“Viver em fronteiras e em margens, mantendo a mudança intacta e a integridade múltipla, é como tentar nadar em um novo elemento, um elemento “alienígena”.”

Gloria Anzaldúa

“A verdadeira aprendizagem passa por compreender que você não necessita nem de uma soberania destrutiva nem de uma narrativa heroica, que é possível viver em condições de vulnerabilidade, entendida como condição própria da vida”

Paul B. Preciado

Se você me vir pessoalmente, você quiçá olhe para mim, e ao perceber que tenho 2 metros de altura, me considere uma pessoa alta; talvez olhem para o meu cabelo e digam que ele é crespo e que um outro de alguém ali é liso; dizem que algumas pessoas estão acima do peso e outras magras demais; assim como dizem que existem pessoas bonitas e pessoas feias, pessoas inteligentes e pessoas burras, pessoas neurotípicas e pessoas neurodivergentes… e assim por diante. Algumas pessoas terão sua sexualidade questionada, outras serão acusadas de não serem “trans de verdade”… Talvez não seja descabido nem  exagerado repetir a pergunta constantemente feita por vozes inquietas: quem definiu isso tudo? Classificar pessoas, desde corpos a subjetividades, é um problema em si? Se sim, quando, como e por que se tornou um problema? Nesse bojo, outra pergunta merece a repetição: o que é ser normal e o que é ser anormal? O saudável, o natural, o doente e o patológico, a que servem?

*  *  *

Em seu livro “O Normal e o Patológico”, Georges Canguilhem discute uma possível diferenciação entre o que se chama de normal e de patológico a partir de uma perspectiva filosófica e histórica, sobretudo no contexto médico e das “ciências da vida”. Ele argumenta que o conceito de normalidade não pode ser reduzido a uma simples norma estatística ou biológica, propondo, em vez disso, que o normal e o patológico são categorias dinâmicas que devem ser entendidas em relação ao funcionamento geral de um organismo ou sistema.

Nesse sentido, o normal não é meramente a ausência de doença ou de uma disfunção, mas sim a capacidade de um organismo de se “adaptar” e de manter a sua integridade e seu funcionamento fisiológico e psicológico diante de mudanças e de desafios ambientais. É o que, por exemplo, emerge da leitura de Canguilhem, quando usada a noção de “normatividade vital”, ou seja, a capacidade de um organismo de estabelecer suas próprias normas internas de funcionamento, ainda que exista nesse organismo alguma característica ou condição – mesmo que permanente – que não é observada numa frequência significativa nas demais criaturas representantes daquela espécie ou comunidade.

No entanto, pode-se inferir, também, que o patológico é visto como uma ruptura nessa normatividade vital, ocorrendo, por assim dizer, uma espécie de falha, ou complicação permanente,no funcionamento do organismo, que compromete, portanto, a sua capacidade de adaptação e integridade. Apesar disso, Canguilhem também reconhece que o patológico pode ser uma fonte de criatividade e inovação, já que, uma inferência possível é de que os desafios à normatividade vital podem levar a novas formas de adaptação e conhecimento.

É no caminhar das construções conceituais, médicas, clínicas, legais e educacionais que a normalidade e as patologias desenham identidades consideradas válidas, legítimas e merecedoras de vida, de um lado; e aquelas postas à prova, ao escrutínio e merecedoras de morte, por outro. Se tomarmos por exemplo a sexualidade humana, em particular a homossexualidade, notaremos como uma série de discurso que versam sobre o normal e o patológico também se associam ao discurso de natual e não natural.[1]

Por exemplo, o termo ‘homossexualidade’ foi cunhado no final do século XIX, pela jornalista húngara nascida na Áustria, Karoly Maria Benkert. Embora relativamente recente, o comportamento homossexual é tema recorrente em discuções sobre sexualidade. Todavia, a homossexualidade nem sempe foi debatida enquanto um comportamento que faz parte do espectro da sexualidade humana. Pelo contrário, desde pensadores como Platão, Aristóteles e Thomás de Aquino, a homossexualidade esteve associada a práticas “antinaturais”, e associações desse tipo persistem atualmente na cultura popular. Desde debates morais sobre o comportamento sexual (como o conservadorismo religioso, sobretudo o cristianismo ocidental) até debates do ponto de vista das ciências (como biologia,  psicologia e psiquiatria) a discussão sobre se a homossexualidade é “natural”  ou se ela é “não natural” tem sido constantes.

