E o tempo passa!
Escorrem-se as horas como um filete transparentes de água dum riacho;
não volta no seu curso, não regressa em seu turno;
transcorre, transforma, transeunte…
O tempo é o intervalo entre aquilo que percebemos e que deixamos de notar;
é a noção que temos de que algo que jazia aqui não mais se encontra como o era;
mas também a expectativa do não existir poder vir a ser…
Assim, num ambiente [supostamente] imutável,
em que não se percebe a alteração da luz, da temperatura e do som,
o tempo não existe como uma ideia;
ele não é perceptível, não pode ser contado;
de toda forma, ele continua passando.
E quando o tempo passa, ele não deixa nada igual – mesmo que nada pareça mudar.
Por vezes, algo semelhante se imita na mente de algumas pessoas:
elas congelam os desejos, as ânsias e os objetivos que elas desenharam para a suas próprias vidas;
e fazem o mesmo para nós;
planejam para nós um futuro e o congelam em si, em nós;
congelam nossas existência nesse projeto…
fazem isso em suas mentes;
ali estamos sempre iguais,
sempre dentro das caixas do “deve e não deve”, “certo e errado”, “aceitável e abominável”.
Não bastasse essa obsessão,
esperam fielmente que as ideias que outrora figuravam somente em suas mentes torpes e sedadas se transformem em realidade objetiva:
nossa realidade tornando-se suas;
mas eu já disse: o tempo passa!
Está passando!
No momento mesmo da abertura dos olhos dessa gente,
quando “resolvem” olhar as coisas como elas se mostram,
vem o choque!
Olham para nós ao passo que também se olham;
miram nossos corpos como se mirassem uma aberração;
Olham então uma imagem totalmente diferente daquela esperada,
esperavam aquela engendrada e protocolada por uma criação tradicional e conservadora;
que de tanto conservar normas passa a normatizar;
que de tanto se conservar se estragam.
E é nesse momento que começam os espantos e as adjetivações,
ativam as condenações de um cristianismo adoecido e adoecedor,
que diz amar a todos, mas que não suporta a menor diferença;
que não suporta um corpo que não esteja pregado na cruz da obediência,
cravado com os cravos de uma vigilância fanática
e adornado com uma coroa de julgamentos agudos;
o sangue Cis escorre, e chamam isso de Trans.
É nessa hora que o diferente se traduz em vulgaridade, lascívia, pecado
e, quando não muito, torna-se o próprio demônio;
anjos e demônios habitam o mesmo corpo,
apenas trocam o turno num piscar de olhos;
mas dos olhos alheios…
Ora, o demônio é a nossa invenção para explicar as coisas assustadoras que mudaram com a passagem do tempo e às quais fomos totalmente incapazes de compreender.
Acontece que, ao menos na minha realidade, as coisas passam,
eu sou diferente de quem fui ontem.
O tempo passou!
E saiba que hoje eu não sou mais um homem,
nem sou uma mulher,
nem eu sou você!
você não é você!
O vidro opaco da jaula em que me forjei e que me forjaram,
hoje se torna aos poucos translúcido…
O corpo Cis não imagina o quanto é produzido na artificialidade;
não cogita olhar para si em frente ao espelho,
não consegue ver que sua imagem,
sua forma e sua estrutura não estão ali,
e não se veem porque não existem;
o Cis é uma ficção da imaginação humana…
Dizem que o corpo Trans é aberração;
mas dizemos que o corpo Cis é alucinação…
ser Cis é cisquecer que existe uma vida pulsante;
cisquecem de um mundo onde o “não” é permitido;
não são permitidas revoltas, perguntas, distorções;
o cis é freneticamente fanático por ser Cis.
