Introdução

A produção do conhecimento acontece em várias instâncias, de várias maneiras e com vários significados e significantes. Num sistema ontológico de nomeações, o fazer-saber e o saber-fazer competem entre si. Toda narrativa passa a ser uma narrativa em e sob disputa. E é nessa arena do conhecimento que, na então nas Ciências Biológicas, outrora nomeada como Ciência Natural ou Naturalismo, as explicações sobre o que poderia ser a vida, bem como suas origens e percursos foram delineadas numa ótica particular. A Teoria da Evolução, desenvolvida por Robert Wallace e Charles Darwin (mas difundida em nome de Darwin)[1] tem recebido aderência científica, por inúmeras razões que veremos. Todavia, não raramente ela ainda se restringe a um pensamento separatista da compreensão de muitos fenômenos; o que mais recentemente tem sido questionado a partir da Teoria da Construção de Nichos (TCN). Uma outra narrativa sobre a produção do conhecimento, e que também está em disputa, diz respeito à ideia de modernidade e suas constituições. E aqui Bruno Latour traz tensões sobre a teoria do conhecimento científico, sobre como as relações entre seres (humanos e não-humanos), bem como objetos e conceitos podem ser compreendidas.

Um questionamento insurge dessa apresentação truncada e supostamente desconexa apresentada no parágrafo anterior: qual a relação entre Bruno Latour e a Teoria da Construção de Nicho? Aparentemente são duas abordagens que não dialogam entre si, é verdade; mas considero que, se vistas mais de perto, dizem coisas semelhantes com linguagens um pouco diferentes. E é isso que este ensaio busca brevemente apresentar. No entanto, o uso de tais perspectivas em associação tem ainda outra finalidade, que é dissertar sobre como, a partir de ambas, se pode pensar o racismo enquanto uma marca da modernidade, enquanto uma expressão do Moderno[2]. Se chamamos de Moderno o conjunto de saber-fazer que separa a existências de áreas distintas, como a ciência, a política e o discurso, temos que existe, em outras epistemologias, uma biologia evolucionista que não raramente separa a vida entre gene, cultura, organismo e ambiente. Essa estratégia que organiza o saber a partir de purificações encontra similaridade cronológica, estrutural e, não raramente, ontológica. Ou seja, no período de “ascensão” da Ciência enquanto um fazer-saber que se propõe universal, as diferentes instâncias do conhecimento vão se organizando e se destacando uma das outras, ao ponto de inúmeras áreas e subáreas tratarem de temas aproximados, mas mantendo distância entre as áreas. É também nesse período de “ascenção” que surgem as teorias raciais, as invasões européias em continentes como Américas, África e Ásia, sobretudo.

Num conjunto de métodos e definições, também de proposição universalizante, humanos e não-humanos, seres e objetos, objetos e conceitos, são separados entre si; estudados por várias óticas, e pretendidos imiscíveis. Quanto ao racismo, objeto central nessa discussão, ele surge dessa modernização do saber: primeiro separa-se o humano do não-humano, os organismos dos objetos, os agentes das agências; feito isso, de um lado, o humano universal (o branco), do outro os animais e os objetos. Nessa animalização, corpos racializados figuram sempre como o outro, como o “fora de nós”, fora da brancura.[3] Não é preciso ir muito longe para notar que o corpo não-branco – aqui com destaque ao corpo negro – é des-humanizado, desprovido de uma identidade e de racionalidade. Logo, o que poderia ser pensado separadamente, como o Moderno em Latour, a Construção de Nicho na Biologia e o Racismo é posto diante de um mesmo espelho que, apesar das singularidades dessas três ontologias, refletem uma imagem que se mescla e se comunica.

Teoria da Construção de Nichos

A Teoria de Construção de Nichos refere-se ao processo em que os organismos, por meio de suas atividades, interações e escolhas, alteram tanto o próprio nicho quanto o de outras espécies. Nesse processo, ao utilizar e transformar a seleção natural, a construção de nichos gera mudanças com impactos evolutivos em diferentes níveis[4], como mudanças no ecossistema promovidas por animais humanos e não humanos, na dinâmica de polinização, no fluxo de rios, na prática de cultivo de plantas, etc.[5] Participando dessa dinâmica estão espécies que desempenham o papel de construtoras de nicho e que possuem uma função ecológica importante, uma vez que criam e modificam habitats e recursos utilizados por outras espécies, influenciando o fluxo de matéria e energia nos ecossistemas.[6] Comumente, esse processo é nomeado como engenharia de ecossistemas.

