A produção Ocidental do conhecimento, entre eles o conhecimento acadêmico e científico, pode ocorrer em várias instâncias e em vários níveis de complexidade, mas ela não é nem tranquila e nem rechaços, muito menos ela é neutra.

Pesquisadores de uma ampla variedade de disciplinas, incluindo áreas de orientação biológica, como biopsicologia, neurociência, ciências biomédicas e evolução, estudam tópicos relacionados à bissexualidade. No entanto, nosso treinamento em biociências raramente inclui atenção focada nas questões sociais em torno das medidas que usamos ou das variáveis que estudamos. Em vez disso, somos ensinadas explícita e implicitamente que a ciência é ideologicamente neutra, embora nossos colegas da ciência e campos não científicos demonstraram nitidamente que este não é o caso. […] Na verdade, muitas vezes somos realmente desencorajadas a pensar sobre questões como empoderamento ou justiça social, porque a ciência nos diz por meio de instrução e/ou imersão que essas são preocupações ideológicas que não têm lugar na ciência (ideologicamente neutra).[1]

Diz-se, ainda, que a história ocidental do conhecimento apresenta em sua trajetória três grandes Feridas Narcísicas, por vezes atribuídas a Sigmund Freud (mas isso pode ser questionável[2]). A primeira delas, a Astronômica: o heliocentrismo, proposto por Copérnico, “remove” a Terra do centro do universo e a localiza entre os demais planetas que orbitam o Sol. Em 1543, o astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) publicou sua obra “On the Revolutions of the Heavenly Spheres”[3] [Sobre as Revoluções das Esferas Celestes], um marco no pensamento científico astronômico.[4] Foi nesse livro que Copérnico ousou reorganizar a narrativa sobre o cosmos ao propor a ideia de que a Terra não era o centro imóvel do universo, como se acreditava desde o aristotelismo e que foi aceito e fortalecido pelo poder institucional da Igreja Católica. Propôs-se, então, o heliocentrismo: a Terra era uma esfera celeste em movimento, girando diariamente sobre seu próprio eixo e orbitando anualmente o Sol. E embora essa concepção geocinética e heliocêntrica já houvesse sido ponderada por pensadores antigos, ela foi amplamente rejeitada em favor da visão tradicional: uma Terra fixa no centro do universo, sustentando o modelo geostático e geocêntrico.

Em um mundo que disputa conceitos politicamente, não é de todo um espanto saber que as críticas à ideia copernicana não se limitavam a discordâncias teóricas. Em vez disso, embora essas discordâncias fossem ancoradas em observações astronômicas e em pressupostos da física do movimento, passagens bíblicas interpretadas em sua literalidade, bem como debates epistemológicos que levavam em conta os sentidos humanos, eram mantidos de modo a tentar confirmar/justificar a aparente imobilidade terrestre. É importante destacar que Copérnico não se ocupou de desmontar essas objeções ponto a ponto. Em vez disso, apresentou um argumento astronômico que, embora inovador, não foi suficiente para convencer a maioria. Logo, o heliocentrismo copernicano, naquele momento, teve pouco alcance. Inclusive, o próprio Galileu Galilei, conhecido defensor posterior desse modelo, inicialmente não aderiu de imediato à teoria. Foi apenas quando sua nova física forneceu ferramentas para compreender a mecânica dos corpos, e após ter saído vivo da Inquisição Romana, que Galileu se aproximou mais desse novo olhar sobre o universo.[5] O resultado é que a Terra perdeu o seu lugar privilegiado na narrativa cósmica, e com isso, o ego do Ocidente foi ferido pela primeira vez.

