Sempre surgem aquelas falas de que é preciso – e muito – digerir tudo que eu digo:
“Nossa, como você tem falas profundas, sinto que preciso de um tempo para refletir sobre isso…”

Ora sou uma pessoa intensa demais,
ora sou muito misteriosa e confusa na minha maneira de agir;
mas nunca sou minimamente assimilável.
A menos que eu seja um corpo tomado por “conjunto intelectual”, tudo que eu disser será um excesso, um amontoado afetivo inadequado, um peso, uma trava libidinosa, uma temerosa e incompatível profundidade;
Tudo isso num contínuo e despojado jogo de [in]conveniências!

Do ponto de vista do meu conteúdo intelectual… bem, dizem coisas do tipo
“Nossa, como você tem pensamentos tão sofisticados e bem organizados, Andreone… você elabora tudo tão bem e com tanta consistência… é tudo tão didático, que me deixa sem palavras…”

Já quando se trata de minha afetividade, de minha demonstração de amor, ou de qualquer outra aproximação que deixe em segundo plano as [supostas] elaborações teóricas e intelectualizadas, o jogo praticamente se inverte ou se transmuta;
aí, repetidamente dizem algo como “Isso me confunde um pouco, não sei nomear o que estou sentindo por você! Preciso de mais tempo para decantar as ideias; preciso elaborar mais isso tudo aqui dentro, quero ir com calma…”

E nesse vai e vem das perspectivas produzidas ao meu respeito, nesse rearranjo de nomeações não-ditas que insistentemente se chocam com minha percepção de mundo, surgem vários “mais…” e “mais…”,
assim mesmo, desse modo persistente, brota um “mais…” após o outro;
são tantos, que nunca terminam… e logo menos viram ausência; e o “mais..” vira menos…

são tempos intermináveis de digestão e decantação que marcam um lugar já conhecido por aqui: o do preterimento silencioso; são amontoados de falsas desculpas para evitar a sinceridade…

São desculpas, pois, o mesmo que dizem ser “um jeito de agir” não acontece se o corpo desejado e mirado for um corpo branco.
Sobre corpos negros, migalhas de afetos, gotas de interesse, rios de desculpas;
sobre o corpo branco e “normal”, oceanos de insistências, de perdões e de reconsiderações;
o branco atrai rapidamente a atenção a partir de qualquer mediocridade que será tomada por grandiosidade e benevolência;
a menor das migalhas virará um banquete de semanas;
sobre o corpo racializado, sobretudo negro, um respiro descompassado será posto sob suspeita de anomalia;
um tom mais abaixo em sua fala será a profunda depressão declarada, com a qual as pessoas caçadoras de borboletas no final do arco íris não sabem [nem querem] lidar;

pensamentos impermanentes são aceitos, apenas se saírem de uma mente branca;
se brotam de mentes racializadas, logo dirão “Nossa, mas vocês são tudo complicados, né?
Eu até tento, mas não consigo lidar.”
[…]
e a prioridade dessas pessoas será sempre branca. Então, que fiquem com ela!

Por isso não acredito quando somente para corpos dissidentes dizem“Preciso ir com calma”.
Por isso meu pensamento nominalista não deixa de nomear:
não é “calma”, é medo!
não é “cautela”, é nojo!
não é “cuidado”, é mentira!
não é “conversa” nem “intimidade”, é despejismo!
não é “desconstrução” nem “limites”, é racismo e transfobia!

