inicie uma análise mais rápida e mais abrangente sobre a maneira como “Deus” é visto ao longo da trajetória humana, recomendo-te a leitura do livro do francês Frédéric Lenoir; fiz uma dica de leitura sobre ele.

 

Não molhe o barbante por muito tempo

A complexidade da ideia de Deus foi construída ao longo de milhares de anos. Foi necessário um conjunto imenso de milagres, acontecimentos marcantes e aparentemente sem explicações lógicas, além de constantes reafirmações cada vez mais categóricas sobre o que é Deus e, acima de tudo, o que ele significa para o ser humano. A rigidez da imagem do “Todo-Poderoso” foi mantida como um colosso por um tempo relativamente grande. Mas, no mundo feito de átomos e energia, nada dura para sempre.

Do ponto de vista social, é inegável que Deus sempre serviu como um verdadeiro barbante que amarrou ideias e necessidades bem específicas. Mesmo em um período de calamidades sociais, em que a população vivia dentro de feudos, sob a custódia de seus senhores e submetidos a uma vida pautada no trabalho servil e no pagamento de impostos, a ideia de que Deus amava a população era o suficiente para Senhores, Vassalos e Servos dividirem um espaço nas igrejas. Quando surgiram as Cruzadas, a promessa de uma libertação dos pecados, bem como da garantia de um lugar macio no Paraíso, foi mais que suficiente para convencer centenas de camponeses a lutar pela chamada Terra Santa, mesmo que para isso fosse preciso criar um inferno. Se a difusão de ideias é rápida e ampla, depreende-se que, ou foi forçada, ou foi necessária. Raramente as duas coisas ocorrem simultaneamente. Mas dizer que um evento é “raro” é diferente de dizer que ele é “impossível”.

No tocante à crescente disseminação do cristianismo e do islamismo por todo (ou quase todo) o planeta, sugere-se que a necessidade da crença é uma ideia que objetivamente deseja padronizar comportamentos, pensamentos e normas éticas e morais – todas, no entanto, subjetivas. Se por um lado a história não esconde as desgraças e as armadilhas dessa polinização, por outro, aprendemos a reforçar ideias que “justificassem” todos os seus mais íntimos descalabros.

Pessoas foram, em muitas ocasiões, obrigadas a aceitar uma crença da qual nunca haviam escutado sequer meia palavra – tudo em nome da libertação dos pecados. No Brasil, a escravização do índio e de africanos nos dá fortes amostragens dessa liberdade, que tinha como prerrogativa a purgação dos pecados originais para, então, ascender-se ao Paraíso. Tudo corria por debaixo dos panos – as atrocidades sem número e o empalamento de culturas pré-existentes foram dia após dia justificadas pelas Sagradas Escrituras trazidas nas embarcações do outro lado do Atlântico. A aceitação das premissas religiosas permitia aos agraciados o convívio “normatizado”, o acesso aos bens de consumo, uma identidade psicossocial e até mesmo o direito de pleitear uma vaga no Céu. O tempo passou, mas a lógica ainda é a seguinte: se todos acreditam que Deus e que o céu existem, eles passam a assumir um significado muito mais amplo no imaginário coletivo, com direito à tonificação do conteúdo dos livros sagrados, à santificação de milagres – desde mortos ressuscitados à convocação para uma vaga de emprego – e, principalmente, ao fortalecimento de uma individualidade que corrobora a ideia de que Deus habita no homem, e que este pertence àquele. Em tese, tudo soa como música de ninar. Mas quando a bateria acaba, o bebê acorda e começa a berrar, pedindo por comida.

Sem otimismos alucinantes, sabe-se que num mundo real, dominado por criaturas malévolas e oportunistas, nem tudo é encanto e fantasia. Definir um conjunto de regras costuma funcionar muito bem em teses acadêmicas, ou em constituições nacionais guardadas na gaveta. Quando ela precisa ser aplicada a mais de um organismo vivo, nem mesmo as regras da biologia resistem. As mutações alteram desde genes a gentes. Ninguém sobrevive por muito tempo no mesmo estado de existência sem que haja gasto de energia para manutenção da ordem. O comportamento natural do animal humano não é de seguir regras subjetivas – a adequação moral a qualquer custo foi uma invenção que extrapolou o ideal biológico, embora faça parte da evolução humana. Como foi dito, às vezes até mesmo as normas biológicas são quebradas, e evoluir é um verbo carregado de sentido. Assim, reiterando que a manutenção de um grupo humano conciso não ocorre sem muito gasto de energia, pois não se trata de um fenômeno espontâneo, pressupõe-se que seja um processo forçado. Logo, conter toda essa energia por tempo indeterminado não é algo tão simples; a menos que o sistema seja de alguma maneira muito bem amarrado no máximo de pontos possível, um colapso é inevitável. Amarraram-se os dogmas com um barbante de luxo.