A segunda ferida é a Biológica-Evolucionista, quando o inglês Charles Darwin propõe a sua teoria da Origem das espécies por Seleção Natural:[6] o ser humano deixa o seu posto aristotélico de “ápice da evolução”, passando a ocupar um espaço comum entre todos os organismos do planeta na evolução das espécies. Como um bom narcisista que faça jus ao seu título, o Academicismo ocidental foi bastante “cuidadoso” em manter debaixo dos panos um fato que talvez ofuscasse o seu reflexo no espelho das descobertas. É comumente atribuído ao naturalista inglês, Charles Robert Darwin a teoria da seleção natural, e de fato, o seu trabalho foi notável. Com algum esforço, ainda se mencionam que Alfred Russel Wallace também teve ideias muito parecidas com as do Inglês, e chegaram até a trocar cartas e publicações.[7] Mas raramente se fala algo sobre Abu Usman Amr Bahr Alkanani al-Basri, mais conhecido como Al-Jahiz, que cerca de mil anos antes de Darwin e Wallace já escrevia seu livro “Kitab al-Hayawan”[8] (O livro dos animais, em tradução livre).

Em seu livro, Al-Jahiz afirma que os animais estão imersos em uma luta pela existência (em uma relação entre o acesso aos recursos, evitar serem comidos e se reproduzir), e que as condições ambientais afetam os animais fazendo com que eles desenvolvam novas características que facilitam sua sobrevivência, o que por sua vez gera novas espécies porque os animais que sobrevivem transmitem suas características “adaptadas” ao se reproduzir; isto é, os animais mudam pela seleção natural. Após cerca de mil anos do trabalho de Al-Jahiz, Charles Darwin publica A Origem das Espécies… em 1859.[9] Esse contexto é importante para entendermos que a ferida narcísica não é neutra, ela tem um percurso em sua produção.

Dito isso, as descobertas evolucionistas “removem” o ser humano de seu lugar de topo da “Scala Naturae”,[10] como propunha Aristóteles; um topo que fazia do ser humano o ser final, mais complexo e, portanto, narcisicamente um ser premiado como o mais desenvolvido. O fato de Darwin precisar aguardar quase duas décadas para anunciar suas descobertas por medo de represálias da comunidade religiosa da época indica o quanto havia, no Ocidente, uma formação social instituída na contenção e no aprisionamento dos conceitos que deveriam ser oriundos de uma premissa religiosamente narcísica. Tudo deveria satisfazer puramente o ego de quem detinha o poder sobre o conhecimento. Nesse caso, uma instituição milenar que acreditava que o ser humano havia sido formado por uma divindade, e que foi criado tal como se percebia na época e, mais, que o próprio era como a “imagem e semelhança de seu criador” (Deus), ser despossuído dessa narrativa só poderia gerar um ataque narcisista. Essa ferida mostrou ao Ocidente que a sua origem e a de um fungos ou uma barata eram evolutivamente semelhantes e biologicamente acaso. Seu posto de espécie superior foi demolido.

Por fim, a terceira ferida narcísica, proposta pelo próprio Freud, diz respeito ao conceito psicanalítico de “Inconsciente”, no qual o ser humano, não mais habitando nem o “centro do universo” nem o “topo da evolução”, também não teria tanta autonomia sobre seus próprios desejos quanto se pensava e tão pouco estaria sujeito às vontades de uma suposta entidade divina. Ao apresentar os conceitos de inconsciente, pela psicanálise, Freud também vai sugerir que o aparelho psíquico não é uma instância controlada em sua totalidade, além de ser inacessível em grande medida. Com isso, o ser humano, controlado por uma entidade supra-humana, ou que pudesse ter uma agência completa sobre seus gostos, vontades e desejos, perde essa autonomia; essa pobre criatura ocidental é despossuída no percurso científico e epistemológico da História.

Curiosamente, o ser ocidental não perde a oportunidade de enunciar suas posses sobre as descobertas, ou de ao menos dizer que elas sãos as “mais mais” em alguma instância; e Freud, quando escreveu Uma Introdução Geral à Psicanálise (entregue como palestras de 1915-1917 e traduzida pela primeira vez para o inglês em 1920), disse que

o anseio do homem por grandiosidade está agora sofrendo o terceiro e mais amargo golpe da pesquisa psicológica atual que está se esforçando para provar ao “ego” de cada um de nós que ele nem mesmo é o mestre em sua própria casa, mas que ele deve permanecer contente com os mais migalhas de informação sobre o que está acontecendo inconscientemente em sua própria mente. Nós, psicanalistas, não fomos os primeiros nem os únicos a propor à humanidade que eles deveriam olhar para dentro; mas parece ser nossa sina defendê-lo mais insistentemente e apoiá-lo por evidências empíricas que tocam cada homem de perto.[11]