Mas como assumir tudo isso é também sentir a dor de se olhar no espelho da existência,
como declarar a si esses termos e essas sentenças é no mínimo ter de perceber que a cartilha da desconstrução foi insuficiente para abandonar os preconceitos internos, então jogam suas práticas perversas na conta da socialização que tiveram: “a culpa é do meio onde cresci”;
estabelecem a culpa e encerram o debate;
contudo, dizem que estão aprendendo;
querem sempre aprender, só “esquecem” de desaprender os hábitos antigos;
hábitos esses que devoram, um a um, os aprendizados novos;
verdades que vorazmente engolem outras verdades;
e seguem sendo as mesmas de sempre, porém mais robustas e mais fortes – e ainda dirão que, por ser maior e mais vigorosa, essa é uma verdade nova e desconstruída;

Pensam a si como sendo criaturas corajosas e desbravadoras,
querem entrar por portas diferentes, e escolhem muitas portas,
cada uma de uma cor do arco íris, cada uma com uma bandeira diferente,
mas esperam que estas portas se abram magicamente sozinhas;

querem dançar na chuva sem guarda-chuvas, mas dizem que não conseguem, porque se molhariam, e nitidamente explicitam que não querem se molhar. Dizem querer aquilo que evidentemente não querem, mas mentem para parecer uma descontrução.

O que emerge desse discurso normalista é uma quimera sentimental;
é como se tudo que eu fizesse e que me deslocasse de uma imagem projetada em suas mentes soasse inadequado;
várias coisas num só corpo, numa só anormalidade.
Nessa dinâmica estranha, nesse fazer que se desfaz num sopro, vejo que esquisitamente as coisas se definem conforme elas se definham.

Isso é no mínimo “curioso”, né… ou, ao menos eufemicamente, assim se apresenta, pois, fica parecendo que sou uma espécie de “anomalia afetiva”, que não pode ser vivida naturalmente sem grandes adequações ao estranhamento inevitável;
como se eu fosse um “poço” fundo demais, ou um abismo terrivelmente sedutor, mas para o qual não se deve olhar por muito tempo… como vão dizer, “Preciso elaborar mais isso tudo aqui dentro.”

O lado bom é que eu sei que não sou isso que pintam de mim, não sou a projeção do outro ser.
Da mesma maneira, tenho consciência de que eu não ofereceria menos profundidade do que essa que em mim habita, justamente porque não ofereço o que não posso cumprir nem aquilo que não quero ser.
Mas parece que isso tem soado como inadequado.
Inadequadamente como ser quem eu sou.

Sem dizer que me parece algo inclusive pesado para muitas pessoas essa tentativa de aproximação que tentam comigo, sobretudo quando ressaltam seus momentos de suposta desconstrução… dizem que precisam ir com calma, que não querem ir muito rápido porque estão experimentando isso pela primeira vez,
[me pergunto se sou eu uma droga, um entorpecente, um objeto na bancada de seus laboratórios medíocres?]
ainda complementam as farsas com dizeres de que não querem machucar ninguém.

Mas é como se essas pessoas não pudessem sequer molhar a ponta do pé, pois temem o absurdo de cair e se afogar [ou de me afogarem?].
Principalmente quando dizem [várias vezes!] sobre seus receios de não dar conta de manter sempre nesse nível de profundidade. [Que solicitou essa adequação? Eu que não fui!]

Minha mente, lucidamente, não deixa de pensar em outra coisa e noutro sentido senão que
essas pessoas não topam ser honestas;
não topam dizer a verdade nem pra si nem pra mim…
mas porque eu tenho que pagar a conta?
Levem-na com vocês!

Quando dizem que precisam de tempo para organizar seu espaço interno, em todas as vezes me pergunto se estou sendo invasive, se estou pressionando ou, que seja, exigindo alguma decisão;
mas olhando com minhas lentes,
eu penso, penso, penso…
eu olho, olho, olho…
e concluo que não;
acontece que cada pessoa tem seu tempo, não é mesmo?
E, em tese, tudo bem serem assim tão diferentes, forçar encaixes são encaminhamentos para desencaixes;
mas por que evitam tanto lidar com suas verdades?
Será que ao menos as conhecem?
Querem conhecê-las?
Não sei bem…
e pelo pouco que sei e entendo, duvido muito de qualquer “sim” que responda a essas perguntas!
E deixei de me importar caso considerem prepotente essa visão.