Aquelas pessoas que consideram o debate pelas vias morais, por vezes buscam amparo nos construtos sócio-históricos, muitas vezes utilizando de escritos bíblicos como meio de legitimação daquilo que se espera como uma prática socialmente aceitável, bem como a partir desses mesmos caminhos desenham argumentos que instituem práticas sexuais condenáveis. Apesar disso, quando supostamente buscada uma fundamentação mais “forte”, moralistas recorrem às ciências – principalmente à Biologia e à Medicina – para justificarem ou para condenarem comportamentos homossexuais nos sujeitos de uma dada sociedade sob o argumento do funcionalismo sexual, ou seja, sob afirmações de que o sexo cumpre uma função reprodutiva, e que aquele indivíduo que pratica o sexo não reprodutivo, logo, o pratica enquanto um tipo de desvio. Ou seja, atribui-se uma função ao fazer-sexual, e considera-se como mal-adaptado aquele organismo que utiliza das práticas sexuais com finalidade não reprodutiva (como se todas as pessoas que praticam sexo o faz para reproduzir-se…).

Por outro lado, ainda que dentro das ciências médicas, o conservadorismo também opera como marcador de limites entre o “natural” e o “não natural”. Pressupostos reprodutivos também foram por muitos anos um critério de avaliação dos comportamentos que destacaram a heterossexualidade (atrelada fortemente à cisgeneridade) enquanto o comportamento e identidade “natural”, uma vez que somente a partir dele ocorreria a reprodução. Consequentemente, comportamentos que não resultassem em reprodução eram por vezes considerados patológicos, sendo por muitos anos classificados como transtornos mentais ou de desenvolvimento. Por vezes, ainda, termos como “normal” e “anormal” entram nesses debates ora como sinônimos de natural/antinatural ora como reforçadores que emprestam ao debate uma característica que quantifica comportamentos na intenção de legitimá-los ou invalidá-los.

Essas marcações entre normal/patológico e natural/não natural estão para além de construtos conceituais, elas fazem parte de uma territorialização do saber-fazer. A construção de um saber-fazer que normaliza ou patologiza existências, e que se orienta por interesses de um Estado cujo motor é o colonialismo, têm arrastado pro campo da anormalidade os corpos que não são imediatamente encaixados em um Cistema que regula a existência. E, ainda para aquelas corporeidades que estiveram supostamente numa adequação Cistemática e estética temporária, mas que romperam com essa lógica, desistindo de suas premissas, existe um fazer-saber que atua no campo da constante deslegitimação e invisibilidade da existência de pessoas dissidentes. O Cistema que busca regular a subjetividade e a materialidade dos corpos é o mesmo que em suas narrativas e conclusões buscam definir a partir de que medidas será tabulada, qualificada e catalogada a vida. Como vai dizer Preciado (2011),

Foucault chamou nossa atenção sobre a passagem, que se fez na época moderna, de uma forma de poder que decide e ritualiza a morte para uma nova forma de poder que calcula tecnicamente a vida, em termos de população, de saúde ou de interesse nacional. Esse é, aliás, o momento preciso em que uma nova clivagem, heterossexual/homossexual, apareceu. […] Uma sexualidade qualquer implica sempre uma territorialização precisa da boca, da vagina, do ânus. […] A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais.[2]

A percepção da realidade material e simbólica tende a se complexificar quando se elaboram os questionamentos acerca de por que demarcações históricas categorizam corpos, relegando à margem existências que não pertencem a um conjunto de códigos e de expectativas discursivas coloniais. Quais são as métricas usadas para medir o corpo e classificá-lo como saudável ou doente? PCD, pessoas trans, neurodivergentes, pessoas gordas, freaks, mas também pessoas racializadas, imigrantes e refugiadas; por que elas sempre são referenciadas e definidas a partir daquilo que socialmente se instituiu o “ser humano universal”? Que ser humano é esse que parametriza outros corpos e outras subjetividades? Que naturalidade é essa que sugestiona a nomeação e demarcação das existências tomando por referencial um modelo forjado nas siderúrgicas do colonialismo eurocêntrico?