Por muitos anos, após elaborações de Robert Wallace e Charles Darwin, a chamada Teoria Evolucionista a partir da Seleção Natural se difundiu, isso porque ela fornece bases consistentes para a compreensão de mecanismos que explicam a origem das espécies, bem como dinâmicas geográficas e comportamentais que mobilizam os organismos e os recursos ambientais. Resumindo de um modo grosseiro, pode-se dizer que a seleção natural é o mecanismo em que os organismos com características vantajosas (ou que num dado ambiente oferecem maiores possibilidades de sobrevivência) têm maiores chances de se reproduzir, transmitindo essas características para as gerações futuras. Com o tempo, essas características favoráveis se tornam mais comuns na população, enquanto as desfavoráveis diminuem. Esse processo é considerado o principal mecanismo da evolução das espécies.[7] No entanto, muitas lacunas não permitiam entender com mais abrangência como essa seleção acontecia. Lacunas genéticas, como processos hereditários, e não inclusão das modificações ambientais influenciadas pelos organismos podem ser pontos que precisaram ser abertos para serem compreendidos; eis a importância de pensar a construção de nichos.

Assim, a Teoria de Construção de Nichos, que está dentro da chamada Teoria Moderna da Evolução (também conhecida por Síntese Moderna, ou Teoria Sintética da Evolução, ou Neodarwinismo), afeta a anterior em alguns pontos importantes: I) ela amplia o conceito de herança, incluindo não apenas os genes, mas também as modificações ambientais causadas pelos organismos, que podem interferir no modo como os genes são transmitidos para as gerações futuras e afetar sua adaptação; II) ela reconhece o papel da ecologia na evolução, mostrando que os organismos não são apenas produtos, mas também produtores (ou agentes) de seu ambiente, e que as interações entre os organismos podem gerar novas possibilidades e restrições evolutivas e III) ela incorpora o papel da cultura na evolução, especialmente nos seres humanos, que são capazes de construir nichos complexos e dinâmicos, que envolvem aspectos sociais, tecnológicos, simbólicos e cognitivos, e que têm consequências evolutivas tanto para si mesmos quanto para outras espécies.

Bruno Latour: Teoria Ator-Rede (TAR) e os Modernos

Em sua obra, Bruno Latour apresenta conceitos e argumentos que mobilizam a ideia de Moderno/Modernidade. Seria moderna a sociedade que rejeita uma confluência entre os distintos, que não toma para si assumidamente que o mundo é composto por organismos, coisas, objetos e conceitos que se entremeiam e se constituem nessa hibridização. Ser moderno é um processo esquizóide, que organiza, compartimentaliza e institui diferentes loci a partir dos quais a realidade será lida e interpretada. A natureza, a sociedade e o discurso figuram como grandes preditores dessa separatividade.[8] Essa separação pode ser fruto do processo de purificação e de tradução, a partir dos quais é justamente na produção de “castas” que se separam espaços epistemológicos que, mesmo dialogando sobre os mesmos objetos e conceitos, não se assumem numa mistura. A Pandemia da COVID19, que se espalhou ao redor do mundo, foi discutida por jornalistas, cientistas moleculares, epidemiologistas, pessoas da estatística, da antropologia, da política e inclusive por líderes religiosos. Embora seja o mesmo assunto, afetando organismos vivos e conceitos de todos tipos (como economia, fronteiras e política), cada área do saber se organizou para, em suas redomas purificadas, compreender os fenômenos. Isso é o que, em termos simplistas, Latour consideraria como Moderno. Como não fugiria à crítica latouriana, essas práticas de fato se impõem, mas será que elas de fato existem? De fato é possível, na prática dos fatos que se fazem haver uma separação marcadamente real entre puros e impuros, natural e social, sujeito e sociedade, natureza e cultura?

De fato essa separabilidade não se confirma na prática objetiva; embora sua sistematização incida sobre a materialidade. O que nos convida a des.modernizar o mundo; a considerar que jamais fomos modernos.

Nesse ponto, o conceito da Teoria Ator-Rede (TAR) localiza Latour nessa discussão que busca analisar as relações entre os atores humanos e não-humanos (bem como objetos, instrumentos, conceitos, etc) envolvidos na produção do conhecimento científico. Sem querer fechar Latour em uma perspectiva única, cabe inferir que ele flerta consideravelmente com uma perspectiva pós-construtivista e que ao longo de sua abordagem ele destaca a interação entre o discurso científico e a sociedade, entre outras coisas, sem hierarquizar nem reduzir um ao outro, como o faz a modernidade.