Apesar disso, gosto sempre de reiterar que de modo algum quero que meus questionamentos pareçam alguma insistência por contatos;
podem ser desejo, mas não insistência;
sei bem que por essas coisas não se insiste;
ou elas acontecem ou não será saudável se for forçada;
mas acho importante a gente dizer/sentir o que está havendo/vendo para também compreender melhor os processos e, principalmente, saber até onde de fato bancamos as coisas que achamos que bancamos, saber qual o momento de nivelar, reformular e até de abaixar as expectativas.

E parece que eu tenho entendido, em partes, como isso se dá em muitas relações;
é o problema do ser inadequado ao meio, é o neurodivergir das respostas corriqueiras, o oferecer mar a quem só conheceu a piscina;
é como oferecer as labaredas de uma fogueira para quem só acendeu efêmeros palitos de fósforos;

mas também pode ser o inverso,
e assim eu me posicionar no outro lado das questão:
pode ser, no meu corriqueiro neurodivergir, eu esperar por respostas neurotípicas que eu não entendo muito bem; pode ser eu receber um mar quando só aprendi a nadar na minha piscina de plástico adquirida no mercado ilícito das subjetividades; pode ser que estejam me oferecendo as chamas de uma fogueira quando só aprendi acender palitos de fósforo em dias de vento.

Pode ser qualquer coisa, ainda assim serão coisas inadequadas.
Ou eu performo o modelo corretamente, dentro de um Cistema de expectativas, ou terei de me adequar para a ele pertencer e nele transitar;
caso nenhuma dessas possibilidades sejam praticáveis, caso nenhuma dessas opções sejam válidas,
o projeto é divergir,
constranger,
incomodar,
afastar,
afetar,
soar,
sair.

Confesso, não sei se tenho elementos o bastante para isso que chamam de interação social;
tenho certeza de que coleto os sinais que recebo e que busco maneiras amplas de interpretá-los;
sei também que pessoas têm maneiras e motivações diferentes para agir em direção aos seus afetos e à construção deles;
entendo que, sempre que possível, cada pessoa vai priorizar aquilo que fizer mais sentido em suas vidas;
pessoas têm suas ocupações, suas prioridades, seus negócios, e não tenho a menor dúvida do quanto isso demanda energia e o quanto isso produz e demanda de carga mental-emocional.

Só não deixo de perceber o quanto mentes como a minha são machucadas com práticas assim;
o desinteresse nítido, mas que vem acompanhado de falas que apontam para um desejo de permanência são difíceis de associar;
essa percepção parece ser tranquila, ou até “normal” em mentes neurotípicas, são coisas normalmente aceitas e até tomadas por cotidianas;
porém, acredito que eu percebo assim porque particularmente valorizo muito a demonstração de interesse, e isso advém de uma vida que se sente à flor da pele todos os dias;
embora a metáfora, a ironia e a fantasia permeiem meus modos de expressão, existe uma literalidade que me escapa pelos dedos, que assimila cruamente o viver, dessa vez sem poesias;

é assim por inúmeros motivos e por várias experiências de vida;
corpos como o meu, ou aceitam afetos e interações sejam eles como for, dada a escassez baseada na raça, ou então se protegem para que fiquem onde o interesse, para além de existir, seja nitidamente demonstrado de alguma maneira que possa também ser percebido.
Eu aprendi a escolher o segundo modo.
Com isso soltei no chão as grossas máscaras sociais e hoje recuso a recolher e a [re]colar os fragmentos manchados de sangue que se espalham pela história.

Mesmo com tudo isso, e apesar da “contradição” de redigir e de outro modo esse textão, eu ainda tento ficar na minha.

[Primeiro] Tento “ficar na minha” porque entendo que certos incômodos que dizem respeito a mim e ao meu jeito podem, ainda que sutilmente, soar como cobranças para quem não está necessariamente no mesmo momento-movimento que eu;
e embora eu seja uma pessoa que valoriza e que inclusive tem uma necessidade explícita por presença (material e/ou simbólica) para dar sentido ao que eu estiver vivendo, aprecio quando isso é genuíno, quando acontece de modo “orgânico”.

