Não é sobre termos o dever de não sentir medo,  mas sobre a oportunidade e a possibilidade de convivermos com eles

Somos seres humanos, logo somos animais angustiados, carentes por proteção e desejantes de acolhimento. Há, nitidamente, uma nuvem que cobre todas essas noções e que dão vazão à sensação de autossuficiência: a fantasia. Um sistema que precisa de pessoas cada vez mais carentes e angustiadas, como é o capitalismo, não sobreviveria se pudéssemos perceber que nossa essência é justamente essa: desejar a companhia alheia. Tal sistema não foi se produzindo para que, uma vez percebendo tais angústias e carências também aprendêssemos a conviver com elas de modo saudável, compreendendo os nossos “males”. Entre outras coisas, uma possível verdade é que temos medo de perder os nossos afetos; temos medo de construir uma idealização toda complexa e fantástica sobre outras pessoas e, num golpe silencioso, perder tudo isso e ficarmos em desamparo, sem proteção e, portanto, sem segurança. Enfim, naturalmente temos medo do abandono.

Estar em abandono seria menos trágico se não fôssemos seres gregários. Em outras palavras, se não tivéssemos evoluído (biologicamente falando) dentro de um contexto de grupos, sempre em companhia, sempre com um outros seres humanos, talvez a ideia da solidão fosse interessante em vez de de assustadora, ou até seria indiferente. Mas não é isso! Somos biologicamente grupais; é socialmente que nos produzimos… em grupos. Um ser humano se constrói a partir de outro ser humano. Sem um “outro” não existimos enquanto seres humanos, não nos identificamos e não somos identificades. Buscamos insistentemente a liberdade de escolher um local em que o medo do abandono seja nulo, pois queremos presenças; nem que seja uma presença forjada na siderúrgica das nossas fantasias e no plano das nossas ilusões anestésicas do pensamento.

Como estratégia histórico-política, temos a manutenção de mecanismos que cada vez mais nos mantêm reféns da nossa [falsa] ideia de liberdade. No entanto, nenhuma ideia de liberdade é forte o bastante para resistir ao desejo mais sutil que temos por segurança; até a mais suave brisa do desejo por segurança é capaz de abalar o mais alto edifício da liberdade, sobretudo quando queremos assegurar a nossa própria vontade de ser livres; e cada uma dessas buscas encontra-se em polos distantes (não necessariamente opostos): mas, quanto maior a liberdade, geralmente menor é a segurança; e vice-versa.

Nesse sentido, digo que o sistema monológico da Monogamia apoia-se nessa necessidade humana de amparo e de acolhimento. É nessa monológica que a ideia de liberdade de escolha nos ilude e nos amarra ao nos seduzir que é possível escolher uma parceria que estará conosco o tempo todo, em todas as nossas fases da vida.

Acreditamos mesmo que é possível driblar a possibilidade do abandono? Cremos de fato que existe segurança absoluta em qualquer que seja a relação? Bom, podemos não acreditar, mas a monogamia fornece muitos mecanismos que constroem em nós [ilusória] sensação de que isso é possível. A própria ideia tradicional de família é baseada no amparo, na segurança afetiva e no acolhimento. Mas nada disso se sustenta na prática. 

Embora sejamos seres gregários, isso não significa que saibamos como conviver em grupos com qualidade. Evoluímos por milhares de anos em grupos de aproximadamente 40 a 45 indivíduos. Apenas num momento muito recente da nossa evolução, há cerca de 13 mil anos, iniciamos o processo de aumento da densidade populacional, hoje nossas redes podem ultrapassar os milhares e milhões. Temos tantas possibilidades afetivas e tantos contatos possíveis que a angústia aparece nesse cenário de modo potencializado. Ao aumentar exponencialmente nossa rede afetiva também diminuímos a qualidade que temos para nos relacionar, pois não desenvolvemos tecnologias e maneiras de cultivar e de cuidar dos afetos; mas sim de aprisioná-los para que não nos escapem com o tempo. Tamanha é essa angústia que num golpe de desespero passamos a depositar em apenas uma pessoa todo o nosso apego, toda a nossa angústia. No mínimo depositamos nossos afetos em um conceito frágil, como é a família.