Verdades inegociáveis guardam mentiram imperceptíveis…
O maior trunfo da cisgeneridade é quando ela,
em cada corpo que invade, produz a [falsa ideia de] identidade;
quando a corpa Cis se identifica ao ponto de não se questionar,
quando se ama ao ponto de tomar por pele uma armadura estranha,
e quando defende seu jeito de um jeito violento,
aí essa corpa fez triunfar a cisgeneridade,
e a cisgeneridade faz triunfar essa corpa;
um movimento de apagamento, mas que dizem ser triunfo.
Quanto mais um pessoa se identifica ao ponto de não poder se questionar,
quanto mais patologias são postas como tijolos da cisgeneridade heteronormativa,
a cada novo arame que ata o medo, a cisforia e o vazio de existir,
mais então se é Cis.
O corpo Cis não existe!
Mas não é que ele não existe de fato;
até existe,
mas existe não [r]existindo.
O corpo não é Cis, ele está Cis;
“não se nasce Cis, torna-se”
“não se nasce Cis, se é tornado”
é feito assim,
é desenhado desde muito cedo,
antes de haver embrião, já havia um corpo desejado como Cis;
é preciso trans.tornar-se
Se por acaso essa expectativa é quebrada,
chama-se de transtorno;
é transtornar ao possível quando se reivindica o próprio ser;
é tornar-se vivível uma identidade que não se adequa à adequação;
mas dirão que somos nós os corpos doentes e quebrados;
chamam-nos de aberração,
confusão;
distúrbio de identidade;
disforia de gênero;
disfunção reprodutiva;
adulteração da biologia;
dizem que inventamos tudo isso para contrariar o sistema social de gênero.
Sim, somos o transtorno que torna a si,
transbordamos os limites,
transmutamos os sentidos,
transferimos os códigos,
transitamos o intransitável,
transformamos a forma;
transcorremos os caminhos bloqueados,
transcrevemos as histórias silenciadas…
trans bordaremos a imagem que nos pertence;
trans bordaremos as bordas que nos impuseram;
trans tornaremos à nossa identidade roubada;
trans formaremos os nossos espaços, corpos, desejos e anseios,
erraremos o erro…
consideram que não temos a lucidez cisgênera,
e nisso acertam, pois o Cis é opaco, jamais translúcido,
a nossa lucidez se dá no contraste, na mirada ao abismo, no próprio abismo que somos nós;
nossa humanidade é translúcida,
mas a sua também, pois você nem é Cis, você está!
Inventaram o homem, criaram a mulher,
forjaram a heterossexualidade,
deram cota à bissexualidade, ao pan, ao ace;
tudo para dizer que existe um referencial gerador,
ao criar o caminho central, criaram seus desvios, e a isso chamam de outros.
Nada disso é espontâneo,
nada é feito pelo desejo do ser,
“Isso” o quê?
Você!
Acontece que para corpos produzidos na exaustão de uma afirmação,
para subjetividades diluídas no caldo cisgênero,
sujeitas formadas no Cistema,
tornam-se criaturas cansadas mesmo quando se dizem fortes;
é preciso transtornar-se.
para muitas corpas Cis, questionar-se é tão doloroso (senão mais) quanto assumir-se a ficção;
quem levou uma vida toda erguendo um castelo de areia,
quem montou cada pedaço dessa construção arenosa
certamente vigiará insistentemente sua obra,
pois basta a maré subir e as ondas se agitarem para seu castelo desmoronar;
e deve ser muito exaustivo tentar secar o mar todos os dias para que ele não avance sobre seus sonhos frágeis.
A indústria do gênero é racista!
é separatista,
é assassina,
é mutiladora…
o Cis é um projeto de morte,
um projeto colonial.
Você não existe!
Você se torna existência!
Uma existência presa no laboratório.
Nessa maldição do corpo Cis você precisa ceder a sua vida para seguir vivendo;
a maldição é que, para cada dia de vida, você aceite à noite morrer por dentro;
um dia de vida, um vida de morte;
mas não a morte inevitável,
e sim a morte produzida para te desfazer.