Não espero demonstrações gigantescas de afeto nem de interesse, mas notar, por exemplo, longos dias entre respostas básicas, ao perceber que sou procurado apenas em ocasiões de prestação de serviços; saber que todo interesse que envolve o meu corpo na verdade orbita a minha suposta intelectualidade; ser sempre um corpo visto em situações em que esse corpo nem é importante assim,
tudo isso me parece muito desproporcional; insistir por desejo, presença e interesse, me parece no mínimo neurotípico demais; e isso até hoje não consegui aprender a realizar.

[Em segundo lugar] Eu não quero me posicionar no plano de ter de buscar por contato ou interação;
gosto de juntes cultivar e viver a mutualidade;
aquilo que pode existir de fato por desejo, vontade e possibilidades mútuas, que exista;
essa coisa de que “quem quer corre atrás” pode valer para o sistema mercadológico;
pode ser uma regra branca de consumo de tudo que existe;
isso produz pessoas que de tanto viver correndo se cansam e morrem no caminho;

eu quero uma vivência que possa ser também calma, que possa permitir sentir que quem se busca se busca por desejo sincero de convivência, e não que seja por pura conveniência.

Se existe uma ideia de que tipicamente o amor precisa ser sinônimo de desgaste e de sofrimento, um nadar contra a corrente, então escolho divergentemente um amor emergente de águas limpas, onde corpos são vistos, em vez de produtos, como gente.

“Ah, mas você só fala de afeto! Que repressão toda é essa?”
Acho sintomático quem não entendeu que nada existe nesse mundo que não atravesse, na ida ou na volta, o corpo;
e se atravessa o corpo, afeto o ser;
quem nega isso só o faz ilusoriamente;
numa teoria imperial que colonialmente separa razão e emoção, corpo e mente, o que os olhos não vêem, sim, o corpo sente.
São nos afetos que todas as dinâmicas e discursos socioculturais se expressam em sua materialidade.

Pessoas entram e saem das nossas vidas numa dinâmica absurdamente imprevisível;
cada qual entende como pode lidar com essa imprevisibilidade… eu sei que é bem complexo e muitas vezes nem é possível lidar bem com isso na somatória das nossas demandas;
ainda assim, gosto de [e fui aprendendo a] viver e desejar as presenças presentes;
priorizo os afetos, já que outros campos da vida material estão ainda mais imprevisíveis; a vida é de fato um sopro, respire com calma!

* * *

Não deveria ser um mistério que disso que foi dito até então nada seja por acaso,
existem origens,
mecanismos,
dinâmicas,
discursos,
protocolos,
normatividades;
tudo isso e muito mais constrói aquilo que, adequadamente formulam o que é ser normal e o que é e pode ser divergente.

uma clínica racista, transfóbica e misógina chamará de perseguição e vitimismo, de disforia e de deslocamento da realidade o que, em vez disso, é a reação de uma vivência racializada numa sociedade racista, o não pertencimento de identidades trans numa sociedade cisgênera e o enfrentamento de mulheres diante do patriarcado.

Da mesma maneira, uma Clínica patologizante e normalizadora dirá que é louca a pessoa que não toma para si as condutas e os códigos convencionados por uma dada normatividade. Em todos os casos, a branquitude colonial desses saberes querem ditar o que é ser normal, querem medir, estipular e delimitar o que é ser humane.

Nos perguntamos ainda essa semana: “Quem pode ser uma pessoa neurodivergente?”
Que palavras, que vozes, que atestados e que saberes constroem o que é normal?
Quem e o que escaneia e define o patológico?
Quem designa a neurotipia?
E, mesmo enquanto neurodivergente, quem tem direito de ser assim?

Pensar sobre autismo [em mim] tem me feito desromantizar [ainda mais] muitas ideias sobre interações humanas, assim como tem me feito olhar mais para mim e para os meus limites,
muitos dois quais eu desconhecia ou no mínimo negligenciava.
Me faz perceber o meu corpo no social e o social no meu corpo.