Deus era o barbante que amarrava fortemente o povo cristão, mas, como todo barbante, se molhar muito ele apodrece. A chuva começou havia um tempo; contudo, o barbante começou a romper-se quando ideias contrárias aos principais dogmas religiosos surgiram no meio dos intelectuais da Igreja. Nesse campo minado, reformistas surgiram como combatentes aos preceitos mais centrais entre o que dizia a Sagrada Escritura e o que era praticado pelo Clero. Se, antes, punições severamente desumanas serviam para impedir a maculação do nome do Senhor, foi em nome do mesmo Lord que durante a contrarreforma reacenderam-se as fogueiras sete vezes mais, porém, com novas justificativas para levar à tortura milhares de pessoas que, por sua vez, não acreditavam nesse Deus ou que simplesmente destoassem dos costumes pregados pela Igreja. Nessa ciranda cadente dançavam desde os mais simples aos mais requintados hereges. Vale lembrar que católicos e protestantes mataram seus “rivais”, e que essa rivalidade nunca disse respeito ao Deus em si, mas ao modo como Ele era tratado no meio social. “Se você não respeita a Deus do jeito que eu exijo, entenderei que você não me respeita, logo merece punição” (parece que pensavam isso).

A chuva continuava. A degradação silenciosa do barbante foi ganhando força durante as pestes que assolavam a Europa, as quais a Igreja não foi capaz de oferecer respostas concretas, tampouco soluções. Com tudo, ela foi acelerada na medida em que em diferentes pontos da mesma Europa pensadores resolveram deixar o armário e expor suas ideias revolucionárias e dotadas de muito ardor. Enquanto em certos pontos o barbante mostrava sua fragilidade na forma de uma divisão da Igreja entre católicos e protestantes, o apodrecimento se intensificava efetivamente com ideias contrárias às da Igreja como um todo e até mesmo contra Deus. Um dos pensadores ditos iluministas, chamado Voltaire, disse coisas como “Eu acredito no Deus que criou os homens, e não no Deus que os homens criaram” e “Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo“. Em contrapartida, Mikhail Bakunin afirmou “Eu reverto a frase de Voltaire, e digo isto, se Deus realmente existisse, seria necessário aboli-lo“.

Acreditar em Deus simplesmente pelo que era dito – ou imposto – pela elite clerical tornara-se insustentável. Um barbante molhado e apodrecido não conseguia mais conter uma sociedade turbulenta, que era agitada por questionamentos cada vez mais potenciais. O jeito foi trocar o barbante. E este deveria, além de ser reinventado, ser amarrado com novas estratégias.

 

Se precisar, substitua o barbante

O plano inicial, traçado por um grupo muito bem determinado e que pretendia manter sob domínio todos quanto pudessem não foi bem-sucedido, ao menos não completamente. Mas isso só no primeiro momento. Ilude-se quem acredita que o barbante se rompeu apenas uma vez na história. Não! Ele já foi substituído em muitas e muitas ocasiões – acontece que o material do barbante utilizado até aquele momento da história da humanidade [Idade Média] era da marca Deus S. A.. Claro, outras marcas coexistiam, mas cada uma era testada por um costureiro que tivesse suas respectivas habilidades. Os antigos e grandiosos Egípcios, por exemplo, já há muito tempo dominavam as margens do Nilo utilizando de uma vasta coleção de barbantes (eram “poli-barbantistas“), enquanto os discretos Hebreus preferiam apenas uma marca; todavia, ambos teciam seus barbantes no mesmo período – ambas amarras foram testadas a cada geração. Mas aquela da linhagem de Abraão mostrou-se mais resistente, por um tempo maior. E cabe aqui uma repetição: como todo barbante, se molhar muito, ele apodrece.