Independentemente do caráter científico ou filosófico de cada um desses pressupostos, o que eles têm em comum é o fato de que quando foram propostos provocaram discussões, uma vez que contrariavam os construtos morais e epistemológicos de fazer-saber de suas épocas; principalmente os dogmas religiosos, que nas instâncias das primeiras proposições era uma instituição reguladora do saber-fazer. Se hoje a Academia e a Ciência atuam nessa regulação, é importante notar que ela não atua isoladamente. Todo conhecimento é afetado pela política, pela economia, pelas leis e pelas pressões de Estado.

Não existe neutralidade na história de nenhum conhecimento. E é aqui que eu quero sugerir que existe, ainda, uma Quarta Ferida Narcísica no Ocidente, e que ela é da ordem Anticolonialista: o ser humano universal e o sujeito neutro são despossuídos de seu posto narcísico de unidade representativa. Ao longo de toda a história do conhecimento ocidental, fala-se de um modelo ser humano: desde estudos naturalistas, históricos, antropológicos e sociológicos, até nos âmbitos da medicina, psiquiatria, psicologia e psicanálise, o ser humano é posicionado epistemologicamente no lugar de universalidade. Se fala do ser humano como se este (amplamente designado como “o homem”) entra no curso da história e do saber ocidental como uma criatura supostamente genérica, mais ou menos igual em todos os espaços, com atribuições que hora feita a um sujeito se referia a todos igualmente nos termos da ciência: o corpo humano, a mente humana, a “natureza humana”, o aparelho psíquico, etc. Trata-se quase de uma ontologia do ser humano que anuncia um modelo universalizado. Apesar disso, as práticas materiais sugerem concretamente que se fala de um ser humano, mas age-se como se houvesse variações substanciais entre essa categoria.

Não se trata de uma exclusividade ocidental a tratativa diversa dada aos diferentes grupos sociais. Uma romantização ocidental contemporânea, que adora termos como decolonial, contracoloinial e anticolonial parece não compreender profundamente o que isso significa e cria-se uma tendência em achar que todas as populações do planeta eram, no pré-colonialismo, pacíficas, altruístas e empáticas. Ou seja, sempre houve conjuntos humanos que disputaram recursos entre si. Mas o ocidentalismo construiu uma narrativa e a implementou imperial e hegemonicamente a partir da noção de uma homogeneização contraditória: criou-se a narrativa de um ser humano, e a partir dela se espalhou o modelo que deveria ser adotado. Essa narrativa construiu o sujeito neutro, sobre o qual todes falamos, mas que nunca o localizamos na cena epistemológica do discurso

Essa produção neutra e universalizante é a mesma que desresponsabiliza este sujeito de seus feitos ao longo da história; ao mesmo tempo que tudo é feito em nome desse humano, nada é culpa de um humano especificamente. E nesse fazer narcísico e colonialista – ou, para fazer esse ato narcísico e colonialista – o ocidente criou o humano negro, indígena, amarelo, marrom; o gordo; o homossexual; o transgênero/transsexual; o neurodivergente; o selvagem, primitivo, sujo, bruto, pobre, demoníaco.

A criação em oposição constituinte é o que permite o colonialismo criar-se como sujeito neutro e não nomeado a partir da nomeação dos estranhos e despossuídos e despojados. Cria-se uma oposição, um antagonista, para que, uma vez nomeados e marcados, também marquem o sujeito hegemônico sem que ele pertença às mesmas categorias de nomeação. Assim é para o sujeito branco, que não se entende racializado, mas que racializa todos os demais; o sujeito cisgênero, que não quer se inserir nessa classificação, mas que classifica e categoriza as identidades trans; o sujeito religioso; que não considera pertencer a um ritual mágico e místico, mas que transforma em magia tudo que é alheio. Em suma, o ocidente cria a si à medida que cria o “outre”, num golpe narcísico de autorreferência que se cresce quando classifica os demais. A própria separação do sujeito ocidental em humano em contraposição aos animais não humanos mostra como é na oposição que se faz o sujeito neutro e universal. E que seja dito: universalizar e neutralizar um sujeito só é possível com muita limpeza e higienização; e isso o colonialismo também fez e faz.