Quando me perguntam se fui diagnostocade, eu digo que não fui;
pois de fato não fui!
E esse é um ponto de reflexão [sobretudo filosófica] que tenho
e sobre o qual reflito;
não tenho nitidamente colocado se eu buscarei um diagnóstico médico.
Certo é que não desconsidero totalmente tal possibilidade;
muito menos desconsidero a importância de um diagnóstico para muitas e muitas pessoas, mas ainda não sinto estou buscando por um;

digo, neste momento não estou buscando o laudo emitido por um agente profissional.
Me entende?
Nem por essa razão deixo de pensar a esse respeito, sobretudo considerando o discurso clínico sobre nossos corpos;
são tantas variáveis, que qualquer reflexão apressada poderá ser insuficiente.

Lembro-me sempre de uma frase de Franz Kafka, em seu livro “A Metamorfose”: “[…] ele não esqueceu de recordar a si mesmo, de tempos em tempos, que reflexões frias, mesmo as muito frias, são melhores do que decisões desesperadas.”
Não chamo de uma decisão desesperada a busca por um diagnósticos;
mas penso sobre as várias vias de encaixe às normas e ao pertencimento às quais nossas subjetividades são direcionadas dia após dia.

Eu tenho buscado por um encaixe desde que sou capaz disso, e jamais negaria esse fato.
E hoje sei que isso vem de beeem longe.

Nesse livro de Kafka, Gregor Samsa acorda metamorfoseado em um inseto;
ele está alí, sem controle de seus movimentos, refletindo friamente sobre sua existência, enquanto chove lá fora, enquanto o restante humano de sua família humanizada está a viver como sempre fizeram;
Ele não é mais alguém “normal”, ele não pertence mais ao conjunto de códigos que fazia dele um ser incorporado à sua família;
tudo que ele era deixou ele de ser quando passou a ser outra coisa jamais existida;
Gregor divergiu da norma e das expectativas, ele era uma outra coisa, um outro corpo, um outro [jeito de] ser.

E não muito longe dessa metáfora, a questão do racismo sempre me fez sentir como um inseto no quarto da raça;
se Gregor acordou pela manhã metamorfoseado em um inseto, quiçá eu tenha nascido nesse corpo coberto por uma carapaça de melanina, nasci inseto num mundo em que humanos são brancos.
Não que de fato fora assim, mas na comparação, nem é descabida a proporcionalidade que as coisas assumem no mundo material.

Depois, a identidade de gênero.
Não me identifico como homem, não sou cis.
Me identifico como pessoa não binária;
e não imaginava quantos desafios teria nisso tudo.

E nesse complexo universo de metamorfoses, vem o autismo;
ele tem sido cada vez mais nítido na minha constituição subjetiva e material.
Eu queria [talvez?] gostar mais da vida;
dizem que quem ama viver cria significados positivos com mais facilidade, mas não tem sido algo que eu tenha buscado tanto assim.
Não quer dizer que nunca o busquei, apenas representa que hoje isso não pertence ao meu campo de buscas, a tristeza não é minha inimiga, o desencanto não é o meu tormento, nem a desistência é o meu fracasso.

O encaixe, a adequação e a disciplina fomentam o nosso ser-estar-social;
quem faz isso melhor, supostamente que melhor se mantém;
mas fazer melhor está longe de se sentir bem ao fazê-lo;
e talvez seja essa a própria existência tal como desenham e pintam na modernidade.
E eu [e quiçá nós] quem não nos encaixamos nela como se espera.
Daí as profundas “”adaptações psicossociais”” (ou, estratégias de convívio?) para manter-se nos grupos.
Mas com o resultado de algumas disfunções e de muitos prejuízos às pessoas autistas e demais neurodivergentes.