“Compreender as contribuições da TAR aos estudos de consumo exige assim, em primeiro lugar, diferenciar formas de conceber a relação entre sujeitos e objetos dentro do campo de comportamento do consumidor, a partir das perspectivas da fenomenologia e da cultura material.” […] Para a TAR, as coisas são mais do que ferramentas, pano de fundo ou palco em que atores sociais humanos desempenham os papéis principais. Em seus ensaios sobre antropologia simétrica, Latour[9] propõe uma perspectiva que advoga o mesmo status e atenção para os atores humanos e não humanos. Os objetos têm agência, o que significa “estar associado de tal modo  que fazem outros atores fazerem coisas”.[10] O humano não é vítima do processo, mas não se pode afirmar que seja um protagonista autônomo em ação. A TAR também pressupõe o rompimento com as dualidades sujeito-objeto. Para Latour, por exemplo, um homem (sujeito) com uma arma (objeto) não é um sujeito com um objeto, mas um novo híbrido, uma nova entidade “homem-arma”.[11]

Latour e a Construção de Nichos

Embora Latour não faça em sua obra uma aproximação com a teoria da construção de nichos nitidamente, observa-se que existe uma possibilidade de aproximação. Por um lado, apesar de carregar em si o termo moderno, e que possivelmente isso não é por acaso, a Teoria Moderna da Evolução, e com ela a construção de nichos, traz uma perspectiva que descentraliza ainda mais os processos evolutivos. Ela deixa de considerar que um organismo seja agente priorizado sobre outro; em vez disso, o meio ambiente, os objetos e os seres participam do processo evolutivo numa interação que modifica o percurso evolutivo à medida que essas modificações interferem e podem transformar os organismos e as coisas. De outro lado temos, como vimos acima, a TAR propondo semelhante olhar sobre a produção do conhecimento. Nela, o rompimento das caixas conceituais que tentariam resguardar cada conjunto de pessoas e objetos, relegando cada qual ao seu campo interpretativo e purificado é o ponto central da análise.

Nesse sentido, essa relação pode ser vista de pelo menos duas maneiras. Em uma perspectiva associativa, uma vez que a teoria da construção de nicho oferece um exemplo de como a ciência se desenvolve na prática, o que a alinha os princípios da TAR. Nota-se isso no modo como cientistas estudam essa teoria e constroem suas evidências, estabelecendo parcerias, enfrentando controvérsias e criando redes de interação com outros participantes, sejam eles humanos, não-humanos ou objetos e conceitos. É verdade que a dicotomia natureza-cultura não foi de todo eliminada dessa teoria, no entanto, busca-se métodos e investigações que contemplam cada vez mais as diferentes formas de vida e os diferentes objetos que interagem na construção do mundo. Uma outra perspectiva é a complementar, na qual a teoria da construção de nicho desafia e amplia a noção de natureza proposta por Latour em suas obras, convidando-nos a [re]pensar como os organismos que moldam seus próprios nichos podem ser considerados coautores da “natureza”, compartilhando essa autoria com humanos e outras entidades não humanas. Ainda assim, cabe ressaltar que o termo “natureza” permeia essa associação ainda com convites a desafios epistemológicos, reiterando a marca dos modernos na produção conceitual que temos hoje, de modo que, apesar de não ser o exercício que proponho aqui, tentar banir o sentido de natureza como algo que está dado, que é fixo e que é precedente as todas os organismos.

Assim, essa tentativa apressada de associar Latour e a Teria de Construção de Nichos acontece para mostrar, também, que um mesmo diálogo, ou uma mesma possibilidade de diálogo acontecem em núcleos diferentes do modernismo. Essa feitoria se dá dentro de caixas que evitam se mesclar, que detém epistemologias e ontologias próprias, mas que num olhar desfeitor e híbrido mostra que a modernidade, embora se pretenda esquizoide em duas proposições, não acontecem no fazer-se e no devir do mundo.