O despreparo e desespero provenientes do medo de sermos abandonades é tão grande que precisamos negá-lo, ressignificá-lo e colocar sobre ele outra roupagem. Do contrário, precisaríamos olhar para o abismo afetivo que nossa construção sociocultural criou entre a nossa imagem e a nossa real identidade humana. Mas, numa cultura que transforma em heroísmo a não-demonstração de nossos medos e diz ser forte quem não fala de suas fraquezas, os motivos para o abafamento faz do medo o nosso maior aliado à monogamia. Temos medo de nos conhecer.

Quantas e quantas pessoas dizem “a não-monogamia é uma ideia incrível, ela parece fazer todo sentido, mas pra mim não funcionaria, não consigo lidar com isso!”. Com isso o quê? Com o ciúme? Com a carência de não ter a pessoa perto em tempo integral? Com o medo da pessoa ir embora? Talvez não seja isso. Pois na própria monogamia isso acontece aos montes. Seria, então, o caso desse medo ser muito mais profundo que se imagina, e ser ele, na verdade, pautado na ideia de que na não-monogamia as pessoas estarão unidas pela confiança e pelo afeto que existe entre elas sem a necessidade de um acordo jurídico construído implícita e socialmente?

Seja como for, lidar com o medo é algo tão difícil que lançamos mão das mais simbólicas artificialidades para nos sentirmos pertencentes a um grupo. Usamos alianças para dizer que temos e que somos de alguém; assinamos contratos de união “até que a morte nos separe”; vivemos a ideia de uma suposta exclusividade afetiva; assumimos que estamos em segurança, chegando a crer que a pessoa com quem estamos [nunca] não nos abandonará. Mas nada disso tem efeito prático definitivo. A ruptura de ciclos chega para todes. E principalmente quando ela vem nesses contextos de exclusividade afetiva ou de limitação afetiva o abalo emocional é ainda mais doloroso, pois não nos preparamos sequer superficialmente para ele; não nos preparamos para não depender emocionalmente de um afeto.

Por vezes, de tanto negar, achamos que não tememos o abandono, pois acreditamos que sequer ele existe. Lidar com monstros cuja existência era desconhecida é sempre um terror mais intenso, talvez por isso às vezes ficamos no terror mais familiarizado. O medo da novidade faz o pardal traumatizado acreditar que a gaiola sempre foi o seu lar, e o faz pensar que voar é um exercício desnecessário.

Assim, ao pensar as relações pela ótica Não-Monogâmica, em vez da monológica Monogâmica, pensamos também sobre o voo como algo natural, não como desnecessário. Muitas vezes acreditamos que não podemos fazer uma determinada ação porque não é necessária ou porque não temos capacidade pra isso; porém a explicação poder de que nunca soubemos que poderíamos fazer coisas para além do muro da prisão ou das grades da gaiola. Quem não sabe que pode, no mínimo acredita que não é capaz. É verdade que nem sempre temos capacidades múltiplas e completas; mas nunca saberemos se as possuímos se no mínimo não tivermos (ou se não nos dermos) a oportunidade de viver outras vivências possíveis.

Isso não significa que na Não-Monogamia o medo do abandono será eliminado e que, assim, viveremos como quiçá sempre desejamos: em plenitude afetiva e com nossos afetos bem-resolvidos. Novamente: a Não-Monogamia não é salvacionista, tampouco milagrosa! Em vez disso, a Não-Monogamia se mostra como um caminho pelo qual poderemos olhar para nós com mais cuidado e atenção. Ela é um convite ao encontro entre nós e nossas fragilidades; é a possibilidade do contato entre nossos medos e vontades, anseios e limites, “sins” e “nãos”. Se não aprendermos a basear nossas relações na confiança e, sobretudo, se não construirmos confianças afetivas possíveis, nunca nos preparemos para o rompimento de ciclos. Não-monogamia não é sobre termos o dever de não sentir medos, mas sobre termos uma oportunidade de convivermos com eles sem nos tornar reféns.