O seu corpo não pode habitar o seu desejo,
o seu desejo não pode caber no seu corpo,
para existir você precisa abrir mão da sua existência;
isso é ser Cis:
existir não existindo.
E a maldição não acabou!
Você precisa se negar para que se afirme!
precisa não se questionar para que não te questionem;
num Cistema de violências, num contexto de opressão,
verdades incontestáveis são postas como o dito natural.
Do que adianta dizer se não querem ouvir,
mas, dizemos assim mesmo:
mais valem perguntas que podem ser desmontadas, fragilizadas, desfeitas e negadas
do que verdades que sequer podem ser tocadas.
Duvide de tudo que você não pode duvidar!
Se disseram que algo é imutável,
se afirmaram que algo é eterno,
atente-se!
Esse algo provavelmente é cistematicamente mantido sob violências discursivas…
“Ah, mas eu me identifico como homem!”
“Ah, mas eu me vejo exatamente como uma mulher!”
“Não sinto incômodos!”
“Por que não posso ser Cis?”
“Por que vocês dizem que não existimos?”
“Se não sou Cis, sou o quê?”
Tão ficcional quanto eu, assim é você!
a diferença é que não me prendo ao ficcional como algo imutável,
minha ficção pode ser modificada;
não o assumo como sendo tudo que pode ser,
não tomo para mim o fardo da imutabilidade;
o que é hoje pode deixar de ser amanhã,
e isso me transforma…
Passamos tempo demais afirmando um lugar que disseram ser nosso;
pintamos de rosa e de azul as grades da nossa gaiola e cremos estar decorando nosso lar;
colocamos pênis nos homens e vulvas e vaginas nas mulheres;
afirmamos o masculino em cima e o feminino abaixo;
o hétero é o funcional, pois dizem que reproduzem…
afirmam que na natureza não tem o trans,
“os animais não precisam ser trans nem nada disso que humanos querem inventar”
“um gato nasce, cresce e morre gato, não precisa se reivindicar peixe”
Se esse argumento é verdade, o que fazemos aqui lendo esse texto na internet?
Porventura os animais usam smartphones?
Usam internet?
Criam indústrias para poluir o ambiente conscientemente?
Animais se reúnem aos milhares para assistirem a uma divindade cantando Alien Superstar?
Mais que isso: e quem disse que nós não somos animais?
O que acontece é o que pode acontecer!
Se estamos é porque podemos estar!
O que acontece é o que tem como acontecer.
A grande questão não é se acontece ou se deixa de acontecer,
mas porque acontece do jeito que acontece e só desse jeito controlado!
Inventaram a diferença sexual nos mais diversos laboratórios;
a biologia classificou os formatos, os cromossomos, as concentrações moleculares;
a medicina criou o corpo adequado e funcional;
a história selecionou que narrativa priorizaria nos contos fanáticos,
a sociologia e a antropologia elencaram qual a cor desses sujeitos se tornaria aceita na suas elucubrações;
a filosofia definiu quais porquês seriam feitos com mais forças e quais seriam cistematicamente negados;
a psicologia e a psiquiatria modelaram em seus laboratórios da mente quais os comportamentos seriam lidos como normais e quais seriam patológicos;
E o que essas abordagens têm em comum é a cor, o corpo, o desejo e o local de quem descreveu essas verdades:
brancos;
cisgêneros;
homens;
heterossexuais;
norte-globais;
fanáticos de si.
Os corpos angustiados construíram saberes para aliviar suas angústias,
e viram que era bom;
não contentes e se compreenderem em suas distorções,
não satisfeitos em dar nomes às suas alucinações,
resolvem então que todos os mundos deveriam ser medidos por suas réguas tortas e sanguinárias.
O branco criou o negro;
o cis [re]criou o trans;
o homem criou a mulher;
deus montou o diabo;
e você me fez – ainda que só na sua cabeça!