Uma vez apodrecido, a troca do barbante foi urgente. A substituição foi feita com alterações cuidadosas: ele foi trocado por um material emborrachado e resistente à água (vai que molhe outra vez) e ao fogo, nunca é demais se prevenir contra ideias incendiárias. O fato de ser um material altamente resistente e flexível faria toda a diferença em uma sociedade tão diversa como a nossa. O mais interessante, todavia, foi a criação de estratégias para que a amarração não fosse submetida à grandes pressões [explícitas], entre elas: os próprios cristãos deveriam amarrar-se à “ideia de Deus”. E tem funcionado bem!

Dando um salto enorme na evolução dessa nova forma de aprisionamento adotada como controle, iremos ao ponto subjetivo mais marcante: porque a amarração funcionou se ela era feita de forma indireta? Quem, podendo ser livre, preferiria estar amarrado?

[Falando da era Pós-Moderna] Hoje, considerando a atuação do cristianismo nos países não islâmicos, as pessoas são livres para falarem que acreditam em Deus e em Jesus, cada um à sua maneira. Uns creem à moda protestante, outros à católica e outros mantêm-se ortodoxos – mas são livres, dentro de suas possibilidades. Isso só é possível porque, dessa vez, a sensação de crença é cultivada nos mínimos detalhes, de forma sutil e desde antes do nascimento do indivíduo. Antes mesmo de saber falar a língua da família, o bebê – que às vezes recebe um nome bíblico – é batizado numa crença que o acompanhará por toda a vida, caso nada mude o curso esperado. Ensina-se que o certo é a existência de um ser criador de tudo, que responde a todas as perguntas existenciais. Uma vez que isso garante ao indivíduo uma vida sem preocupações profundas, e oferece uma resposta prática para quase todas as circunstâncias, qual seria a necessidade de se contestar tudo isso? E a troco de quê?

Nessa perspectiva, com o avanço tecnológico e a magnificação das tarefas diárias, sobra cada vez menos tempo para se questionar sobre o porquê das coisas; trabalhar, estudar e responder às mensagens no WhatsApp, Facebook e Tinder são geralmente mais importantes e tomam muito espaço na agenda existencial. E, só para não perder o costume, aos domingos frequenta-se um templo para reafirmar ali a sua crença e, de brinde, garante-se a ideia de um lugar no céu – aquele mesmo lugarzinho macio que falei antes. Tudo bem, forcei a borracha ao dizer que é  para não perder o costume – muitas pessoas levam bastante a sério suas crenças e inclinações religiosas. E não brincam quando dizem que creem em Deus.

Deixando a ironia de lado – ao menos por dois parágrafos -, considero que um dos maiores benefícios da ideia de Deus aos seus fiéis é o fato deles receberem um conforto psicológico e uma liberdade (de crença) individual numa intensidade jamais vista. Embora Jesus tenha dito que “o véu do templo foi rasgado“, há mais de 2000 anos, e que o contato entre humano e Deus seria desde então de forma direta, foi só recentemente que essa ideia se mostrou um tanto mais palpável. A partir do século XVIII, com a efetiva expansão do protestantismo e a atenuação das imposições católicas a população cristã pode conhecer os diferentes modos de adoração a Deus. A rigidez outrora praticada pela Igreja torna-se cada vez mais eclética, permitindo a inclusão de pensamentos menos conservadores (se comparados aos primórdios). Essa mudança foi fundamental para uma maior aproximação livre de obrigatoriedades entre Deus e os Homo sapiens. Com esse contato mais efetivo, surge a supervalorização da subjetividade de cada pessoa, valendo dizer que a existência de segredos exclusivamente entre “Pai e Filho” permitiu uma confiança ainda maior da crença, o que fortaleceu a espiritualidade e enrijeceu ainda mais o conceito de Deus.

