Era uma manhã, tendendo à tarde, de um dia qualquer nesse mundo;
eu estava voando, de São Paulo para Recife para participar de um Simpósio…

eu não estava com vontade de ir quando me anunciaram a oportunidade;
eu não sentia o menor desejo de sair de onde eu estava – da minha casa;
essas coisas, que na Academia brilham os olhos súditos,
não me soava atraente da mesma maneira que talvez para outras criaturas;

pensei que, quem sabe, fosse mais uma daquelas “fases” de baixa desejabilidade;
talvez seria só um desânimo passageiro que logo se converteria em querer…
então, dei tempo ao tempo, esperei pela vontade e pela empolgação;
mas nada disso veio, nada aconteceu…
o desânimo se manteve do jeito que sempre foi, quiçá maior a cada dia.

Foi, portanto, quando eu estava no avião, sobrevoando as cidades, vendo as nuvens e naquele ambiente que [suponho] muita gente gostaria de estar, que olhei para mim, para dentro de mim e pensei:
por que meu coração não ferve diante desses episódios?
por que eu não vibro tanto quanto “poderia”, e tanto quanto já vibrei diante de coisas assim?
o que será que se passa aqui dentro que tudo é assim, “normal”, não empolgado e tão… comum?

Esses questionamentos se intensificam quando chego em Recife.

Em geral, as pessoas se empolgam quando estão em lugares novos;
lugares turísticos costumam ser muito estimulantes para muita gente;
elas querem sair, conhecer cada canto, descobrir cada espaço, tirar todas as fotos, comer todas as comidas que puderem…
querem poder fazer tudo aquilo que suas condições lhes permite.

Ali, eu poderia fazer muita coisa;
pela primeira vez na minha vida eu conseguia me manter financeiramente só;
pela primeira vez na minha trajetória individual eu tinha como escolher se faria um passeio guiado, se pagava por um almoço mais caro, se escolhia uma pousada mais gostosa;
em uma vida que foi sempre dependente de alguém, e na maioria das vezes financeiramente carente, poder se manter sozinhe sem grandes preocupações era de fato uma [estranha] novidade;
mas eu não queria fazer praticamente nada.

Penso, inclusive, que essa novidade, esse poder-fazer, essa situação nova na minha vida, tudo isso me cobrava por dentro para ter de fazer;
eu deveria fazer tudo que pudesse ser feito, afinal, estava vivendo um momento só meu, com as condições de vivê-lo;
não é o mesmo que dizer que eu poderia esbanjar o quanto eu quisesse, mas apenas que era um momento que eu não precisaria pedir nada pra ninguém e, caso quisesse, poderia me permitir confortos antes impensáveis.

Seja como for, tudo isso se voltava para mim como cobranças…
Eu deveria aproveitar mais…
eu deveria curtir lugares…
por que não sair o dia todo?
por que não se permitir?
dever…
por quê?…
faça!…
por que não?…
viva!…
curta!…
aproveite!

Entre todos os porquês, aquele com mais força, e até com mais peso, era o de “por que meu coração se sente tão mal?” *

Ao longo de toda a vida eu me cobrava um encaixe na normalidade, um encaixe na dinâmica social de estar bem, de ter de se alegrar com aquilo dito alegrável;
para muitas pessoas, estar triste quando dizem que se deveria estar feliz é uma tragédia;
é como se silenciosamente se traísse o pacto social de uma felicidade fantasiosa;
busca-se tão profunda e incessantemente por uma dose da poção feliz, que pouco ou quase nenhum tempo resta para se perceber gente em si.

Isso tem sido cada vez mais confrontado aqui dentro de mim;
cada dia mais me observo e percebo o quanto do que tenho feito é como uma máscara que utilizo e que ao longo da minha vida eu utilizei para transitar nos grupos sociais sem ser ainda mais rejeitade;
às vezes, e não raramente, nos escondemos atrás de máscaras para que não vejam a nossa própria face como ela é;
no entanto, com o passar dos anos nos acostumamos ao peso da máscara, à tensão de seus elásticos, à sua textura que se adere à nossa pele…
e nos acostumamos tão bem que não a tiramos mais, as usamos na rua, em casa, nos sonhos, e nas miradas ao espelho…
com o tempo, nem nós mesmes somos capazes de desconfiar que na nossa face jaz uma máscara com a qual também passamos a nos identificar… tudo isso porque com ela em nós somos o que querem que sejamos para o conjunto social.

[A única coisa que essa máscara não cobre jamais é a melanina e as consequências de ter uma pele escura…]

Um dos traços autistas, que se revela a cada dia é a necessidade de um distanciamento social;
a bateria social se esgota, se torna tão baixa que a energia usada para se disfarçar não é mais suficiente;
mesmo sabendo que não queremos seguir a norma social de ter de estar sempre feliz e animade com tudo, nem sempre conseguimos lidar com a falta do desejo;
a normatividade feliz nos ensina coercitivamente que não estar bem e não estar sempre alegre é um fracasso… em geral compramos essa ideia mesmo que discordemos dela…
percebemos, com muita sorte, que nem sempre estamos dispostes, interessades e interessantes,
mas a culpa social de transgredir as normas de felicidade nos abate ao ponto de não termos tanta força assim para resistir à culpabilização: nos culpamos por ser como somos.