*  *  *

Natural e não natural são constructos que não raramente estão associados à ideia de normal e anormal – ou, de normal  e patológico. Dentro da perspectiva de normalidade (baseado na matemática da “distribuição normal” mas não atendo-se aqui a ela), ou seja, aquela que considera normal aquilo cuja frequência mais se verifica em um determinado contexto, reunindo uma maior taxa de probabilidades de ocorrer um determinado caso, e que considera-se anormal aquilo que se afasta do centro de distribuição da curva, questões importantes são observadas por essa ótica muitas vezes na intenção de naturalizar ou não uma observação. No entanto, nem tudo que se verifica em alta frequência, ou que tenha maiores probabilidades de ocorrer, ou seja, que ocorre “normalmente”, é por isso bom, saudável, humano. Da mesma forma, nem tudo que se verifica em eventos raros e improváveis é necessariamente ruim, doente e desumanizável.

Eventos de violência contra mulheres, resultando em altos índices de feminicídios, bem como a frequente e crescente ocorrência de casos de assassinatos de pessoas não heterossexuais e trans estão majoritariamente associados a práticas de homens cis. Isso seria suficiente para considerar que estes homens são agressivos, de modo a dizer que é natural que eles matem mulheres e pessoas LGBTIA+?

A crescente verificação de mortes de pessoas por hipertensão e câncer deveria pressupor que é normal que se morra por essa doença, portanto não se deveria investir em prevenção, já que é natural morrer por hipertensão e câncer? De igual maneira, em decorrência do racismo institucionalizado historicamente há países que mantêm altos números de mortes de pessoas negras pela polícia, número que mostra-se crescente. Pela lógica da normalização que naturaliza esses eventos, devemos, então, considerar que é normal a polícia matar pessoas negras? No sentido contrário também se poderia dizer que a baixa [ou rara] ocorrência de tsunamis no Brasil permite-nos considerar que tsunamis não sejam naturais?

Entre outras, ferramentas estatísticas cumprem a função de organizar dados e de direcionar as análises destes. Em grande medida, quando falamos de classificações de corpos e de subjetividades, o que define a natureza ou a antinatureza de um fenômeno são construtos humanos. Frequências e ocorrências de eventos não os tornam necessariamente fatos, nem invariáveis. Todavia, uma vez inseridos num contexto de relações de poder assimétricas isso passa a servir de tentativa de justificativas. É nesse sentido que a baixa frequência de pessoas que se identificam como não-heterossexuais e não-cisgêneras na população de diversos países pode servir de argumento para quem defende o ideal de normalizar o mais frequente e transformar em anormal aquilo que apresenta baixa frequência e que não cumpre uma função esperada pelo fazer-saber hegemônico.

Nessa perspectiva, mesmo que as ciências biológicas e médicas demonstrem a existência de uma condição inerente ao ser humano cuja sexualidade e identidade de gênero são plurais, pode acontecer de passar a atacar o problema pela via da remediação: aceita-se que existe a homossexualidade enquanto traço comportamentoal e psicológico, todavia ainda o percebendo como um traço que moralmente é considerado errado e que deve ser no mínimo corrigido. Ou seja, não negar a existência de um fenômeno não é o mesmo que considerá-lo digno de existir por si e tal como se apresenta. Apesar de o colonialismo existir a partir  da e para a diferenciação enquanto dinâmica primordial, a diversidade que aponta para o plural e que é passível de existência livre ainda é tida como aquela que desestabiliza o Cistema, e ela será controlada na base da eliminação. A desigualdade fundante do colonialismo precisa ser mantida em sua impossibilidade de cruzar as fronteiras entre o normal e o patológico para que se sustente as desigualdades, produzindo assimetrias cada vez maiores nas relações de poder. Logo, as diferenças presentes no Cistema social não são sobre inclusão, nem são sobre recepcionar e acolher a diversidade, mas sobre instituir mecanismos necropolíticos: diferenciar para higienizar uma classe de existência.

Em tempos não muito antigos, a psiquiatria, nos trilhos da psicanálise, considerou a homossexualidade (outrora chamada de “homossexualismo”) dentro de uma gramática patologizante, nomeando-a como no mínimo um transtorno de desenvolvimento. Nas palavras de Bergler, um psiquiatra e psicanalista, o homem homossexual “é um fugitivo frenético das mulheres; inconscientemente, ele tem um medo mortal delas. […] Interiormente, o homossexual odeia as mulheres com o ódio compensatório de um masoquista dominado pelo medo. […] o ódio e o desprezo pelas mulheres demonstrados pelo mais violento misógino heterossexual parecem ser benevolência quando comparados com o desprezo demonstrado pelo homossexual típico por suas parceiras sexuais”.[3] Ou seja, no processo de classificação dos comportamentos, as diferenças individuais são usadas numa comparação taxativa não-equivalente, buscando a partir da rejeição da pluralidade um modo de definir como anomalias e patologias aquilo que pertence ao campo do possível.