Hoje, a religião representa muito mais que uma simples ideia, ela significa e ressignifica o próprio indivíduo em si mesmo.  Um judeu, um cristão ou um islâmico devoto, por exemplo, não se vê como ser humano desvinculado da Ideia de Deus. Pelo contrário, a partir da identificação com uma doutrina específica, o indivíduo altera a sua opção alimentar, a composição e o comprimento de suas roupas e cabelos, seleciona cuidadosamente aquilo a que assiste, filtra com quem se deve casar e conviver e, principalmente, ressignifica o que é a Vida. Até hoje não conheci um cristão praticante que conseguisse imaginar a vida sem que o termo “Deus” estivesse inserido no sentido geral de viver. Apesar de tudo que foi dito, eu destacaria um ponto, no qual pessoas religiosas afirmam com bastante veemência: que uma religião pode servir de conduta moral e de código ético para seus praticantes. Com exceção parcial da questão ética, isso não só é falso, como jamais faria sentido para quem, em algum momento de sua vida, leu o Pentateuco, principalmente a parte de Deuteronômios – se o que esse livro menciona pode ser entendido como algo moraleticamente adequado, eu só poderia ficar tomado de espanto e terror. Mas isso é um assunto longo… Por fim, e não menos importante, a criação de ONGs, as grandes expedições e campanhas que buscam auxiliar pessoas necessitadas de alimento, atendimento médico e de cuidados sociais são também, entre outras coisas, uma ação mais que especial e significativa no seio religioso, representando o alto brilho que uma religião pode emitir.

Percebe-se que crer em Deus confere “superpoderes” aos seres humanos. Quando se está triste, desanimado e achando que a vida não tem sentido, uma oração e/ou uma pregação fervorosa podem atenuar a dor; se a vida vai bem, “louvado seja Deus“, se ela vai mal, “louvado seja a Deus” também. Acreditar que há no além um Ser capaz de entender a nossa dor, conhecer a nossa essência e penetrar no nosso mais íntimo pensamento é simplesmente uma ferramenta que torna a relação crente-crença praticamente inseparável (mas “praticamente” é diferente de “impossivelmente”). Para completar a propaganda, vale dizer que cada pessoa pode sentir Deus e se comunicar com Ele da maneira que bem entender. O que acontece no submundo de cada indivíduo não pode ser traduzido nem por ele mesmo – a chamada “experiência com Deus” é uma arma legitimadora de tudo que se pode supor sobre o divino. Logo, torna-se quase impossível dizer que a pessoa não sentiu o que disse que sentiu, da mesma forma que afirmar a veracidade de tal sentimento será sempre algo unilateral. Pertencemos a Deus pelo simples fato de assumirmos essa “realidade”, e ninguém pode contestá-la – afirmam os fieis à palavra divina. “É assim porque acha-se que o é – ou até que se ‘prove’ o contrário”.

A grande consequência disso tudo é algo já constatado: muitas pessoas se entregam tanto à ideia do Divino que acabam não dando a devida atenção a si mesmas. É comum [na minha vida] ouvir pessoas dizerem que depressão, suicídio, bipolaridade e esquizofrenia são “espíritos”, e não distúrbios neuro ou psicológicos que merecem atenção clínica; se você fizer uma busca rápida (clique aqui) e descompromissada sobre essa estranha relação, já perceberá o quanto há de informações falsas e equivocadas por aí.

O outro ponto bem negativo que tratei quando elogiava a religião, é a terrível correlação que fazem entre religião e conduta ética: muitas pessoas se tornam seguidoras de uma ética, ou de uma normatividade, somente porque Deus disse (em um livro escrito de homens para homens) que assim deve ser; valendo, inclusive, não matar ou castigar alguém só porque Deus proíbe ou não se agrada com esse ato.  Mas fica a questão: vale desejar o mal, ainda que não o pratiquemos? Assusto-me fortemente toda vez que alguém deixa escapar de seus escombros mentais pensamentos como “Deus pedirá as contas àquela pessoa pelo mal que ela me fez“. Para mim, é o mesmo que dizer “só não faço mal a essa pessoa porque se o fizer irei direto para o inferno… mas se eu pudesse…“. Como não podem fazer nada sem que sejam tachadas de pecadoras, mais uma vez muitas pessoas entregam tudo nas mãos de Deus, inclusive seus desejos vingativos e sanguinários mais subterrâneos.

No mesmo contexto da dependência ética divina, outro ponto que destaco é que ajudar às pessoas é algo que podemos fazer independentemente de crer ou não em Deus. Podemos agir Humanamente por conta própria. É mais honesto, a propósito, praticar uma ação genuinamente benévola do que dizer que eu ajudo o próximo só porque “Deus” me ordenou. Isso não me parece correto, pelo contrário, só vejo mediocridade e má vontade! Mas isso só acontece porque o barbante foi atualizado, ganhou resistência e flexibilidade e passou a ser “controlado” também pelos seus amarrados. Dificilmente aquele que se amarrou enxerga-se como um amarrado. É mais fácil ele banhar a ouro o prendedor da borracha que admitir estar errado e, com isso, enxergar-se um ignorante. Nesse momento, acredita-se que tudo acontece naturalmente, como se a crença em Deus fosse inerente à vida; a certeza da crença é tão intensa que sequer acreditam que fazem esforços tremendos para se manter acreditando. São capazes de acreditar em qualquer coisa, tudo em nome da reafirmação da ideia de Deus – matar e morrer em nome da fé são apenas pequenos detalhes. Deus sabe o que faz.

