Essa noite ela acordou de madrugada,
havia dormido mal na noite anterior,
e dessa vez estava internamente agitada,
inquieta por não conseguir dormir,
seu corpo todo doía de tanta melancolia…

A criatura deu suas trinta e oito voltas ao redor da quadra,
estava ofegante,
se sentindo fraca,
esbaforida,
sua visão até se turvou,
estava cansada…
melancólica;

por uns instantes pensou que estava cansada por ter corrido tanto,
mas logo que foi recobrando a visão,
logo que começou a sentir suas pernas bambas,
após beber água,
percebeu que o cansaço era outro;

estava cansada de ser;
cansava de ter de ser;

era cansativo –  dizia ela – ter que se comprovar;
era como se viver fosse sinônimo de provar-se, sempre;
precisava provar que era inteligente;
cada linha, cada verso, cada palavra
precisava ser atestada e sancionada como dignas de terem saído de um corpo preto transtornado;

cada solfejo, cada respiro, cada termo
precisava ser validado como coerente;
a incoerência, embora bastante presente,
era tomada por desastrosa e inaceitável:
“eu esperava mais de você” – diziam constantemente,
e diziam isso mesmo nunca cobrando a mesma expectativa de um corpo brancotípico;

ela era inadequada,
mas era feio dizer isso com todas as letras,
mas era inadequada…
tentou por muitos anos se adequar ao esperado;
tanto que fez, fez e fez, que se desfez;
cansativo demais tentar ser você mesma e nunca valer o feito,
o jeito é se desfazer em rio..
ainda assim, não bastou, porque diziam que o rio era sujo.

Um dia lhe perguntaram:
“Qual foi a melhor escolha que você fez na sua vida?”
ela deu aquela típica olhada pro além, passou a mão direita nos cabelos crespos, deslizando lentamente os dedos pela lateral da cabeça, e apoiando a cabeça na mão, com o dedo mindinho próximo à boca disse:

“Acho que foi estudar o máximo que consegui e aproveitar as oportunidades que a vida me deu”;
mas evidentemente ela mentiu;
a resposta não dita, aquela que saltou na sua mente em questão de segundos, mas que logo se lançou no abismo de sua solidão foi:
“A melhor escolha que eu já fiz na vida, e a escolha em que me senti mais eu foi quando tentei morrer”

mas engoliu secamente cada letra…
[No fundo ela sabia que tal resposta, por mais honesta e por mais sincera que fosse, era visceral demais para uma conversa otimista e superficial, típica de mentes muito adequadas].

Outra vez, numa mesa mais cética, pessimista e de pessoas que já escolheram escolhas semelhantes, mas que igualmente fracassaram, perguntaram outra coisa:

“Você sente que depois que você ‘tentou’, sua vida mudou radicalmente? Você acha que ser quem você é hoje teve um impulso a partir ‘daquilo’?”
Naquele momento, numa conversa mais visceral,
acompanhada de quem também não havia sido aceita nesta existência por ser quem era, mas que ainda assim persistia em viver, ela disse:
“Bom, infelizmente deu errado; mas não tenho dúvidas de que mudou muita coisa, e hoje só sou isso aqui, essa abjeção estranha, porque sobrevivi parcialmente aos efeitos de uma escolha fracassada”.

E de fato ela não mentiu, dessa vez falou o que veio à mente;
sua sobrevivência foi parcial,
algo ficou ali, na trigésima sexta volta, que nunca mais será recuperado,
naquela volta à quadra as coisas eram difíceis,
os obstáculos pareciam consideravelmente complicados,
e ali ela queria parar definitivamente,
não via nenhum sentido em seguir apenas girando,
de volta em volta,
numa quadra sem graça;
mas a impediram que parasse;
no entanto, muitas coisas deixou naquela volta;

deixou muitos medos,
muitas coragens,
muitas cismas
e muitas verdades…
deixou muitos desejos também…

“Já que sou, o jeito é ser”

