Num resumo bem apressado e evitando “spoilers”, cabe dizer que no livro Odisseia (de Homero) Penélope era a esposa de Odisseu, um guerreiro grego que foi lutar na famosa Guerra de Troia. Essa guerra levou 10 anos, com a derrota dos troianos; mas Odisseu não voltou para a cidade dele, e ficou distante por mais 10 anos buscando por seu caminho de retorno. Penélope, uma mulher considerada esteticamente desejável, foi pressionada a se casar novamente – já que todos consideravam que Odisseu nunca mais voltaria, talvez porque estivesse morto, bem como porque ela possuía todo os bens do esposo. “Cedendo à pressão”, como juramento ela prometeu que escolheria um dos pretendentes para se casar, mas que, antes disso, ela teceria um manto. Porém, como ela tinha viva em si a esperança de que o esposo um dia retornasse, ela costurava o manto durante o dia e desfazia durante a noite, e assim foi por anos… [partir daqui, conteria spoiler, então, para esse texto, isso é o bastante].

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Se tomarmos por metáfora o exemplo de Penélope, podemos refletir sobre como construímos nossas esperanças na/pela vida. Independentemente da crença religiosa/metafísica, todas as pessoas possuem algum tipo de apego a algum aspecto material e/ou subjetivo nessa vida. Seja de um jeito ou de outro, sempre alimentaremos algum tipo de esperança, ou seja, sempre esperamos em algo em algum setor de nossa existência. Mesmo quando decidimos que não esperaremos por coisa alguma, o simples fato de não esperar por nada é, em si, um ato de esperar. Como comento num texto antigo, ao decidirmos não criar expectativas já estamos nesse momento próprio esperando por algo. Logo, esperar é uma maneira humana de existir. Espero, logo existo.

É nesse sentido que vale destacar: sempre esperaremos por alguma coisa. O que difere entre as pessoas não é se elas esperam ou não, mas pelo quê e o modo pelo qual esperam. E dizer que todas as pessoas esperam não é posto aqui com o sentido de quanto tempo suportam esperar, é no sentido de alimentarem esperanças sobre algo. Muitas vezes temos uma convicção muito bem construída sobre algum desejo que vibra em nós. Esse desejo pode, por vezes, ser tomado por real e ainda pode ser posto como absoluto. A grande questão de tomar por determinante esse desejo é que podemos nos fechar nisso como se nada para além dessa espera fizesse sentido. Dito em outras palavras, quando nos fechamos num desejo restrito – ou se preferir, num objeto a partir do qual cremos que nos trará o real prazer ao ser experimentado – estamos nos limitando de novas possibilidades. Escolher não é sempre algo simples; mas toda escolha que pressupõe a eleição de um objeto único é, por definição, uma escolha exclusivista: ela elimina as outras possibilidades no momento exato em que o objeto eleito é destacado.

Quando acreditamos que só podemos escolher uma coisa, e quando levamos essa crença a sério, acabamos nos impedindo de considerar uma vida a partir de outras possíveis constituições. Isso tem desdobramentos profundos na nossa subjetividade. Por exemplo [e somente a título de ilustração], quando nossa visão de mundo está centralizada em um modo possível de existência, digamos, na crença em um Deus, passamos, por um lado, a guiar nossas necessidades para coisas que dialoguem com a existência desse Deus. Por outro lado, tudo que foge a essa construção imaginária é logo desconsiderado e/ou rejeitado a partir também de códigos e doutrinas proibitórias relacionadas a essa própria forma de crer. Como resultado, começamos a orientar o nosso olhar somente àquilo que está contido no pacote “Crer em Deus”; e essa orientação passa a construir necessidades baseadas nessa crença, bem como passa a fornecer recursos que possam alimentar as necessidades que sempre existiram, mas que agora encontram matéria prima e substratos em apenas um local, nesse caso, na crença em Deus. O mesmo se aplica a muitos outros tipos de desejos, necessidades e nos modos pelos quais buscamos soluções para elas.

