Hoje, dia que escrevo isso, é nove de julho; quase onze.
Se você me lê exatamente na data dessa publicação, então aí talvez seja o próprio onze.
Um anteontem de tempo algum, de significado nenhum.
No onze (11 = hoje – 37) foi quando a primeira casa de Pelúcida foi inaugurada.
Sim, logo cedo; aqui a cidade começou às sete e quinze da manhã.
Mas de nada importam essas informações senão para nomear Pelúcida
e para dizer que a inauguração de sua morada tem, então, um novo ciclo – o trigéssimo sétimo, digamos.
inútil e desnecessário, obviamente.
Ao longo do tempo, as vontades se reinventam,
os desejos de rearranjam,
os temores se renovam;
as coisas se transformam.
Algumas delas se tornam mais e mais nítidas,
como o fato de que algo não está muito bem nas redondezas;
boatos dizem que existem ameaças de deslizamento de terra…
o último foi há nove meses – supostamente por vazamento de gás na tubulação subterrânea;
dessa vez, segundo fontes seguras … ok, não liberaram a informação…
deixe o tempo…
Fala-se muito do tempo que passa,
diz-se muito dos ciclos anuais,
repetem demais palavras vãs,fazem de Pelúcida um mero e temporário divã,
com a boca e com as letras se diz muita coisa que não existe na prática;
Assim como na prática residem palavras que jamais foram ditas,
intenções que jamais foram comunicadas
e golpes que prometeram nunca executar – mas que executaram com técnica e maestria;
“mova-te para que eu te veja”
movimente-se, quero ver se suas palavras caminham no mesmo sentido de suas atitudes;
espere!
não desperdice o seu (e o nosso) tempo,
sabemos bem que são sentidos contrários,
se a boca diz do que nos corações estão cheios,
quiçá estejam cheios de fantasias e de ilusões, para não dizer carências e ansiedades dependentes.
As falsas piedades duram tão menos que uma noite tranquila de sono;
elas fervem como o vulcão,
porém como o magma que encontra o mar, ao vaporizar no contato, petrificam-se como foram antes;
então o tempo é só mais um tempo,
as lembranças só lembranças,
e que bom que passam para algumas pessoas sortudas.
Houve um tempo,
houve um dia,
houve um evento,
em que a neblina tomava conta do cômodo,
invadia a casa,
as escadas,
a rua,
invadia e transbordava… ficou no tempo…
Houve um momento de alardes,
sirenes,
polícia,
bombeiros,
resgate,
psiquiatra,
família,
amizades;
tudo profundamente indesejado, mas acontecendo alí, junto…
Houve um dia que,
embora se acredite ter passado,
embora o creiam percebido,
apenas deixou de ser visto,
apenas se fingiu esquecido;
não mais se disfarça que é fingido…
Houve um tempo,
houve um ato,
mas também já houve um sonho,
existiu um ser,
houve confianças e vontades,
que se foram de verdade…
A neblina, essa nunca mais passou,
coisas que ficaram naquele dia
nunca mais foram encontradas na superfície,
a nuvem gasosa as escondeu para sempre,
para vê-las há que mergulhar,
quem existiu ali, por traz da cortina invisível, nem sei se você banca encontrar.
Houve um tempo,
que não voltará mais;
Existe um “eu” que não se satisfaz.
Muito há que se dizer sobre essa criatura chamada Pelúcida;
muito ela tem (ou teria?) a dizer,
mas parece não querer mais;
quando contestada com o olhar, ela disse que é algo além de um vazio não-querer;
em vez disso, acredita ser a impossibilidade ética de ser quem ela é…
quando há o contato, dizem o mesmo de sempre
“queremos a abertura das cancelas,
queremos saber tudo que você quiser mostrar,
queremos ouvir tudo que você quiser contar,
te quero, te quero, te quero; diga! seja! fale! esteja!”
Pelúcida já acreditou nessas frases;
até o dia em que deixou de crer ser coincidência que
sempre que ela dava aquilo que supostamente queriam, tudo aquilo que diziam querer era justamente o que afastava as pessoas.
“Não pode ser uma coincidência!