Não custa relembrar: nada é de graça, nem a Graça. Manter-se com essa suposta autonomia e identidade subjetiva pressupõe, obviamente, a existência de algo que una os elásticos. Para isso utiliza-se de abraçadeiras resistentes (aquelas banhadas a ouro), geralmente na forma de medo, recompensa e punição. Mas tal abordagem fica para outra conversa, ou, se preferir, você pode ler um pouco sobre isso clicando aqui.

E o que acontece, portanto, quando decidimos cortar o elástico? Quando desprezamos as abraçadeiras douradas e não aceitamos a sujeição ao medo e buscamos insistentemente por mais respostas sobre a Vida, o que acontece com Deus? Se Deus é fruto da subjetividade humana e se ele existe para cada indivíduo então ele pode deixar de existir? Ele pode morrer? Quando morre Deus, o que acontece conosco?

 

Da morte de Deus

Se eu pudesse “decidir” descrer em Deus agora mesmo, e encarar a vida como ela de fato é – ou seja, sem qualquer força divina que atue pelos seres -, poderia também dizer que Deus morreu (ao menos para mim)? Embora já em épocas anteriores outras pessoas tenham matado Deus, foi no Século XIX que o filósofo alemão, Friedrich Wilhelm Nietzsche, anunciou algo que ficaria gravado na memória de muitos: “Deus está morto: mas, considerando o estado em que se encontra a espécie humana, talvez ainda por um milênio existirão grutas em que se mostrará a sua sombra“. Richard Dawkins, em seu célebre livro “Deus um Delírio”, acentua essa provocação com um pouco mais de rancor: “O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo“. Pelo jeito, Dawkins não se preocupa em expor com tanta sutileza os seus pensamentos acerca do assunto; para ele, um universo com Deus seria bem diferente de outro sem Ele; a física e a biologia de onde há um Deus está obrigada a ser diferente do lugar onde não há um Deus. Não obstante, apesar de ser um ateu contestador declarado, às vezes ele até que tenta não magoar os leitores de suas declarações, como quando disse no mesmo livro que “a existência de Deus, embora não seja tecnicamente descartável, é muito, mas muito improvável mesmo“.

A princípio, quando assumimos que Deus não existe, isso pode representar uma ideia bem singular e restrita a diminutos grupos, como os ateus. Mas de modo geral, todo monoteísta é ateu para algum deus de outra religião. Um cristão dificilmente acredita em Vishnu, Shiva, Brahma, Ogum, Zeus, etc. De igual maneira, um judeu raramente direciona a sua oração a Alah, mesmo se tratando do mesmo Deus – tecnicamente. Assim, a crença em um único Deus necessariamente exige a morte de todos os demais. Portanto, aqui, dizer que Deus não existe é o mesmo que dizer que nenhum deus existe. É muito mais específico que se imagina.

Nem sempre uma constatação é acompanhada de carinhos e promessas de acalanto. Por outro lado, mentiras reconfortantes costumas atrair mais ouvintes e praticantes que uma única verdade dolorosa – e isso também acontece quando assumimos/constatamos que Deus morreu. Quando Deus morre, morre com Ele o nosso conforto pré-estabelecido. Se acontecer algo de certo ou errado na vida de um ateu ele precisará encontrar uma solução mais eficiente e real que uma oração. Para um ateu, ter é totalmente diferente de esperar que a resolva os seus problemas, o jeito é fazer algo antes que seja tarde.

Para quem um dia já pensou ter acreditado em Deus, e não pensa mais, a vida assume um significado totalmente diferente. Passa-se a ter uma maior liberdade de pesquisar e questionar sobre qualquer coisa, sem o medo de que Satanás reserve-lhe um quarto no eterno “Hotel Caliente”; até porque, se Deus não existe, obrigatoriamente o Diabo não pode existir – um depende do outro para que possuam mútuos significados. Considerando-se a existência de Deus por um segundo, eu diria que a inimizade entre Ele e o Capiroto ocorreria apenas no palco da religião; já que nos bastidores é que são firmados vários acordos políticos para decidir os caminhos a serem trilhados pela humanidade.