E tentou ser,
começou a falar mais o que queria,
a usar as roupas que a representava,
a expressar menos adequadamente o que lhe foi planejado,
transitava entre universos, seja nos atos, seja nos versos…

Mas, de fato, algo ficou ali,
algo que não foi achado nunca mais,
ou que talvez fora perdido até mesmo antes:
a vontade;
perdeu vontades substanciais,
seu estado intermitente, mas até que frequente, era a melancolia;

sentia-se num imenso oceano,
boiando, à deriva, sem razão;
e
sozinha…

lhe custava performar uma expectativa jamais saciável sobre sua pessoa;
era cansativo, dizia ela, ter que se comprovar;
era como se viver fosse sinônimo de provar-se, sempre;
por mais que fizesse, parecia insuficiente;
por mais que se limpasse, parecia suja;

esse sentimento de impureza, de sujeira, de inadequação,
esse nojo introjetado,
não era [e não é] coisa de sua cabeça complicada:
em todo o Cistema, semelhantes a ela se sentiam numa “tara” por limpar-se;
desenvolviam a busca insistente por limpar-se de uma imagem que seres arianos sujaram;
sentiam-se sempre em movimento de esfregar,
eliminar as manchas imaginárias,
alvejar os hábitos e costumes,
higienizar suas escolhas…

obviamente que era um trabalho surreal,
e, de tão surreal, era fantasmagórico e inatingível:
não se limpa o que não está sujo,
a sujeira era uma projeção branca,
que de tanto repetirem virava uma verdade simbólica;
o nojo era ativado tanto na vítima quanto no opressor;
o opressor dizia “nojento”, e a vítima logo corria para se limpar.

Até houve um dia que lhe disseram, sem proferir exatamente essas palavras,
que tinham nojo das escolhas dela,

tinham nojo de seu corpo ter tocado a sujeira e estar portanto sujo;

Coisas assim, por mais que soe como deslizes nas terras altas,
continuam latejando na mente dela;
ela busca desviar o olhar,
entender que foi supostaente sem querer,
busca olhar as coisas boas que existem,
mas aquelas palavras não descansam,
retomam a cirandar sua mente de tempos em tempos.

Ela perdeu até o sono hoje ao pensar nisso;
sentiu-se inadequada – pra variar;
sentiu que era exagero seu pensar naquilo;
mas que exagero é esse que se repete tanto, de várias formas em suas voltas pela quadra?

Quantas vezes, ao realizar suas voltas, ouviu coisas desagradáveis?
Quantas vezes sentiu que seu ser era indesejado?
Quantas foram as vezes que se sentiu substituível, pra não dizer descartável?
E quantas vezes foi tida por suja, ou se preferir, nojenta?

Ela conta que esses dias no metrô sentia que estava suja da cabeça aos pés, de tanto que a miravam de cima a baixo;
parecia que viam uma aberração;
examinavam cada parte do seu corpo querendo encontrar o erro, o desvio, a denúncia;
como se fosse errado apenas ser quem ela era;

depois perguntam por que não querer dar as voltas sorrindo!
e não é que a vida seja feita só de coisas ruins,
muitas partes das voltas foram alegres e gostosas;
mas quando ela era derrubada ou quando tropeçava ela se feria, e as feridas doiam;
algumas não cicatrizaram,
e nem têm previsão disso acontecer;
essas feridas soam como lembranças do quanto é penoso correr para chegar a lugar nenhum.

Ela perdeu o sono essa madrugada por sentir que deveria fazer sempre aquilo que nunca fariam por ela,
deveria ser atenciosa,
presente,
cuidadosa e preocupada,
do contrário, estaria sendo incoerente.