Está mais para reincidências!”
Querem ficar – desde Pelúcida só mobilize atos e vivências superficiais;
querem escutá-la – desde que suas palavras encontrem espaço em caixinhas pré-definidas;
querem construir – desde que seja com os materiais que trazem – geralmente materiais descartáveis;
querem tudo – menos Pelúcida;
querem um espelho humano.
Dizem “nesse momento estou indisposta” – mas isso pode muito bem ser lido como “nesse momento estou indisposta para você!”
“Não me sinto pronta para me relacionar com você, Pelúcida!“
“Estou confusa o que vão dizer se me virem com você, dessa cor, com esse cabelo, com esses brincos!”
Parece que muita gente não diz o que pensa – ao menos não com palavras; já que suas atitudes cotidianas deixam suas vontades mais perceptíveis que um grito de magrugada numa rua vazia.
Pelúcida também tem palavras que de tanto estarem prestes a sair, e nunca saírem, aderiram-se às paredes da sua garganta;
existem tantos pontos de vista que falam profundamente de suas vontades, mas que por nunca serem emitidos passaram m a habitar todo o seu olho e o seu triste e sorridente olhar;
ideias, palavras, vontades, desejos… são tantas coisas;
ela queria poder dizê-las sem o receio de ferir quem as escuta;
suas sinceridades, por vezes ácidas, queimaria quem escutasse suas verdades e lesses seus pontos;
Mas ela queria tanto dizer certas coisas, tanto…
certas coisas demasiadas duras,
demasiadas sensíveis,
profundamente vulneráveis
e potencialmente sinceras;
queria Pelúcida poder dizer tudo isso para manter perto de si as pessoas,
já que acredita que quem ficar que seja por conhecer onde está;
mas nem dá tempo disso tudo;
e, mesmo que dê tempo, sabe que pode machucar…
de tanto poupar às pessoas,
castiga a si mesma;
engole suas palavras à moda 37;
bebe seu próprio ácido,
ingere o féu,
inala o gás…
tudo para que não precise submeter ninguém a isso.
Suas maiores angústias seriam reduzidas se suas palavras fossem ditas como existem dentro de si;
mas já sentiu tantas vezes a insensibilidade agressiva das palavras que jogaram em sua pele, que não deseja isso a outrem;
quantas palavras atravessaram sua pele?
quantos dardos inflamados furaram seu pescoço e suas mãos;
quantas vezes escarraram e sua boca enquanto a beijavam?
Ninguem pior que as muitas criaturas que se aproximaram nos momentos de fragilidade e durante as tempestades,
mas que passados os males e cessado o temporal, foram embora e deixaram a casa suja e com seus objetos quebrados e inutilizáveis?
Há aquelas situações em que o utilitarismo atinje níveis sutis o bastante para anestesiar a pele antes de rasgá-la;
Pelúcida ferve de ódio toda vez que percebe o engodo,
se enche de um desgosto raivoso toda vez que nota cinismo utilitário ao passar a anestesia;
quiçá a maior parte de sua cólera seja porque se importa com algo tão banal quanto atenção de pessoas despreocupadas com ela;
sentimentos de estupidez tomam conta de si;
se pergunta porque ainda assim permanece em espaços insalubres…
se questiona porque, com toda profundidade do mar, permenece nadando na superfície enquanto suplica pela companhia de pessoas medrosas;
Ela sabe que é porque em sua vida faltou sempre um lugar seguro para poder nadar;
nunca foi o caso de existir aquele espaço afetivo de segurança que não fosse traído em algum momento;
nunca exigiu que ninguém ocupasse esse espaço nem que preenchessem essa falta;
mas sua insistência por querer formar esse espaço criou em si a necessidade de ter alguém perto sem que fosse aprisionante,
tornou-se uma escutadora genuína;
mas isso também a tornou alvo de pessoas carentes e profundamente angustiadas… sedentas por que as acolha intensamente…
de uma lado, alguém muito disponível para escutar,
do outro, alguéns profundamente carentes para despejar suas emoções não compreendidas…
enfim, Pelúcida tem estado cada vez mais desejante de contatos,
porém, e paradoxalmente, cada vez menos interessada em se colocar nas mesmas situações de sempre;
quiçá estivesse buscando nos espaços errados, mas nem é o caso de estar procurando algo;
em vez disso, a cada dia se recolhe, se atrofia, se entorpece, se isola.