A quarta ferida narcísica é justamente aquela que fere o ego ocidental ao jogar sobre seus sujeitos as adagas que o próprio ocidente criou e atirou sobre nós. O anticolonialismo devolve, uma a uma, as lanças, as espadas e os dardos epistemológicos que o colonialismo lançou sobre as diferentes populações humanas em seus atos terroristas de nomeações. É preciso devolver à hegemonia as nomeações que lançaram sobre nós. A branquitude tem de se haver com suas nomeações; a cisgeneridade com suas fantasias e delírios; a fé cristã que beba de seu próprio sangue e coma do seu corpo em um ritual sacro; as clínicas e a medicina que se localize com suas nomeações. Ferir o narcisismo ocidental é sempre um ato que não acontece sem resistências e investidas de poder das instituições regulamentadoras da vida. Mas uma coisa é certa, essa ferida também está feita; e que esses sujeitos que se atentem a cuidar; pois não vamos recuar no nosso ato de saída dessas prisões discursivas e epistêmicas.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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REFERÊNCIAS


[1] van Anders, S. (2012). From One Bioscientist to Another: Guidelines for Researching and Writing About Bisexuality for the Lab and Biosciences, Journal of Bisexuality, 12(3), 393-403, doi: 10.1080/15299716.2012.702621. p. 303. Ver também: Fausto-Sterling, A. (2000). Sexing the body: Gender politics and the construction of sexuality. New York, NY: Basic Books.

[2] Horgan, J. (2015). Copernicus, Darwin and Freud: A Tale of Science and Narcissism. Scientific American. Disponível em: https://blogs.scientificamerican.com/cross-check/copernicus-darwin-and-freud-a-tale-of-science-and-narcissism/, acessado em 14 de janeiro de 2025.

[3] Copernicus, N. (2010). On the revolutions of heavenly spheres. Prometheus Books.

[4] Bala, A. (2006). The Wider Copernican Revolution. In: The Dialogue of Civilizations in the Birth of Modern Science. Palgrave Macmillan, New York. https://doi.org/10.1057/9780230601215_13.

[5] 400 Years Ago the Catholic Church Prohibited Copernicanism. (2016). The Ohio State University. Disponível em: https://origins.osu.edu/milestones/february-2016-400-years-ago-catholic-church-prohibited-copernicanism, acessado em 26 de janeiro de 2025.

[6] Darwin, C. (2017). A origem das espécies. FV Éditions.

[7] Papavero, N., & Santos, C. F. M. dos .. (2014). Evolucionismo darwinista? Contribuições de Alfred Russel Wallace à teoria da evolução. Revista Brasileira De História, 34(67), 159–180. https://doi.org/10.1590/S0102-01882014000100008.

[8] Al-Jahiz (1909). Kiiab al-Hayawan, Vol. I, Cairo.

[9] Bayrakdar, M. (2019). Al-Jahiz and The Rise of Biological Evolutionism. Salaam. Disponível em: https://salaam.co.uk/al-jahiz-and-the-rise-of-biological-evolutionism/, acessado em 26 de janeiro de 2025; O filósofo muçulmano que formulou teoria da evolução mil anos antes de Darwin. (2019). BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47577118#:~:text=no%20mundo%20isl%C3%A2mico.-,Sele%C3%A7%C3%A3o%20natural,Amr%20Bahr%20Alkanani%20al%2DBasri., acessado em 25 de janeiro de 2025.

[10] Hodos, W. (2009). Evolution and the Scala Naturae. In: Binder, M.D., Hirokawa, N., Windhorst, U. (eds) Encyclopedia of Neuroscience. Springer, Berlin, Heidelberg. https://doi.org/10.1007/978-3-540-29678-2_3118.

[11] Ver: Horgan, J. (2015). Copernicus, Darwin and Freud: A Tale of Science and Narcissism. Scientific American. Disponível em: https://blogs.scientificamerican.com/cross-check/copernicus-darwin-and-freud-a-tale-of-science-and-narcissism/, acessado em 14 de janeiro de 2025. [Grifo meu].