Questionar-se sobre tudo é uma das sensações mais preciosas da vida, e nem é uma ideia originalmente escrita por mim. Sócrates já dizia, por volta do Século IV a.C., que “uma vida que não é examinada não merece ser vivida“. É por isso que acredito numa coisa: nada que nos torne presos acontece de forma natural, senão não se diria “preso”. Mas ser livre (nesse sentido) tem seu preço. Ao optar pela busca da verdade livre de dogmatismos, ficamos sem aquele consolo que nos dizia “tudo será resolvido, Deus te ajudará no tempo certo” – e isso pressupõe uma maturidade capaz de enxergar a vida a partir do plano real e não somente imaginário. Sair do colo dos pais e começar a caminhar demanda um fortalecimento muscular, o conhecimento do ambiente e um equilíbrio de si mesmo. E assim o é quando Deus morre. Precisamos conhecer o espaço físico e social em que estamos inseridos, precisamos entender que doenças matam, mas que eventualmente são eliminadas a partir de procedimentos terapêuticos (não por milagres).

É quando assumimos a responsabilidade da nossa existência que equilibramos o nosso sistema emocional e passamos a aceitar a perda de um ente querido, uma vez que não existindo um pós-morte também inexiste um segundo encontro – precisamos amar o próximo aqui e agora [“como se não houvesse amanhã“], o depois pode não chegar. E, se queremos nos conhecer com mais detalhes, somos praticamente obrigados a treinar o nosso olhar subjetivo para as nossas próprias emoções e sentimentos; podemos evitar o vício de dizer que “Deus me revelou que você é uma pessoa boa” ou que “Deus me mostrou que não devo iniciar um relacionamento, pois pode ser danoso”. Ainda recorrendo a mensagens socráticas, vale destacar que “conhecer a si mesmo” é, na tradução mais adequada, “cuidar de si mesmo”. Tal atitude exige atenção dobrada e um processo de autoconhecimento a ser lapidado diariamente – deve-se fugir de falsos saberes, incluindo os nossos sobre nós mesmos.

Nesse sentido, uma das maiores armadilhas na qual a espécie humana insiste em cair é a arataca da memória. Somos condenados diariamente a construir nossa identidade baseada em uma memória que fazemos de nossa própria vida e de nossas próprias emoções. Estudos científicos sugerem, todavia, que construímos e modificamos memórias ao longo da nossa existência, e que elas são geralmente acessadas de modo a acreditarmos não no evento em si (se real ou inventado) mas naquilo que armazenamos dele.

Por exemplo, uma viajem idealizada e planejada há dois anos pode apresentar centenas de imprevistos, com direito a cancelamento de voo, má qualidade do quarto de hotel – com banheiro entupido, desencontros e frustrações, além de outros infortúnios que condenariam qualquer recordação futura. Mas um único evento positivo e realmente marcante pode servir para transformar a viagem ao inferno em uma viagem ao céu. Isso porque tendemos a armazenar os melhores momentos e excluir os piores. O contrário também é verdadeiro, se o indivíduo é do tipo mais ponderador, que avalia minunciosamente cada situação e vale-se de critérios rígidos para dar um parecer final, ele pode dizer que, apesar de um ou outro evento agradável, a viagem como um todo foi simplesmente horrível e que não merece ser repetida. A má (ou a boa) notícia é que este último indivíduo está cada vez mais raro no planeta.

Quando caçavam mamutes e fugiam de tigres, os Homo sapiens tinham uma notória vantagem em armazenar informações nem sempre agradáveis; certamente aqueles que desconsideraram a presença de um grande felino nas vegetações não conseguiram deixar seus descendentes com tanta facilidade. Entretanto, em um mundo no qual cada vez mais terceirizamos a nossa vida, torna-se praticamente obsoleto ter que guardar más recordações, mais vale ser desligado e viver sempre sorrindo, ainda que isso signifique o eterno retorno aos problemas. Se antes, uma memória generalista, isto é, pouco seletiva – que armazenava todas as informações – era um diferencial para a maioria do sapiens, hoje não representa uma vantagem direta. Não significa dizer que por não utilizar esse potencial mnemônico ele desapareceu – isso seria lamarquismo; mas cabe dizer que a memória generalista é gradualmente menos utilizada por uma questão de necessidade, ou, em outras palavras, prefere-se descartar as más lembranças por uma questão de “custo benefício”. Se fazem tudo por mim, incluindo dizer quem sou, quem me fez, de onde vim e para onde irei, para quê gastar energia recordando más circunstâncias e aprendendo com elas? Quero mais é cortar voltas e ir direto ao ponto.