Para além disso: pensando sobre a Projeção como um mecanismo interno

Um outro aspecto que não poderíamos deixar de considerar aqui diz respeito aos mecanismos que usamos quando estamos diante do abandono, ou até de quando supomos que ele seja uma possibilidade em nossas vidas: a projeção. Independentemente do quanto isso possa variar em intensidade e em significado, cada pessoa cria projeções do que é e de como gostaria que fosse o mundo em que ela habita.

Projetamos nossas vontades, nossos desejos, nossos medos e nossas expectativas em objetos vários. Desde a carreira profissional até o atendimento em um estabelecimento, desde nossa vontade de ter um acolhimento até o medo de uma violência, temos projeções de que as coisas deveriam funcionar em dinâmicas que nos agradassem e/ou nos causasse menos inseguranças. Projetamos no passado os nossos erros e acertos e no presente nossas vontades mais viscerais. No futuro projetamos tudo aquilo que na nossa mente seria o nosso conforto, mas que não estão materializadas. Projeções geralmente dizem respeito àquilo que não temos como concretizar de modo substancial, mas que queremos tanto que precisamos visualizar sua existência de outra maneira, em outro espaço – projetando em algum “anteparo”.

Nessa lógica, indubitavelmente projetamos nas pessoas os afetos que nos faltam, seja porque nunca os tivemos, seja porque nos faltam ou porque aprendemos a desejá-los a qualquer custo. Projetamos no outro aquilo que se mostra nebuloso em nós. Queremos ver com nitidez na outra pessoa e nos outros objetos aquilo que em nós figura borrado e por vezes rasurado.

Existe em nós o hábito de terceirizar a nossa falta e de contabilizar nas ações alheias o que não nos agrada e/ou o que nos fere o sentimento. Muito falamos do sistema sociocultural – eu, inclusive falo muito sobre ele – como sendo ele um operatório de desigualdades e produtor de neuroses e angústias. De fato o é. No entanto, existimos também como organismos, e em nós existem operações de nossas dores e angústias. E muitas vezes nossa dinâmica interna trabalha na projeção, que usa a outra pessoa como anteparo da nossa carência. Se esse anteparo não reflete a imagem que esperamos ver nele, o culpamos e até o execramos; até que surja outro que passamos a julgar como mais adequado.

Tudo isso para dizer que se queremos lidar com o medo do abandono precisamos também compreender quais são os caminhos pessoais que estamos trilhando nessa compreensão. Certamente que sistemas sociais atuam nos influenciando e, não raramente, nos coagindo e nos inibindo de buscar por alternativas afetivas mais conscientes, e não precisamos jogar fora essa ideia. Pelo contrário, precisamos considerá-la juntamente ao que se passa no nosso pensamento.

Nesse caminho, devemos considerar que sexismo [e a cis-heteronormatividade] apresenta diferentes logísticas para lidar com o abandono, direcionando às pessoas identificadas como mulheres uma maior responsabilização, e retirando dos ditos homens a ação de cuidado e de respeito, como se somente um gênero precisasse de afetos. Da mesma forma, a “raça”/etnia exerce diferenciações concretas, sendo inclusive um marcador de quem “merece” mais ou menos afetos, aumentando a tendência do abandono (e quiçá naturalizando-o) para pessoas racializadas. Projeções de uma parte sobre o todo.

Eis outro desafio nessa temática do abandono que a Não-Monogamia, e mais abrangentemente a Não-Monologia, busca compreender e permitir caminhos de construção de afetos descolonizados. Paramos de projetar de modo exagerado [ou pelo menos projetamos menos] à medida que compreendemos e que vemos com mais nitidez o que se passa em nós. A autoaceitação talvez seja o próximo passo.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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