O neoliberalismo, numa velocidade absurdamente grande, tem produzido, ao meu ver, uma aceleração e uma potencialização dos efeitos disso sobre pessoas ditas divergentes [de raça, de gênero, de sexualidade, de neurofuncionamento, etc].
A maior perversidade é esse sistema despertar um incômodo notório somente em algumas pessoas;
a maioria, mesmo muito afetada pelas lógicas e ações capitalistas, ainda consegue conviver sem nomear o estrago;
algumas até o defendem, mesmo sendo todos os dias oprimidas por esse sistema.
O ópio do povo hoje é multifacetado e bastante criativo em suas formas e funções.

O neoliberalismo, e com ele o capitalismo, é corrosivamente:
racista,
transfóbico,
misógino,
capacitista,
intolerante,
genocida,
epistemicida,

Existiria neoliberalismo e capitalismo se esses e muitos outros pilares fossem destruídos?
Quem os percebe menos, tende a nomeá-los menos;
quem apenas os trata com fatalismo, dizendo que é assim e que não tem jeito, talvez também não o sinta, talvez só tenha aprendido que ele é supostamente ruim para o mundo.

Já para quem se vê nas marcações sociais que esse Cistema quer destruir,
para quem entendeu que ser diferente da norma é sinônimo de sofrimento e, sobretudo, para quem não consegue se adequar a essa norma, o peso de estar sempre sentindo a materialidade desses discursos faz doer o corpo.

Já me “acusaram” de sempre ligar o “todo”, de sempre olhar para tudo a qualquer momento, a qualquer conversa, a qualquer comparação: “Você não consegue ao menos uma vez na vida não problematizar tudo?”
Não! Não consigo!
E foda-se você e sua normalidade alucinante e violenta!
Essas pessoas se dizem abraçadoras, acolhedoras e empáticas, mas não conseguem ao menos uma vez na vida não agir violentamente.

Não é fácil para quem não consegue se desligar  do todo.
Mas o capacitismo exige uma igualdade nos modos de existir.
Talvez por haver vantagens em se desligar, ou fortes desvantagens em não conseguir o desligamento,
as pessoas que conseguem se “anestesiar” com mais facilidade e em maior frequência tendem a viver mais e “melhor” [ou menos pior].

Não se desligar está longe de ser uma escolha meramente individual;
minha tolerância ao que chamam de profundidade é muito alta, e isso é bom e ruim ao mesmo tempo;
ao mesmo tempo que me auxilia a viver nesse mundo agressivo, também afeta as minhas relações;
cada vez mais, e com muita intensidade, eu sinto o quanto eu não me desligar tem afetado meus vínculos.
Já tentei me desligar ao ponto em que certa vez tentei desligar a própria vida;
infelizmente não funcionou…
e tudo segue ligadamente por aqui, com todos os efeitos que disso advém.

Lembro-me que há uns anos um amigo diagnosticado com Síndrome de Asperger me disse, aqui no sofá de casa, que ele tinha dificuldade de manter a continuidade dos vínculos, e que isso acontecia de maneira “natural”, que não era por maldade nem por um desinteresse programado, mas que acontecia.
Só hoje eu consigo entender melhor o que ele dizia, e perceber que isso pode ocorrer de diferentes maneiras e intensidades.

Hoje, nomeando meus processos psicológicos, eu vejo que se eu mantinha vínculos tão intensamente, talvez foi assim porque eu queria manter um ideal de pertencimento também;
já que quando eu me afastava deles, eles se afastavam de mim;
ou, sendo mais realista, só mostravam o quanto já estavam afastados, mas que, talvez por um encaixe social, eu os trazia para perto, afinal, “devemos ser pessoas mais sociáveis”.

Eu tenho tido cada vez mais dificuldade em manter vínculos, porque, como não escondo, eu tenho um olhar realista-pessimista sobre a vida;
além de que falar disso, mesmo que com muita frequência, não me cansa, não me deixa “pra baixo”.
Minha tolerância para assuntos reflexivos, problematizadores, filosóficos e densos costuma ser bem alta.
O que não é assim para a maioria.
E sinto que eu ser desse jeito me afasta das pessoas, ao passo que não ser assim me afasta de mim.