É preciso muita lucidez para rejeitar esses constructos;
um corpo trans lúcido não aceita [re]viver a opacidade do corpo cis;
todes somos coisa alguma;
ninguém é cis,
quiçá ninguém seja trans;
ninguém tem orientação sexual,
mas nos orientam sexualmente numa sociedade sexualizada;
a supremacia do genital quer demarcar,
quer definir o que carregamos entre as pernas,
querem medir os volumes e os comprimentos,
quantificam e qualificam aquilo que nem está à vista;
essa é a Supremacia da Genital que estão falando por aí:
é sobre um sistema sexual que classifica corpos pela dedução de um órgão que nem está sempre à mostra;
e com base nisso, com base neles, querem dizer o que e quem somos.
Que nossos corpos possa ter pênis, vulvas, vaginas, dildos, nenhum, todos;
e que possamos ser o que somos sem precisar que nos coisifiquem;
que nossos feitiços nos façam;
o nosso olhar foi distorcido para não enxergarmos nossas vontades;
a genital foi desenhada no laboratório para definir nossa identidade;
o sexo não é biológico, é biopolítico;
a reprodução foi posta como o marcador;
mas nós transgredimos!
Sim, somos o transtorno que torna a si,
transbordaremos os limites,
transmutaremos o sentido,
transferiremos os códigos,
transitaremos o intransitável,
transcorreremos os caminhos bloqueados,
transcreveremos as histórias silenciadas…
trans bordamos a imagem que nos pertence;
trans bordamos as bordas que nos impuseram;
trans tornamos à nossa identidade roubada;
trans formamos os nossos espaços, corpos, desejos e anseios,
Hoje, na soma das forças, nas conjunturas que nos unem,
nos meandros das tecnologias de gênero,
no subsolo, no telhado, nas fronteiras, nas margens,
nós estamos [r]existindo!
A nossa imagem será confundida,
a sua imagem será questionada, e espero que seja feita por você também!
Não é loucura olhar para si e se perguntar “e se?”
Não é desatino pensar no que poderia ser e que não foi!
e se for, que sejamos loucas desatinadas!
Está tudo bem se sua identidade não é a normativa;
mas também está tudo bem se você não performa uma ambiguidade estética!
Ter de de se adequar a uma estética para poder transgredir pode ser a maior prova de adequação.
Experimente por um segundo ter a lucidez de não ser uma pessoa cis-lúcida!
Experimente o vir a ser;
teste seus desejos perversos,
prove o sabor de ser puta,
experimente mentir sua identidade que você nem escolheu,
traia a classe cisgênera!
Saboreie a textura de um corpo com pelos, a lisura de um corpo desmatado, as cores de uma pele pintada;
despoje-se daquilo que disseram ser ele ou ela, tente ser você no seu quarto, na sua cama, no seu sexo, no seu beijo, no seu tesão, no seu afeto, na sua solidão;
beije bocas, lamba corpos, chupe genitais;
preocupe-se menos com o nome que dão às identidades projetadas;
mas aprecie o ser humano para além do desejo, para além do fogo;
acolha as diferenças, as quebras e rachaduras,
abrace o abraço!
Identidades importam, mas que sejam mais aquelas que o corpo também pode ser em vez de ser aquela que disseram ser a ideal;
abrace pessoas, não apenas rótulos;
ame as subjetividades, não somente as armaduras;
defenda a vida em vez de apenas sustentar bandeiras;
A lucidez não é cis;
o Cis nem existe;
ele subsiste ao discurso,
ele sustenta a colonialidade,
alimenta o capitalismo,
costura o racismo;
destitui o corpo e o empurra para um abismo.
Que nossas corpas possam ser translúcidas para que a luz do sol entre e floresça nossas florestas,
que possamos replantar nossas escolhas,
que possamos comer do fruto proibido do desejo;
que provemos da árvore que nasce em nós…
A nossa lúcidez e trans!
Somos corpas translúcidas!
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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