*  *  *

Nesse sentido, e agora foi apresentada tal associação, o próximo percurso é inserir o racismo enquanto um exemplo que, fazendo diálogo entre Latour e a construção de nicho, elenco a hipótese de que a modernidade inventou a raça justamente porque seu funcionamento se dá também na classificação. Mas antes, lançando mão de termos de Gabriel Tarde, pode-se pensar que a dinâmica moderna supõe-se operar por mônadas fechadas, que não prosseguem ao infinitesimal. É na separatividade que ocorre a construção de universos que se pretendem intocáveis, até incomunicáveis. Na construção moderna, uma caixa chama outra caixa; uma segregação convida à outra segregação. Nesse percurso, os encontros produtores do novo, as multiplicidades que se colidem gerando outras multiplicidades que se colidirão torna um evento plural e interconectado algo inconcebível. Assim,  dialogando com o fazer-se no, pelo e para o conjunto, Eduardo Vargas dirá que

“Para Tarde, o que existe no real são emergências produzidas pelos encontros fortuitos e inumeráveis de séries repetitivas, mas emergências que só são inteligíveis com relação a infinitas séries de relações ou encontros virtuais: “nascidos de um encontro, que nos fez diferentes de todo o resto do Universo, vamos nos esbarrando e nos alterando até a morte; e tudo isso é justamente chamado fortuito, pois os seres que assim se cruzam não se buscavam, mas nem por isso seu cruzamento foi menos necessário e fatal” […]. Nem determinismo, nem voluntarismo, em Tarde não há Providência, apenas imanência”.[12]

Portanto, retomando para prosseguir, hipotetizo que o racismo é a expressão da modernidade; ele é o encontro entre a teoria e a prática constitutiva do pensamento moderno. Talvez soe como uma afirmação categórica, mas muito provavelmente a modernidade não sobreviveria sem o racismo; da mesma maneira que não há racismo sem que haja um pensamento moderno.

A Construção de Nichos & o Racismo

Num primeiro momento, a associação entre racismo e construção de nichos diz respeito justamente ao fato do próprio racismo ser em si um produtor de nichos, e ser produzido nessa própria produção. Esse operativo social que distribui corpos geograficamente de acordo com a cor da pele é um modificador da paisagem, da política, do discurso e da ciência. A instituição do racismo a partir de teorias modernas sobre a raça, embora não recebam hoje nenhum respaldo científico, já foi bastante difundido em espaços supostamente científicos. Uma vez esse “saber científico” racializando os corpos, esses corpos sofrem em si a própria materialidade das categorias a eles atribuídas. É na separação entre o humano e o não-humano que também se insere a raça. Com o humano de fato de um lado e o ser racializado de outro, sustenta-se, a partir da dicotomia também moderna entre razão e emoção, os pólos que separam o humano do animal, os seres dos objetos. Assim, razão é posta como um atributo moderno, que constrói o “nós”  e o “outros”, sendo a razão tido por helênica, enquanto a emoção é atribuída ao negro – posto como selvagem, animalizado.[13]

Constrói-se nichos que nem sempre são da ordem do material, mas do simbólico, amparado no saber da biologia para que, a partir dela, sejam argumentadas as falsas noções de que se deve separar grupos com bases em atributos criados por um modo de pensar que é moderno. O racismo também pode ser visto como uma forma de construir identidades[14] e diferenças baseadas em características biológicas, conceituais, culturais ou sociais,  que são usadas de modo falsificado e perverso para tentar justificar a dominação ou a exclusão de alguns grupos sobre outros.[15] É a partir de uma separação que institui um Ocidente e o posiciona com o diferencial de todo o planeta que “os outros” surgem em contraponto, como aqueles faltantes, incompletos, diferentes numa perspectiva exótica – exótica ao olhar ocidentalizado. Essa abordagem é posta, por exemplo, nos estudos de Stephen Jay Gould em seu livro “A falsa medida do homem”, que criticou o uso da biologia para legitimar o racismo e defendeu a pluralidade e a complexidade da natureza humana.

“A biologia nos ensina que os grupos chamados de raças não são unidades discretas, mas sim variações contínuas e graduais ao longo de gradientes geográficos. A biologia também nos ensina que a diversidade genética dentro de qualquer grupo humano é tão grande quanto entre os grupos. Portanto, a biologia nega qualquer base racional para o racismo”.[16] “A falsa ciência do racismo tem sido um dos principais sustentáculos da opressão e da violência ao longo da história. A falsa ciência do racismo foi inventada para justificar a escravidão e o imperialismo; ela foi usada para apoiar o genocídio e a segregação; ela continua a influenciar as políticas de imigração e de educação”.[17]