E não sinto que quero ter de usar máscaras mais uma vez depois de milhares de vezes.
Prefiro ser como o isolado inseto no seu quarto escuro, ouvindo as gotas da chuva na janela, enquanto a família se reúne em prosa pro jantar na sala.

E a pergunta precisa ressurgir e ser destacada:
“Quem pode ser uma pessoa neurodivergente?”
Mulheres podem ser neurodivergentes?
Mulheres adultas?
Mulheres racializadas?
Pessoas trans?
Pessoas negras?
Pessoas submetidas CIStematicamente a um conjunto de opressões podem ser neurodivergentes?

Quando falamos de pessoas socialmente dissidentes, elas podem ser neurodivergentes?
Ou tudo que elas reclamarem será levado apenas para os estereótipos que sobre elas foi construído pela hegemonia cis-hétero-branca?

Certa vez, um amigue autista me disse o seguinte: “o que aprendi, desde criança, é que ao abrir a boca, eu causava estranheza… então, sempre preferi ficar só com meus pensamentos”.
Pessoas neurodivergentes buscam estratégias de existirem sem tantos sofrimentos, fazendo coisas que a neurotipia não exige de corpos ditos neurotípicos;
cada pessoa encontra uma maneira de se violentar para que, nessa dinâmica, sofram menos violências.

Ainda assim, o que foi dito acima por essu amigue me define em várias instâncias, com a diferença de que para me proteger eu fui por outro caminho:
elu é uma pessoa branca, eu sou uma pessoa negra;
então, se elu foi pela via da “auto”reclusão e do “auto”silenciamento, o racismo me impeliu a seguir a via de uma adequação acima da média.

Por ser uma pessoa negra e ver sempre oportunidades sendo reduzidas somente por conta da minha cor, eu “me convenci” de que eu precisava aparecer para ter o mínimo de recursos financeiros (e afetivos);
eu precisava ser especial, inteligente, em busca da ilusória perfeição;
se perfeição não existe nem no mundo branco, imagine num corpo negro, não-héterossexual e não binário.

Então, me construí nesse lugar de precisar ser muito capacitade em algo, o que não funcionou também…
mas ao menos me posicionei socialmente em lugares que talvez eu jamais tivesse chegado de outro jeito;
hoje não acho que gosto necessariamente disso tudo que faço, mas aprendi a acreditar que gosto, e, acreditando, gosto para sobreviver.

Pessoas negras e outras pessoas racializadas neurotípicas enfrentam similares questões, mas suponho que a diferenciação está em como vivenciam cada uma dessas e de outras múltiplas experiências;
de fato não é simples para ninguém, mas, se cotidianamente precisamos nos revestir de armaduras e de máscaras para fluir minimamente no tecido social, suponho que pessoas neurodivergentes-racializadas enfrentam a dificuldade de uma sensibilidade ainda mais dolorosa.

No geral, talvez seja mais fácil encarar a vida como uma grande cena, como algo que “tinha de ser assim”, e carregar a pedra da normalidade dia após dia nas costas, como quem carrega o peso de existir sem nomeá-lo assim;
talvez mesmo isso seja menos doloroso do que assumir que o que vivemos não está nada bem;
talvez seja menor atormentador encarar tudo dessa maneira caótica, sem tempo e sem folga, do que se ver em seu silêncio, e ao mirar pela sua janela notar o inevitável vazio do qual não se conseguiria escapar.

Quantas pessoas se sentem inadequadas?
Quantas pessoas passam a vida inteira se culpando de não atingir a meta que elas nunca consentiram em ter de cumprir?
Quantos hiperfocos são apressadamente chamados de neuroses?
Quantas vezes queremos fugir de um ambiente estressor e, como não podemos fazer isso fisicamente nos removendo daquele lugar para outro, criamos fantasias em nossas cabeças para lidar com aquela realidade objetiva?
Muitas pessoas têm outro ritmo, outra velocidade;
olham diferentemente para a passagem e sensação dos fenômenos;
nem todas [ou raras] pessoas conseguem se fantasiar por muito tempo, mas também raras são as que assumem isso para si;
o neoliberalismo deposita sobre as costas de cada indivíduo o peso do individualismo;
você tem que fazer tudo, precisa dar conta de tudo, precisa dominar a arte da imitação,
precisa produzir,
render,
sangrar,
seguir,
se cortar,
curtir,
vender,
vencer,
jamais se render,
sempre se arrendar.