Apenas após os anos de 1973 a American Psychiatric Association e em 1975 American Psychological Association retiram retirar a homossexualidade do rol de transtornos mentais. E mais tardiamente, no ano de 1991, na décima publicação, a Organização Mundial da Saúde excluiu a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a Saúde (CID 10). Apesar disso, linhas de pensamentos conservadores ainda baseiam-se no conceito de anormalidade para propor tratamentos de cura da homossexualidade (a chamada “Cura Gay”), bem como da transexualidade, enquantos outros questionam as evidências científicas obtidas até o momento.

Assim, ainda que do ponto de vista científico, e se levadas em contas todas as bagagens teóricas produzidas até hoje, a homossexualidade aqui usada como exemplo, pode ser entendida como pertencente ao espectro de sexualidades possíveis, tanto em animais humanos quanto em animais não-humanos. O que a encarcera num comportamento diagnosticado, patologizado e compreendido como um desvio à adaptação e à fluidez do organismo não é outra coisa senão uma construção epistemológica colonial, que vê na pluralidade de corpos e de ideias um risco ao processo de monopolização da vida, bem como uma ameaça contínua ao intenso exercício da exploração dos corpos dentro de uma monológica.[4] A própria existência do questionamento de se a homossexualdiade é “natural” ou “não-natural” já demarcam interesses distintos, mas que demonstram a emergência de uma explicação baseada na moralidade, mas também na aversão, na higienização de subjetividades e comportamentos que ultrapassam os limites aceitáveis pelo fazer-colonial. A homossexualidade enquanto um comportamento amplamente observado, embora em menor frequência se comparado à heterossexualidade, e que não pertence ao universo de escolhas autônomas de um indivíduo será considerado antinatural a partir do momento que ele ameaça a ordem de um determinado Cistema de corpos, éticas e ações.  Um sistema que é capaz de controlar a sexualidade de uma população é um sistema potencialmente apto a controlar essa população.

Historicamente, embora muitas tenham sido as tentativas de controle social a partir da sexualidade, muitas também são as resistências. E as contribuições mais recentes das ciências têm fornecido evidências robustas para elucidar cada vez mais o conhecimento sobre sexualidade, gênero e subjetividades; em consequência isso tende a enfraquecer posicionamentos que consideram imoral, anormal ou antinatural tudo que outrora fundou o sistema sexo/gênero, raça/etnia, daúde/doença, bom/mal. Na minha perspectiva, essa robustez do conhecimento científico nem se compara ao poder que tem o conhecimento produzido na materialidade das militâncias e dos ativismo; produção essa que questiona de dentro pra fora e de fora pra dentro o saber-acadêmico, que tensiona os rígidos códigos de construção do conhecimento, este muitas vezes colonizados. Ao olhar para o que dizem os movimentos de luta, movimento negro, travesti, queer, feminista, de classe e outros, percebemos que a vulnerabilidade que constitui parte significativa das lutas populares por direitos é também uma maneira de resistência, como diz Preciado: “a verdadeira aprendizagem passa por compreender que você não necessita nem de uma soberania destrutiva nem de uma narrativa heroica, que é possível viver em condições de vulnerabilidade, entendida como condição própria da vida”.[5]

A produção Ociental do conhecimento, entre eles o conhecimento científico, pode ocorrer em várias instâncias e em vários níveis de complexidade, mas ela não é nem tranquila e nem rechaços. A histórica ocidental do conhecimento apresenta três grandes feridas narcísicas, propostas por Sigmund Freud: a primeira delas, a astronômica: o heliocentrismo, proposto por Copérnico, “remove” a Terra do centro do universo e a localiza entre os demais planetas que orbitam o sol. A segunda ferida é a biológica, quando o inglês Charles Darwin propõe a sua teoria das espécies e da seleção natural: o ser humano deixa o seu posto aristotélico de “ápice da evolução”, passando a ocupar um espaço comum entre todos os organismos do planeta na evolução das espécies. Por fim, a terceira ferida narcísica, proposta pelo próprio Freud, diz respeito ao conceito psicanalítico de “inconsciente”, no qual o ser humano, agora não mais habitando nem o centro do universo nem o “topo” da evolução, também não tem tanta autonomia sobre seus próprios desejos quanto se pensava e tão pouco está sujeito às vontades de uma suposta entidade divina.