Nessa perspectiva, sobre a qual a colonização branca europeia (e posteriormente também a estadunidense) se espalha e se constrói, está o sistema de produção que tem o capitalismo como modelo que se utiliza de corpos des-humanizados para a exploração do meio ambiente. Ao escravizar seres humanos, colocando-os para trabalhar e gerando bens de consumo para um nicho específico, o meio ambiente também é explorado; espécies não-humanas, igualmente posicionadas do lado de lá da humanidade de fato,são igualmente submetidas à exploração e à violação de seu direito à vida. A colonização tem impactos profundos, denunciados a cada curva da história. A natureza, posta como para além do humano é por ele submetida a esgotamentos; ao invadir territórios ela – a colonização – também os demarca, cria fronteiras, desfaz florestas, constrói vias de escoamentos do recursos explorados, polui rios, abre buracos na camada de ozônio. Tudo porque a partir de um ideal moderno o mundo é julgado pelos seus critérios, pela sua ciência e pelos seus valores.

Se considerarmos as dinâmicas capitalistas enquanto transformadoras do espaço geográfico, por exemplo nas Américas, notamos que é a partir da exploração de mão de obra que os diversos usos tecnológicos também são implementados em processos que variam desde as mais antigas técnicas de plantation feitas por pessoas negras escravizadas até a robotização desse tipo de trabalho; monoculturas se estender por hectares e hectares. O garimpo em áreas onde vivem indígenas e ribeirinhas; o histórico de migração e imigração, que mobiliza massas e mais massas de humanos ao redor dos continentes; a agropecuária que explora animais para alimentar um enorme mercado de importação; pescas massivas; extração mineral; entre muitas outras práticas são algumas das ações que acontecem a partir da separação entre quem explora e quem é explorado. O mundo não é dividido somente nessas duas categorias, no entanto, o que acontece nesse meio parece ser não-dito pelo modernismo.

Mireille Fanon Mendès-France, filha do intelectual e ativista Franz Fanon, que é professora da Universidade Paris Descartes, destaca em sua obra que o capitalismo se forja na escravidão, o que impede uma separação na análise da luta de classes dos movimentos antirracistas.

“A base do colonialismo continua e se expressa na forma como os países africanos estão sendo invadidos por transnacionais e também pela indústria canadense de mineração extrativista. Isso também se expressa na forma, por exemplo, que a União Europeia obriga os países africanos a assumir o comando da questão da migração, pedindo que eles levem a política europeia para seus países africanos, como no Mali, Níger e na Líbia também. Dá para ver quantas bases [militares] estão no continente africano. No nosso cotidiano, é visível na forma como o Estado lida com a questão das pessoas descendentes de africanos. É possível ver isso na forma como tratam a questão da educação, da moradia… Ou se você olhar o número de pessoas, nos Estados Unidos, que estão presas – em sua maioria, são negras. E não é uma forma nova de colonialismo. É uma forma fundamental de colonialismo.”[18]

Quando a desigualdade se produz por uma construção do conceito de raça, e impera em uma sociedade por séculos, é impossível não considerar esse fator no momento de pensar como os nichos ecológicos são alterados, em como as identidades são forjadas e em como o conhecimento científico é produzido e disputado. Quiçá, não ser moderno seja não operar na chave do racismo; nesse sentido, será que um dia o ideal moderno deixará de imperar?

Teoria Ator-Rede & o Racismo

A partir das ideias de Latour, o racismo e sua aparelhagem pode ser pensado como uma rede de atores humanos e não-humanos, a qual se articula na produção do conhecimento científico, político, social e discursivo em torno da raça. O racismo pode ser encarado como uma controvérsia que envolve uma vastidão de atores, como cientistas, políticos, jornalistas, educadores, entre outros, que disputam, cada qual em suas epistemologias e com seus métodos a classificação da raça – seja para reiretá-la, seja para refutá-la. Além dessas, nota-se a disputa em torno de implicações morais, legais e práticas dessa definição. Ou seja, uma rede extensa, ramificada e complexa compõe o racismo enquanto um dispositivo.[19] Ora no âmbito da ciência, ora na sociedade, ora no discurso: essa é a maneira que o racismo circula na modernidade purificadora das categorias.