Se Penélope não tivesse em si a esperança do retorno de seu esposo, certamente que ela procuraria outros modos de lidar com o fato de ter de casar novamente em vez de planejar a construção e o desmanche do manto. Além disso, dado o contexto da obra de Homero, talvez o não-se-casar não seria uma possibilidade tão simples para ela. Assim, a construção do manto talvez serviria para adiantar, postergar, o evento do qual ela quereria fugir; mesmo que não existisse por traz disso algum tipo de pista muito bem definida e concreta, ela acreditava que seu esposo voltaria. Mas vale perceber que, se existe a construção do manto, independentemente do que se espera com isso, o propósito mais intrínseco à essa construção é o fato de que se espera ao menos empurrar no tempo algum compromisso.

Dizendo de outro jeito sobre o mesmo fenômeno, muitas vezes construímos maneiras pelas quais na nossa vida adiaremos algo que estamos vivendo. Nem sempre desejamos aquilo que nos é colocado como ideal; nem sempre queremos cumprir um protocolo; e nem sempre estamos de acordo com nossas experiências/expectativas imediatas. Para fugir delas criamos obstáculos ou estratégias que prolonguem uma determinada tomada de decisão. Esse processo de alongar uma atitude, ou seja, de aumentar o intervalo em que se pode não tomar a decisão, leva-nos a viver sempre um movimento de procrastinação baseada na esperança. Prometemos a nós mesmo que esperaremos por um ideal que figura no nosso imaginário, mas ao mesmo tempo não queremos desapontar as expectativas exteriores, ou que seja o nosso ego. Com isso, juramos a nós mesmos que perseguiremos nossos sonhos e esperaremos por aquilo que consideramos mais perfeito; enquanto isso, durante o dia tecemos o manto da aparência e da aceitação social; mas pela noite, no escuro do nosso quarto nos damos conta de realidade que habita no vazio e desmanchamos fio por fio.

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Desses poucos devaneios surgem duas reflexões possíveis, mas que nem de longe não se limitam a elas mesmas:

I) A confecção do manto como algo que protege nossas esperanças

Pode acontecer de perseguirmos sempre um ideal que não existe, mas que figura somente em nossas mentes; e com isso vivemos uma vida inteira de fazer e desfazer um manto que não cumpre outra função senão a de procrastinar nossas experiências diversas, de sustentar esperanças que nem sabemos se são reais ou não. Com nossas carências, com nossos medos, com nossas inseguranças e com muitas outras emoções construímos um muro simbólico e cercamos o nosso universo de possibilidades e passamos a viver a ideia de uma esperança ilusória. Temos muito medo de incertezas, isso é um fato! Tememos sobremaneira a possibilidade de não haver uma resposta pronta que nos diga o que nos espera após a próxima curva de chamado “destino”. Mas a verdade é que respostas prontas estão reservadas principalmente ao dogmatismo ou ao fundamentalismo; na vida prática, as nossas dinâmicas variam a tal ponto que uma resposta que servia muito bem à uma pergunta ontem, hoje talvez seja ou incompleta ou inválida. Viver é um movimento angustiante, no qual dia após dia novas questões surgem e podem se entrelaçar na grande teia de nossas experiências. Ninguém consegue lidar com essas questões sem que para tanto lance mão de mecanismos de abstração e de uma imaginação que nos proporcione conforto. No extremos desse contínuo, talvez, estejam as experiências místicas e religiosas; estas servem como uma explicação rápida, individualmente reconfortante e socialmente aprisionante – é um ópio que ameniza a dor do não-saber.

Esse conjunto de emoções nos faz reforçar esperanças estritamente imaginárias e abrigadas nos nossos esconderijos mais subjetivos [e às vezes desconhecidos por nós], mas que carregam em si os símbolos mais “perfeitos” e os sinais mais “importantes” que supostamente alimentarão as nossas necessidades, desde as emocionais até as materiais que não estão em nossos corpos. E, como forma de dar sentido a esse conjunto imagético, forjamos um manto e nos comprometemos a esperar pela concretização do imaginário indefinidamente, até que descubram o nosso plano e que saibam que estamos enganando o sistema que nos vigia; ou, o que faz mais sentido aqui, descobrimos nós mesmos quem estamos nos enganando em nossas próprias convicções, e que na verdade essa construção do manto só nos faz esperar mais e mais. Por isso cabe perguntar muitas coisas àquela pessoa que aparece quando nos posicionamos em frente ao espelho. Qual é o seu ideal de vida? O que realmente você sente que te falta para que você olhe para si e se considere uma pessoa realizada em si mesma e no contexto no qual você vive? O que do seu gosto é seu e o que é da sociedade? Quanto de suas vontades realmente é fruto de suas convicções mais profundas e mais íntimas? Quantos sonhos que figuram em sua são apenas ecos de sonhos não realizados por uma cultura, mas que de tanto reverberar em você te dá sensação da certeza de que essas ideias são de fato suas?