Independentemente do caráter científico ou filosófico de cada um desses pressupostos, o que eles têm em comum é o fato de que quando elas foram propostas provocaram discussões, uma vez que contrariavam os construtos morais de suas épocas; principalmente os dogmas religiosos. Assim também é para as dissidências de corpos e subjetividades, que emerge num contexto em que o comportamento cisnormativo, heterossexual, branco e nacionalista estão fortemente amparados pelos discursos religiosos (principalmente cristão), pela lei (como nos direito civis de casamento, imigração e acesso a recursos trabalhistas), pela educação (o ensino da sexualdiade, da não-raça e do pertencimento de fronteiras nos mais variados níveis educativos) e sobretudo no senso comum enquanto comportamento referenciado pelas mídias de telecomunicação. Naturalizar a diversidade de existências é nada mais que uma consequência, ou anseio, de uma resistência sociohistórica; é a luta pelo direito de, mais do que apenas cruzar fronteiras conceituais e monológicas, borrá-las e transgredí-las num movimento que busca assegurar a vida de corpos Cistematicamente patologizados. Semelhantemente, a antinaturalização pertence a uma relação de poder também sociohistórica e de resistência, no entanto colonial, que busca manter existente um discurso moral/aversivo sobre aquilo que não é do campo da escolha dos indivíduos.

É preciso repensar como as demarcações dos territórios das corporeidades e subjetividades são configuradas no mundo em que vivemos. O neoliberalismo, numa velocidade absurdamente grande, tem produzido, ao meu ver, uma aceleração e uma magnificação dos efeitos patologizantes sobre pessoas ditas divergentes/dissidentes [de raça, de gênero, de sexualidade, de neurofuncionamento, etc]. A maior perversidade é esse sistema despertar um incômodo notório somente em algumas pessoas; a maioria, mesmo muito afetada pelas lógicas e ações capitalistas, ainda consegue conviver sem nomear o estrago; algumas até o defendem, mesmo sendo todos os dias oprimidas por esse sistema. O ópio do povo hoje é multifacetado e bastante criativo em suas formas e funções.

“[..] o modelo socioeconômico hegemônico nos últimos quarenta anos, a saber, o neoliberalismo e sua psicologia implícita, pode ser compreendido como fator causal importante para transformações profundas na configuração das categorias clínicas a partir, sobretudo, do advento do DSM III, no final da década de setenta. Transformações tais como: o desaparecimento das neuroses como quadro compreensivo principal para a determinação do sofrimento psíquico, a individualização das depressões, a ascensão das patologias narcísicas e borderlines, a organização do campo das antigas psicoses, o abandono de perspectivas etiológicas sobre as categorias clínicas, assim como a individualização funcional das mesmas e a recusa de descrições estruturais podem ser analisadas como fenômenos convergentes ligados, entre outras coisas, ao impacto da circulação de valores próprios à psicologia implícita de um modelo socioeconômico então em ascensão no mundo ocidental, a saber, o neoliberalismo.”[6]

Quando falamos de saúde/doença/cura/patologização, não podemos deixar de pensar no saber clínico enquanto um espaço nitidamente permeado pelo fazer-colonial. Uma clínica racista, transfóbica e misógina chamará de perseguição e vitimismo, de disforia e de deslocamento da realidade o que, em vez disso, é a reação de uma vivência racializada numa sociedade racista, o não pertencimento de identidades trans numa sociedade cisgênera e o enfrentamento de mulheres diante do patriarcado. Da mesma maneira, uma Clínica patologizante e normalizadora dirá que é louca a pessoa que não toma para si as condutas e os códigos convencionados por uma dada normatividade. Em todos os casos, a branquitude colonial desses saberes querem ditar o que é ser normal, querem medir, estipular e delimitar o que é ser humane.

A ciência, a tecnologia e o mercado estão redesenhando os limites do que é e será um corpo humano vivo. Esses limites são definidos hoje não só em relação à animalidade e às formas de vida consideradas até agora subumanas (os corpos não brancos, proletários, não masculinos, trans, com deficiência, doentes, migrantes…), mas também frente à máquina, frente à inteligência artificial, frente à automatização dos processos produtivos e reprodutivos. Se a primeira Revolução Industrial foi caracterizada pela invenção da máquina a vapor, pela aceleração das formas de produção, a revolução industrial atual, marcada pela engenharia genética, pela nanotecnologia, pelas tecnologias de comunicação, pela farmacologia e pela inteligência artificial, afeta em cheio os processos de reprodução da vida. O corpo e a sexualidade ocupam na atual mutação industrial o lugar que a fábrica ocupou no século XIX. Há, ao mesmo tempo, uma revolução dos subalternos e apátridas em andamento e uma frente contrarrevolucionária lutando pelo controle dos processos de reprodução da vida. Em cada canto do mundo, de Atenas a Kassel, de Rojava a Chiapas, de São Paulo a Johannesburgo, é possível sentir não só o esgotamento das formas tradicionais de fazer política, mas também o surgimento de centenas de milhares de práticas de experimentação social, sexual, política, artística… Fazendo frente ao aumento das forças edípicas e fascistas surgem, por toda parte, as micropolíticas do cruzamento.[7]

