A reflexão de hoje foi sobre o retrato construído na observação; um retrato chamado “Eu”.

Diariamente, costumo me olhar ao espelho; além disso, também me olho nas fotografias antigas e acompanho o quanto tenho mudado ao longo dos anos, ou mesmo que seja nessa quarentena – em que observo o quanto tem crescido o meu cabelo. Seja no espelho ou na fotos, eu sei que nunca me vejo por inteiro, nunca contemplo a totalidade do meu movimento… é sempre um fragmento, uma dimensão, um frame.

No espelho, por mais que eu possa me mover, olho sempre com uma possibilidade de foco, vejo apenas a posição daquilo que é refletido, nunca se tem noção do todo. Enquanto que a imagem fotografada, essa em duas dimensões, me permite ver a mim mesmo somente em um plano – seja de perfil, de frente, de costas, etc. Mas ainda haveria o vídeo. Nele posso contemplar um pouco mais da dinâmica espacial, um pouco mais do movimento, um pouco mais de um instante – um instante sempre recortado. Então me pergunto: onde está o Andreone inteiro? Onde estou por completo, integral e simultaneamente? O retrato que tenho de mim é parcial, local, reservado ao registro de um momento que não existe mais, de uma pessoa que mudou desde a última cena. Aquele indivíduo, então, não existe mais? Ao menos não na realidade, só na imaginação e no fixo retrato. Eu sou impulsos elétricos, pixels e um conjuntos de frames por segundo. Mas repito a pergunta: cadê eu?

Curiosamente, esses pensamentos afloraram em mim agora há pouco… hoje, pela tarde, eu estava sentado de frente para uma pessoa que conheci muito bem por quase uma década – ou melhor: alguém cuja imagem eu tinha muito bem construída na minha mente; ou, ainda, alguém de quem eu retinha muitos fragmentos. Eu a observava em variados ângulos e contextos; mas por aqueles instantes eu sabia, mesmo que sem poder explicar como, que o seu retrato já era outro. Aquela pessoa era outra pessoa, um alguém distinto da imagem que construí em minha mente ao longo do tempo – os fragmentos não se juntavam mais num sentido mínimo para representar algo ou alguém. Os novos fragmentos remontam, agora, uma nova pessoa, uma nova imagem. Aquela pessoa “antiga” não existia mais! Ainda assim, da atual forma que ela existe na minha cabeça, essa imagem é acessível somente a mim, a mais ninguém – tal criatura pode até suspeitar que ela mudou no meu conceito, mas não sabe de que maneira.

O que me permite pensar que talvez na mente daquela pessoa eu também fosse uma imagem única, mas mutante, à qual só ela tivesse acesso. Para mim, ela é o que eu penso; para ela, eu sou o que ela sabe e constrói de mim. Expandindo essa ideia a todas as pessoas que me cercam e que sabem da minha existência, fico tentado a dizer que ninguém existe como pensa que existe. A imagem fragmentada que eu tenho de mim não é capaz de me construir por inteiro; a imagem que constroem de mim em suas mentes é inacessível a mim por completo: só posso ver as pistas emitidas, apenas conheço aquilo que a outra parte pensa do que seu pensamento lhe permite pensar – logo, só conheço o que ela conhece de mim apenas quando eu escapo de sua mente e sou transformado e gesto, linguagem, signos e símbolos. O “Eu” inteiro e completo é inacessível a quem quer que seja. Ele nunca está à mostra por inteiro. Eu não existo de verdade enquanto uma unidade. Sou pedaços que ora se mostram, ora se escondem; ora são, ora deixam de ser. Você que me lê também é assim. Você existe não existindo.

Daí surge a questão da importância do retrato. Passa-se tanto tempo buscando por uma imagem a ser transmitida que seja a mais aceitável possível que, na melhor das hipóteses, vive-se uma vida de espelhamento (que em partes é de fato inevitável e inerente ao ser humano). Um viver pautado quase que exclusivamente no “como será que o outro ser humano me percebe?” e construído junto ao “o que sei de mim pelos sinais que a outra pessoa transmite daquilo que ela sabe e constrói ao meu respeito?”. Seria, então, o caso de entender o porquê da necessidade da avaliação alheia ser tão importante para o ser humano. Esse animal de consciência complexa necessita da avaliação externa e contínua por que só assim consegue juntar mais pedaços de si ao seu imaginário. Será que somente a partir da coleta de dados ao seu respeito é possível se ver mais nitidamente? Talvez, e muito provavelmente, sim!

Por outro lado, aqui surge uma brecha que permite pensarmos em porque aceitamos com tanta facilidade os discursos estereotipados, aquelas versões prontas de um ser humano completo e bem-quisto socialmente, um alguém que detêm um protocolo comportamental de tal modo que ao imitá-lo você tem a sensação frívola, mas prazerosa, de que enfim você sabe quem e o que você é! Se você é o que seus fragmentos te indicam somados ao que transmitem ao seu respeito – e sabendo que existe um compromisso em venerar os estereótipos – logo você se sente um uma pessoa venerada e conhecida. Esse ritual de ver-se no outro tipificado, receber os signos que este outro fabricado transmite e sentir-se conhecido é um mecanismo eficiente que atrai desde mentes desconfiadas a mentes ingênua. Todo ser humano se constrói em outro ser humano; a questão é saber quais e de quem vem os fragmentos que constituem nosso retrato incompleto; o que é essa nossa imagem que temos de nós mesmes. Qual é o retrato que vale mais?

 

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vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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