Quem um dia já amou um ajuntamento hoje o evita sempre que pode;
tudo lhe fere, tudo lhe empossa e depois lhe joga na possa;
a maldição talvez seja ter esperança;
se não fora a maldita esperança, certamente que nunca mais abriria seu coração para ninguém.
E a maldição nem é isso, especificamente;
o ponto é que Pelúcida não aceita viver se não for para ser, de alguma forma, intensa e sentimental;
a única maneira de ser assim é sendo sensível à quem chega, sendo amante genuinamente, sendo presente, abraçando o desconhecido;
mas toda vez que isso acontece, vem a frustração…
enfim, um dilema posto, literalmente ser ou não ser.
Por que ainda guarda para si suas palavras?
Por que não xinga?
Por que não diz “Vá embora!”?
Quão complicado é dizer “se querer um quarto de despejo, que procure outro, não estou disponível!”?
Quem explica a dificuldade de dizer “Não acredito no seu amor nem na sua amizade!”?
Ela sabe que para além dessas verdades leves, aquelas mais duras e mais profundas abalariam quem as escutasse;
e não quer isso a ninguém…
Seu nome – Pelúcida -, segundo dizem, significa aquilo que é translúcido; que deixa passar a luz;
mas o tanto de desânimo e tristeza tem feito que fique cada vez mais opaca…
nesse momento somente o estar só pode me tranquilizar;
nesta exata hora, nessa presente data, nesse onze,
nada peço, nada desejo, nada sugiro, senão a solitude;
só repito o que já disse antes:
Não pergunte sobre mim,
não pergunte como estou,
não queira saber do meu dia.
Não me force a mentir outra vez.
Não supunha coisa alguma,
não me enfeite a vida,
não ponha a mesa,
não ajuste os pratos,
não passe o café.
Não estou mais aqui.
Não coloque as roupas na máquina,
não abra as janelas,
não ajuste o pano do sofá,
não ligue os Leds,
não trave a porta na parede.
Não use meus rituais.
Não chame pelo meu nome,
não toque minhas mãos,
não fale nada.
Não me chame.
Não me abrace,
não me beije,
não me aperte,
não sussurre ao meu ouvido.
Não me ame.
Em vez disso me corte:
corte meus braços,
separe minhas pernas,
arranque as minhas mãos,
divida a minha língua,
remova os meus olhos.
Me enterre fora desse lugar.
Espalhe cada parte pela cidade morta,
não deixe nada atrás da porta,
leve-me para longe,
onde o vento foi e nunca mais voltou.
Me jogue outra vez fora, esqueça onde você pisou.
Mas não olvides o coração;
este não leve para outro lugar que não seja o rio das lágrimas,
no recanto da solidão.
Enterrem meu coração ali, na curva do rio,
onde param os entulhos e destroços trazidos pela força das águas,
num lugar cheio de tudo,
mas de valores, vazio;
Enterre-o ali,
onde o indesejado repousa,
onde entrar ninguém ousa.
E que seu grito ninguém ouça.
Mas não volte para visitá-lo,
Não faça preces,
Não olhe,
Não pense,
Não lembre.
Não me procure mais.
Vá!
Não olhe para trás.
Vá, e não volte mais,
não pergunte se estou,
não espere pelo que não ficou,
não espere pelo que já se desfez.
Não voltarei mais!
Não dessa vez.
* * *
Para Pelúcida, a grande e mais alegre esperança é que tudo acaba;
uma hora a contagem é interrompida;
em algum momento aquele relógio para de girar seus ponteiros;
nesse momento terá o seu descanso e sua inanição.
Enquanto esse dia não chega,
lava-se com lágrimas as machas deixadas em seu tecido preto.
Por muito tempo disse que ela deveria se calar;
hoje não!
Hoje quero que ela seja o mais perto do que pode ser antes de morrer.
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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