E a autocrítica vem também!
A própria noção de neurodivergência que a clínica médica e psicológica sustentam, as próprias métricas que a biologização do corpo constrói e utiliza, os próprios critérios para nos posicionar entre o normal  e o patológico, isso e muito mais, são métricas de uma hegemonia branca, cisgênera, masculina e heterossexual.
Onde ficam os corpos não hegemônicos?
De que normalidade estamos falando?
Ainda não sabemos tudo que precisamos, mas precisamos saber que nossos corpos não são medidos pelas mesmas medidas hegemônicas.

Apesar disso, ou justamente por esse motivo, nos entender não-dentro de uma lógica de normalidade é uma parte de não querer aderir a ela também.

Nenhum fato social que se destaca como normal assim o é de modo apático ou indiferente;
a existência não é assintomática;
os discursos que constroem uma norma são os mesmos que destroem vidas e subjetividades;
uma norma que se ergue e se normaliza está sustentada sobre outros saberes, sobre outras crenças, sobre outros corpos;
e as normas se disputam entre si o todo tempo, a normatividade se sustenta a partir de seu poder de instauração e de se estender ao longo da história.

*  *  * 

Lidar com todas essas complexidades sociais e subjetivas, conhecê-las mesmo que parcialmente,
não mais negá-las, não transformá-las e coisas a serem eliminadas, e seguir acolhendo essas condições que, embora ditas divergentes, não são patológicas, requer resistência.

O custo de resistir é também aceitar e aprender a desistir;
desistir da norma,
do encaixe,
do aceite,
do enquadre,
do normativo;
do …

E pode ser bom que saibamos: quando desistimos disso tudo, pessoas que ainda resistem e permanecem podem se afastar de nós;
a sedução do estar em grupo é tamanha que cogitaremos permanecer no modus operandi da normalização patética e agressiva;
pensaremos, outras e outras vezes, se temos um problema, até se somos doentes;
olharemos nossas ações como desviantes, e isso tende a se repetir e se repetir e se repetir…
mas se seguirmos desistindo, quiçá ultrapassemos uma certa distância a partir da qual não estaremos no caminho do matadouro de subjetividades – ao menos simbolicamente.

Nomear-se, sentir-se e se permitir saber-se pode nos dar a oportunidade ímpar de nos abraçar pela primeira vez na vida;
mesmo numa vida que possa se apresentar sem cores, sem efervescências e sem euforias cis-heteronormativas, e principalmente nessa, é possível se abraçar e ser abraçade por outras pessoas.

Suspeito que cheguei num lugar de desilusões e desencantos que profundamente me afetam e me abalam;
mas não custa dizer a quem quer viver que dá pra ser você, como você é.

Nem todes precisam sentir, como eu, que se vive inadequadamente;
nem toda mente é inadequada.

Isso é “curioso”, ou ao menos eufemicamente assim aparenta, pois, fica parecendo que sou uma espécie de “anomalia afetiva”, que não pode ser vivida naturalmente sem grandes adequações ao estranhamento inevitável;
ou que eu sou um “poço” fundo demais… um abismo terrivelmente sedutor, mas para o qual não se deve olhar por muito tempo.

O lado bom é que eu sei que não sou isso.

* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

[ . . . ]

Use o espaço dos comentários para compartilhar também a sua opinião por aqui! Você já segue o Blog Devaneios Filosóficos? Aproveite e faça essa boa ação, siga o Blog e receba uma notificação sempre que um novo texto for publicado. Conheça o meu canal no Youtube.