Faz mais de quatro meses que eu passava pela Avenida Flora, localizada em um bairro suburbano da Cidade de Osasco, em São Paulo. Era um sábado, de dia – incidência solar em alta. Eu caminhava pela avenida; pensava na vida; no celular tocava os concertos para piano, de Mozart.

Em uma determinada altura da avenida eu vi muito lixo sobre a calçada, achei triste a situação em que se encontrava aquele lugar. Fiquei ainda mais triste por ver que ali havia um cachorro que fuçava os restos abandonados de comida – infelizmente esta é uma realidade muito presente: o número de animais abandonados cresce a cada dia; mesmo assim, as pessoas insistem em comprar animais “de raça”, somente para sustentar um débil e estúpido status social.

O que já estava lastimável ficou ainda pior. Continuei caminhando e vi outra cena. Dessa vez, era um homem alto que estava em meio a outro monte de lixo, abrindo sacola por sacola, procurando coisas de que pudesse se saciar. Aquilo foi forte também! A soma das cenas me deixou perplexo. A mesma avenida que ostenta pastelarias e pizzarias, lanchonetes e padarias; no mesmo lugar em que bares lotados ao som de uma música alta exibiam e vendiam seus churrascos e suas bebidas; na mesma rota de milhares de pessoas diariamente, com direito a muitas casas e blocos de apartamentos, escolas e supermercados; ali estava um ser humano, tal qual um cão, buscando saciar-se de lixo. O mesmo lixo que provavelmente veio daqueles supermercados, bares e pizzarias, e que foi rejeitado pelos moradores das inúmeras casas e dos vários apartamentos é o que dava de comer ao homem e ao cão. Não que os moradores da Avenida Flora pensassem nos necessitados quando ali depositaram o lixo. Aqueles detritos foram descartados porque não serviam para mais nada. Daí o nome lixo.

Seriam aquelas criaturas invisíveis? Mas o homem era grande, e o cão de cor castanha. Quando alguém vê uma cena assim, será que é capaz de praguejar contra o governo? Será que ainda diriam que é culpa do PT (é só o que vomitam por aí)? Ou pior, diriam, por ventura, “Deus, tenha piedade delas“, e pronto? Súplicas não fazem nada quando nossas ações são nulas! Se podemos ajudar, para quê pedirmos permissão? Façamos!

Na hora fui tomado de uma angústia muito forte – principalmente por perceber que o lixo não “estava rendendo satisfação“! Isso já faz mais de quatro meses, mas a minha memória é boa, e isso me causa dor. A dor só não é maior que o sentimento corrosivo que tenho por não haver feito nada. Poderia ser que na hora eu não tivesse dinheiro no bolso, não ando sempre com dinheiro; mesmo assim, aonde eu estava indo havia comida – eu poderia ter voltado e dado de comer a quem precisava. Por que não o fiz? Quanta dureza no meu coração!!… Será que às vezes somos movidos de tanta compaixão que congelamos até a possibilidade de uma ação Humana?

Você! Não deixe isso acontecer. Alguém pode ficar com fome por conta de uma atitude como essa. Já temos muitas pessoas que escondem o olhar para isso, que fingem nada ter visto e seguem em frente. Enquanto isso, os invisíveis se multiplicam, sofrem e padecem. Nenhum deus fará nada por isso! Não faz sentido acreditar que é permissão divina haver tanta atrocidade nas Avenidas Flora por aí. Os culpados somos nós mesmos que, podendo dividir, preferimos arrendar o maior número de bens possível; o nosso egoísmo que é o autor desse mundo em crise de virtudes.

Para me relembrar do ocorrido, como se em uma conspiração da vida, li há duas semanas um poema de Manuel Bandeira. Embora tenha sido escrito há aproximadamente cem anos, foi como se Bandeira estivesse ao meu lado e, ao presenciar toda a cena, resolvesse escrevê-la:

O Bicho - Manuel Bandeira

 

#VocêJáParouParaPensar?

 

Andreone Medrado
Devaneios Filosóficos