Segundo o sofista grego Protágoras (Séc. V a.C.), “o homem é a medida de todas as coisas“. Jesus, entretanto, veio e preferiu assumir para si, e consequentemente para Deus, que essa não é uma afirmação correta; foi quando Ele disse “Eu sou o caminho, a verdade e a vida“. Muitos acreditaram em Jesus, e passaram a segui-lo mais que às suas experiências pessoais. Ora, se Ele disse que devo considerar o Sermão da Montanha como um compilado de conduta humana e de sugestões éticas e políticas, seria perda de tempo buscar por questionamentos dispendiosos. Protágoras era humano, sujeito a avarias mentais, logo, poderia estar errado; Jesus, nunca. Já para Darwin – outro humano mortal -, essa necessidade de atribuições divinas não passa de vaidade, uma vez que “o homem, em sua arrogância, pensa de si mesmo como uma grande obra, merecedora da intervenção de uma divindade“, disse ele. E aqui se encaixa bem a fala de Quincas Borba, um personagem de Machado de Assis, que tende a admitir que essa crença no imaginário aparentemente perfeito deve-se “pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói“.

Tratada da memória na nossa vida, outra consequência da morte de Deus digna de ser debatida é a existência de dizeres bem cristalizados, mas que são desprovidos de sentido. Uma das coisas que demonstra o que é um comentário ignorante é o dizer de que “sem Deus não há o bem, uma vez que o mal é a ausência deste” – o que significa dizer que um ateu é, invariavelmente, mau-caráter ou no mínimo muito propenso à maldade. Tal pensamento pode ter suas raízes nos versículos bíblicos que dizem ser o homem fraco e errante caso não tenha Deus em seu coração, como presume-se daqui: “Quem crê no Filho de Deus, em si mesmo tem o testemunho; quem a Deus não crê mentiroso o fez, porquanto não creu no testemunho que Deus de seu Filho deu. E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida” (I João 5:10-12). Sendo o Filho também o Amor, a Verdade e a Vida, quem não o tem nem ama, nem é verdadeiro, nem vive.

Insisto em dizer que é no mínimo perigoso acreditar que a nossa conduta ética e o nosso senso de bondade estejam estritamente vinculados à ideia de religião. Quem age assim assemelha-se mais a um lobo vestido de cordeiro, o qual pode a qualquer momento se mostrar como o é originalmente, bastando apenas que os olhos da Crença não mais o mire. Sou um ateu que está aprendendo a viver dia após dia e digo uma coisa que me pareceria óbvia se dita por qualquer que seja a pessoa: nada me move mais a viver que poder ajudar quantas pessoas eu for capaz; amar sempre, respeitar o diferente e compreender as sutilezas de cada pessoa é uma característica nobre por si só, sem a necessidade de qualquer recompensa caso seja feita, ou punições caso não aconteçam. O caminho para a maturidade intelectual e social é longo, penoso e exigente, mas não é necessário um Guia sobre-humano para isso. É uma estrada percorrida por seres humanos, qualquer fantasia pode desviar o foco e nos tornar reféns de imaginações e sobretudo de nós mesmos. Além disso, ser refém é estar preso a um sistema bem amarrado em que uma minoria governante subjuga uma grande massa, fazendo-a acreditar que toda essa “ordem” é legitimada por um Ser-Supremo cujas amarras são flexíveis e resistentes. O mais curioso e complexo é perceber que é uma ideia aceita, ou simplesmente vivida, por bilhões de seres humanos, há muito tempo.