Por essas elaborações nem tão extensas e nem tão inéditas, faz-se necessária a mirada às fronteiras. São nas bordas do Cistema que suas tensões acontecem. É a imigração que tensiona e irrompe o ideal de nação e nacionalismo; a não binariedade de gênero provoca o repensar do ser-cis e da heterossexualidade; é na descolonização do saber-fazer que se pressiona, transforma e refaz a noção de doença e deficiência, retirando de corpos vivos as marcas de anormalidades atribuídas por um sistema classificatório que se propõe segregador para depois autorizar a sua morte. O não branco mira o branco para que este se enxergue nos sistema racial, é o não-branco que reivindica a desnaturalização da brancura enquanto modelo de existência. Nas fronteiras estão as dissidências, as transformações, os desfazimentos necessários para haver uma descolonização. De modo similar, a monogamia vê nas diferentes formas não colonizadas de construir o fato o desvio da “natureza” eurocêntrica. Resistir nas fronteiras vai acontecer ainda que sejamos imediatamente lides como extra-terrestres, como identidades que não habitam esse espaço, ou, como vai dizer Gloria Anzaldúa: “viver em fronteiras e em margens, mantendo a mudança intacta e a integridade múltipla, é como tentar nadar em um novo elemento, um elemento “alienígena”.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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[1] Medrado & Valentova, 2023.

[2] B. Preciado. 2011. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”

[3] Tradução livre a partir de Bergler, 1957. p.50.

[4] Monológica é um termo que eu cunhei – ou que modifiquei/ressignifiquei seu sentido outrora usual – para construir um pensamento teórico que diz respeito àqueles sistemas de organização que pressupõem uma (e geralmente apenas uma) maneira, ou lógica, de funcionamento. Monológicos são aqueles sistemas que reconhecem um modelo de operação que, pensando no que diz Anna Lowenhaupt Tsing (no seu livro “Viver nas Ruínas. Paisagens Multiespécies no Antropoceno”opera segundo a Teoria da Escalabilidade. Ou seja, sistemas que se expandem sem que seus mecanismos fundamentais, suas dinâmicas operacionais e seus constituintes principais sejam modificados em sua essência. Dito em outras palavras, Monológicos são os sistemas organizacionais que se reproduzem sob uma lógica imperativo-colonial de seu funcionamento. Como modelos desse sistema temos a cisnormatividade (operando na exclusividade homem e mulher), a monogamia (operando no acordo de exclusividades afetivas), o racismo (que se estrutura na existência do branco e do não branco), as religiões monoteístas (que opera na lógica exclusiva de uma entidade que determinaria a cosmogonia e a cosmologia); mas também o agronegócio e o viés conservador e por vezes epistêmico da Ciência – sobretudo aquela produzida em torres de homens ungidos/purificados. E o grande sistema que movimenta tais monológicas é o capitalismo.

[5] Paul B. Preciado: “Às vezes me esqueço de que sou um homem”. https://brasil.elpais.com/cultura/2021-03-19/paul-b-preciado-as-vezes-me-esqueco-de-que-sou-um-homem.html

[6] (Coelho, B. M., Smid, D. & Ambra, P. A psicanálise e o neoliberalismo: entrevista com Caterina Koltai, Christian Dunker, Maria Rita Kehl, Nelson da Silva Jr., Paulo Endo e Rodrigo Camargo. Disponível em: <https://psicanalisedemocracia.com.br/2017/06/a-psicanalise-e-o-neoliberalismo-entrevista-com-caterina-koltai-christian-dunker-maria-rita-kehl-nelson-da-silva-jr-paulo-endo-e-rodrigo-camargo/&gt;. Acesso em: 01 fev. de 2023.)

[7] Paul B. Preciado. (2019) Ser ‘trans’ é cruzar uma fronteira política. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/09/cultura/1554804743_132497.html

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