Mas nas vezes alheias isso não ocorria;
dois pesos duas medidas;
exigem aquilo que são incapazes de fazer;
e essa conversa não se faz em nada, pois ela é só uma exagerada que vê cabelos em ovos;

“É terrível sentir que seu corpo só é desejado por perto para produzir gozo” – ela sentia também;
é terrível sentir que tudo que fez em sua vida [e fez muita coisa] serviu e serve apenas de atrativo temporário,
atrai a curiosidade,
atrai pela grandiosidade adquirida,
atrai pelas reflexões e questionamentos,
atrai por ser diferente e desafiadora,
mas a trai por ser fugaz e passageiro;

O sentimento – diz ela – é de que se ela afrouxar no investimento da capa tudo se desfaz e acaba toda aquela atração que diziam ter;
mas de tanto ter de ser percebeu-se sendo nada;
nada além de um objeto substituível por quem fosse mais leve,
quem não apresentasse tanta complexidade, tantos becos, tantos desafios;

sentir-se um fardo era quase como inevitável,
diziam tanto que estavam tentando,
que estavam se esforçando,
que estavam fazendo o melhor para estar ao seu lado,
que parecia até se tratar de um sacrifício;
e isso não foi nem uma nem duas vezes,
nem uma nem duas pessoas,
foram várias, em vários lugares,
tanto foi que ela pensava até que o problema só poderia ser sua própria existência;
mas isso se chocava com outras vozes que não a conhecia bem, mas que diziam o quanto suas palavras as ajudavam;

ela até pensou:
“por que minhas palavras ajudam quem está longe, mas incomodam e pesam a quem está perto?”
seria alguma maldição que fazia dela um ser intocável,
pois, uma vez que lhe toquem, se ferem e perdem a admiração?

É absurdo que numa quadra tão grande, com tantas pessoas correndo,
como tantas histórias escorrendo
e com tanta massa se movendo,
ainda assim ela se sente profundamente só;
ela também corre, faz mil e uma coisas,
elabora mil e uma ideias sobre a vida,
faz o que pode para assegurar não ter de viver outra vez na insegurança financeira que já viveu,
mas isso lhe custa tempo para respirar com calma,
lhe custa tempo para ser mais presente,
lhe custa a vontade de viver;

ela se sente rodeada por pessoas,
algumas muito queridas e dispostas,
mas se sente profundamente solitária quando precisa abrir seu baú;
e de tempos em tempos precisa abri-lo, olhar para dentro de si e pegar as gazes para seus curativos;

nesse momento de melancolia,
de profunda reclusão,
de tristeza e desânimo,
a vida lhe pesa imensuravelmente,
custa ter uma vontade,
custa dar um sorriso,
custa explicar que está mal;
de tanto que lhe custa, não consegue pagar, ou apenas desistiu;

a solidão é um abismo simbólico,

você compartilha a existência com centenas de pessoas,
dialoga sobre uma montanha de coisas,
elabora ideias alheias,
e acolhe sentimentos feridos,
mas quando se olha de perto, ninguém está ali;
se sente ilhada num mar de pessoas;
se sente sozinha numa multidão;

não há o que façam que lhe tire desse abismo frio e sem vida,
não há quem possa estender a mão,
nesse momento o mais custoso é ter de se explicar,
pior ainda é ter de sorrir,

mas é custoso ser ela mesma,
é complexo ao ponto de não ser possível uma representação;

A vida é um pensamento solto.
Ou, ao menos, eu quero poder soltá-lo para dela me soltar.

É como ter de atravessar uma quadra cujo outro lado não é onde se quer chegar.

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Cada coisa que ela faz a distancia do que ela pode ser ao mesmo momento que a aproxima de um alguém estranho e engessado. Não querente…

Todos os seus medos são grandes e lhe doem. Tem, sim, os seus medos, que para ela são os maiores de todos, pois são os que ela sente e os que acha que conhece melhor. Aquela dor que dói no peito de cada pessoa costuma ser a dor mais difícil de suportar, pois é a que ela tem.

Essa noite ela acordou de madrugada,
havia dormido mal na noite anterior,
e dessa vez estava internamente agitada,
inquieta por não conseguir dormir,
seu corpo todo doía de tanta melancolia
que escorriam por falta de palavras.

* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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