A versão mais incipiente de Deus estava na forma de antigos chefes de Estados, Reis, Imperadores e Faraós. Com o tempo, o arquivo foi atualizado para a versão Papal, e hoje existe no nome de muitas instituições, comandadas por aristocratas e fascistas bem arrumados. No entanto, para garantir a dominação e a coesão social, a tecnologia, a mídia e a “mão invisível do mercado” atuam calorosamente como extensões do navegador Divino que segue organizando a sociedade como uma verdadeira linha de produção. Tudo em nome da salvação – mas uma salvação que periga a cada era. O historiador Arnold Tyenbee disse uma frase interessante: “As perspectivas de sobrevivência da raça humana eram consideravelmente maiores quando estávamos indefesos contra tigres do que hoje, quando nos tornamos indefesos contra nós mesmos“.

Caminhando para o fim do texto, fica a sensação de que a verdade é que sempre houve a necessidade de reunir o povo em um mesmo lugar, por uma mesma causa e sob um mesmo jugo, trabalhando para um seleto grupo privilegiado e perpetuando essa crença imaginária sobre um alguém transcendental e imaculado, um autor do universo. Inventar Deus foi sem dúvidas a ideia mais extraordinária na festa da espécie humana; usar dessa ideia para legitimar o poder de um Homo sapiens sobre milhões foi a cereja do bolo – e todos querem comê-la primeiro. Fazer o povo “respeitar e honrar” um governante, tão biologicamente humano quanto ele, requeria primeiro o domínio do subconsciente coletivo, a instauração de uma causa comum pela qual todos lutassem e de um castigo pelo qual todos temessem. Criou-se o céu com anjos loiros e fofinhos tocando harpa e desenhou-se um inferno, sulfuroso, aquecido e com bestas feras sedentas de sangue. Mas acima de tudo está o Paradoxo Magno: somos infinitamente inferiores em relação ao Supremo, menos valorosos que um único grão de areia na praia; mesmo assim, a falsa ideia de pertencimento coletivo, o perdão dos pecados e uma proteção contínua e exclusiva, garante-nos um tipo de identidade especial, a qual nos diz que temos um valor tão alto que nem todo o planeta Terra pesado em ouro poderia pagar – e perceba que a Terra tem uma massa estimada em, aproximadamente, 5,972×10^24 kg. Só por curiosidade, no momento desta escrita, a sua alma valeria algo em torno de R$865.000.000.000.000.000.000.000.000.000,00. Diga-me, como ter uma baixa estima desse jeito?

Fazer as pessoas acreditarem em Deus foi mais fácil que se pode supor; porém, entender tal facilidade chega a ser extremamente complexo. Conquistadas essas proezas em nome de Deus, mataram-no em seguida, mas antes de se preocuparem em enterrar o corpo trataram de produzir um vírus de memória que fosse autonomamente replicado na massa de manobra. Hoje, a ideia é tão bem construída que até parece real. Passeatas em nome da fé, centenas de templos lotados em nome do Senhor, contas bancárias cada vez mais rentáveis na esperança de receber um milagre, crises de depressão profunda, carência de atitudes, intolerância religiosa e segregação em nome da Paz são apenas algumas das moscas que rodeiam o cadáver. E elas estão se multiplicando rapidamente.

Por fim, saliento que o pensamento filosófico funciona como uma ferramenta que nos possibilita questionar os nossos mais variados pressupostos e valores. Entender nossas crenças e verificá-las a partir de um pensamento crítico pode fazer toda diferença caso o objetivo seja uma vida que mereça ser vivida. Assim, enquanto seguimos dizendo que Deus existe, podemos especular tudo à vontade, sem a necessidade de provar nem responder a nada. Tudo já está explicado desde o Éden, e o motivo para qualquer desastre é “Deus sabe o que faz“, pois “viu Deus que era bom”; “Deus entende o seu caminho, e ele sabe o seu lugar” (Jó 22:23). Aceitar essa ideia é um direito de cada individuo, mas “sê quem és, sabendo“, já dizia o poeta grego, Píndaro. Por outro lado, quando Deus morre, a vida acontece do jeito que ela sempre foi, e o ser humano se mostra como de fato o é. Se é bom, faz o bem; se é mau, faz o mal. Muita coisa já foi feita e muito mais está por acontecer em nome do falecido – coisas terríveis e brilhantes são feitas por mentes demasiadamente otimistas e ingênuas – sem desconsiderar as ignorantes, claro. Quanto mais se conhece e entende a História, menos se duvida da estupidez humana. Só não culpem Deus pela tragédia ou pela sorte… Afinal, Deus nada ter a ver com isso, pois Ele está morto.

 

 

#VocêJáParouParaPensar?

 

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

 

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NOTA: A imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.