II) A confecção do manto como algo que distancia de uma tomada de atitude

Pode acontecer de não termos coragem de bancar nossas esperanças e assim seguir tecendo indefinidamente o manto da procrastinação. E parece que é a mesma coisa do caminho proposto acima, mas não o é. Se no caminho proposto anteriormente estávamos tecendo o manto para que isso nos desse tempo de se ver concretizar a esperança, aqui nesse caminho estamos tecendo e desmanchando o manto porque isso nos dá tempo: nos dá tempo de fugir de um cenário desconhecido. Ora, se não sabemos bem o que estamos esperando e tememos o inesperado, e ainda sabemos que mantendo determinado comportamento minimamente confortável podemos não sofrer com as eventuais consequências dessa incerteza, por que não manter esse modus operandi (modo de funcionamento) ativo?

É muito triste nos prendemos às nossas construções subjetivas como se não houvesse outra possibilidade a ser vivida. Somos sujeitos construídos nas relações e nos contatos cotidianos; nossos olhares e nossas ideias existem porque houveram intersecções com experiências que ultrapassam os limites do sujeito único. Um ser humano se constrói a partir do contato com outro ser humano, e é nessa construção que passamos a formar nossas identidades; e é a partir da interação entre o sujeito e o conjunto social que surgem os gostos e os desejos. Por essa razão que precisamos nos perguntar de ondem veem esses desejos e esses gostos que chamamos de nossos e que os assumimos com tamanha vivacidade que passamos a dedicar uma vida inteira em busca deles. As coisas mudam, assumem outras formas, perdem o encanto, ganham brilho e outros sentidos. Mas se não nos permitimos a possibilidade da dúvida e do questionamento, o máximo que mudará nisso tudo é que a cada momento nossas convicções terão paredes cada mais enrijecidas e impenetráveis. Seremos resistentes às mudanças. Obviamente que, a depender do grau que nos encontramos em nossas construções subjetivas, o processo de desconstrução de nossas percepções será mais difícil, resultando em maiores incômodos e potencialmente maiores sofrimentos. Desmanchar um manto de 2 metros leva mais tempo e demanda mais energia que desmanchar um manto de 50cm. E seguir costurando mantos a vida inteira pode resultar em “tendinites identitária”: fizemos o mesmo movimento tantas e tantas vezes que nem conseguimos mais nos movimentar em outras direções, e isso vem acompanhado de dores pela repetição.

É preciso pensar mais naquilo que chamamos de “minhas necessidade”, “meus desejos”, “meus gostos” e “minhas crenças”. E, como diz no livro “A Metamorfose”, de Franz Kafka, “ele [Gregor Samsa] não esqueceu de recordar a si mesmo, de tempos em tempos, que reflexões frias, mesmo as muito frias, são melhores do que decisões desesperadas”. Assim, a maneira como lidamos com as nossas questões tendem a mudar a depender do quanto entendemos dessas próprias questões. Insistir por algo que sabemos que apresenta chances reais de acontecer nos faz criar estratégias mais inteligentes de esperança combinada com ação; mas se esperamos aquilo que sequer conhecemos, seguimos num processo aleatório, intermitente e por vezes, cego. É como diz a célebre frase de Sêneca, se você não sabe para que porto está velejando, nenhum vento é bom, ou, se preferir a versão adaptada por Lewis Carroll, em “Alice no País das Maravilhas”, “Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”.

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Por fim, fica o questionamento: O que estamos desfazendo quando decidimos esperar por algo? Estamos desfazemos de um tempo? de um abraço? de uma experiência que disseram ser a ideal? de uma experiência que disseram ser ruim? estamos apenas aumentando o espaço de tempo entre uma tomada de decisão e outra? Temos medo de quê? Temos medo de ter medo?

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem usada para compor a capa desse texto foi obtida aqui.