Dizer “Não!”, demonstrar que não há um interesse em algo ou alguém; ser mais acertiva, demonstrar incômodos, etc, são ações complexas e difíceis para a maioria das pessoas;
porém, isso se intensifica se você é uma pessoa racializada, se não é um homem, se é neurodivergente, ou se pertence a outro grupo dissidente da hegemonia social.

Um dos resultados é o esgotamento.
Me sinto esgotada…
minhas energias já acabaram;
meus desejos mais vibrantes, hoje desconhecidos, ficaram em algum lugar que não tenho mais acesso.

Todo dia é a mesma noite na terra em que o desejo por existir não é mais nítido;
por mais que digam, por mais que dissertem sobre o valor do viver e ainda que nos apresentem argumentos que tenham algum sentido, a vida em si carece de qualquer sentido aqui dentro da minha mente;
o peso da raça é sem dúvidas aquele que um dia vai acabar de esmagar todas as esperanças e projetos de futuro que quiçá ainda consigo desenhar aqui dentro.

Existir é um peso!
A existência é um fardo quando sua cor é preta.

Queria reclamar mais das coisas sem precisar me preocupar com o que elas querem dizer para quem as lê;
mas quem está preparada para essa conversa?

Quem é capaz de ouvir palavras frias e, sem esperanças e honestamente, escutá-las?
Quem é capaz de escutar essas palavras sem que precise ativar o salvacionismo e a piedade?
Que pessoa consegue ser escutadora sem querer ser escultora da outra vida?

Me calei, sim me calei!
Eu já disse tanta coisa, que hoje o silêncio é quem mais tem falado;
para cada texto publicado, certamente uns cem outros foram abandonados antes mesmo de virarem parágrafos.

A existência é um fenômeno inesperado;
ela é casual; despretenciosa; sem propósitos;
ou criamos um propósito, ou ele não existirá…
ou criamos um propósito, caso queiramos um, ou assumimos os propósitos criados antes de nós;

Existir é um desafio;
quanto mais existimos,
quanto mais pensamos, lemos, escrevemos e elaboramos,
quanto mais vivemos,
mas temos desejo de morrer.

Quanto mais consciente uma pessoa se torna de si e do mundo
menos ela tem vontade de viver.

Para existir é preciso viver;
mas nem todes que vivem existem.

O conhecimento é uma sentença…

Para existir é preciso se anestesiar em algum grau;
quem vive sem opióide está certamente prestes ao colapso;

A neutoripicidade é um fenômeno da nossa era;
a neurodivergência é o que somos;
somos neuroatípicas que buscam uma normalidade;
foi preciso inventar a patologia para nomear o verdadeiros ser humano;
enquanto isso, nos sinais de normalidade, de saúde e de bem-viver, se escondem aquelas pessoas que jamais se entenderão.

Chega um ponto em que ser alguém normal é ser alguém doente.

É frenética a busca por um encaixe;
nos recortamos em tantas partes e a nós costuramos tantas outras, que no fim nem sabemos mais quem somos;
A gente quer fazer tanta coisa;
tanta coisa de fato incrível e necessária;
coisas realmente importantes…
mas em que momento a gente vive a nossa vida?
Sabe?
Aquela vida que é só sua, onde você habita o seu ser, a sua vontade, o seu desejo.
Ela existe?
Quando a vive[re]mos?
Quantos desejos a gente vive e quantos desejo a gente apenas deseja?

Antes do dia 19 de setembro, quem era eu?
Existiu um alguém, em algum momento antes, que já quis tudo, que já mirou longe;
houve um tempo em que o vento forte apenas me convidava a ajustar as velas;
mas esse tempo se foi…

“Houve um tempo
E de repente tudo deu errado
Eu sonhei um sonho no tempo que passou
Quando era grande a esperança
E valia a pena viver
Eu sonhei que o amor nunca morreria
Eu sonhei que Deus seria misericordioso

Então eu era jovem e destemida
E os sonhos eram feitos, e realizados, e desperdiçados
Não havia resgate a ser pago
Nenhuma canção não cantada
Nenhum vinho não degustado

Mas os tigres vêm à noite
Com suas vozes suaves como trovão
Enquanto eles despedaçam sua esperança
Enquanto eles transformam seu sonho em algo vergonhoso”
**

Será que se aquela alma otimista e feliz existisse aqui dentro eu ainda assim teria feito o que fiz?
Será que o que fiz será refeito, dessa vez corretamente?

Será?
Ser há?
Se foi?
Se vai?

A existência é um processo complexo e caótico;
precisamos nomeá-la se quisermos nela habitar;
mas penso que é preciso, antes, querer.

* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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Capa: Raquel Teles Medrado