No entanto, se interpretado a partir da TAR é possível inferir que as dimensões do racismo não acontecem “modernamente” em separado. Em vez disso, todas as suas instâncias estão articuladas, e entre os pólos humano universal  e não-humano (bem como não-humanizados) existe uma diversidade de identidades, de corpos e de existência. Seriam esses os híbridos latourianos? Para que o racismo seja eficiente, ele precisa elencar o ser humano como categoria superior, subjugando tudo que não pertença a esse grupo purificado. Ou seja, racismo também caminha junto com especismo. Ao operar pela chave do “nós” e os “outros” o pensamento moderno potencializa a demarcação de grupos, produzindo instâncias nas quais existe o direito à vida, de um lado, e o direito à morte, de outro. Dito em outras palavras, os modernos, a partir de uma necropolítica que se estende de humanos a não-humanos sanciona um sistema que define por seus signos e códigos quais são os corpos, os territórios e as espécies que podem viver e quais podem morrer e serem mortas pelos merecedores da vida.[20] O especismo[21], tal qual o racismo, evidencia a assimetria que Latour destaca, uma vez que o direito à vida, os cuidados e a proteção não são medidas por mesmas medidas nem pesadas por mesmos pesos; a maneira como a ciência estuda o tratamento de doenças para proteger animais tidos como Pets (ex. cães, gatos, algumas espécies de aves e peixes, etc) não é a mesma que ela estuda os animais destinados ao consumo alimentar; embora alguns métodos sejam similares, o objetivo e os critérios de cuidado são diferentes; as mesmas políticas válidas para algumas espécies são inexistentes para outras; os discursos que promovem vida e bem-estar de um grupo não é tomado por simétrico para outros.

Uma maneira outra de abordar essa questão é pensar no racismo como um desafio ético e político para a teoria da construção de nicho e a TAR.[22] Nesse sentido, o racismo pode ser visto como uma forma de violação dos direitos humanos e da dignidade dos grupos racializados, que sofrem discriminação, violência e opressão por parte dos grupos hegemônicos. O racismo também pode ser visto como uma forma de negação da agência e da diversidade dos atores não-humanos que compõem os nichos e as redes dos grupos humanos, como os animais, as plantas, os objetos, etc., que são explorados, degradados ou extintos pelos processos coloniais, capitalistas e industriais. Dito de outro modo, embora o racismo seja um dispositivo que incide sobre corpos humanos, ele não afeta apenas estes. A existência do racismo afeta todo o ecossistema, afeta humanos, não-humanos e objetos outros.

Considerações finais

Por se tratar de um ensaio curto, muitos pontos foram deixados de lado para priorizar um tema mais central, que é o racismo como expressão do pensamento moderno. Aspectos que dialogam com as diferenças entre povos em períodos antecedentes à modernidade; as transformações sociais sobre o aumento criação animais não-humanos para consumo; a uberização do trabalho e o colonialismo digital;[23] os impactos da pandemia da Covid19 sobre populações marginalizadas (sobretudo a população negra)[24] como indicativo da interação entre organismos vivos, humanos e não-humanos e todo um sistema de produção de conhecimento e de segregação; entre outros, foram pouquíssimo aprofundados aqui. Todavia, foi feita uma tentativa de aproximação entre a Teoria de Construção de Nichos com a Teoria Autor-Rede, no intuito de mostrar que a separatividade, a segregação e a purificação do conhecimento podem ser questionadas. Da mesma maneira, o racismo foi elencado para ilustrar como, em oposição às teorias em questão, ele atua justamente como expressão do pensamento moderno, o qual se estabelece, entre outras formas, a partir de dicotomias. Embora nem todos os textos do programa da disciplina foram utilizados diretamente aqui, diferentes áreas do conhecimento, diferentes textos, para além dos trabalhados em sala de aula, foram mobilizados para ampliar o olhar sobre esse tema.

* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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[1] Darwin & Wallace, 1858.

[2] Aqui, sempre que os termos aparecerem grafados como Moderno e modernidade será para destacar o sentido epistemológico também utilizado por Bruno Latour.

[3] Ver: Prado & Medrado, 2022. “Os processos de Outrização da branquitude e suas violências simbólicas – Um Ensaio-Manifesto”. Disponível em: <https://devaneiosfilosoficos.com/2022/10/29/os- processos-de-outrizacao-da-branquitude-e-suas-violencias-simbolicas-um-ensaio-manifesto/>. Acesso: 14 jul de 2023.

[4] Odling-Smee et al., 2003; 2013; 2019.

[5] Para uma compreesão dinâmica, ver: https://nicheconstruction.com/#:~:text=Niche%20construction% 20is%20the%20process,their%20environments%20through%20natural%20selection.

[6] Odling-Smee et al., 2003; Laland & O’Brien, 2012; Laland, 2015; Laland et al., 2017;

[7] Para uma visão mais aprofundada, ver: Darwin, 1839; 1859; Darwin & Wallace, 1958; Wallace, 1876. Para uma discussão mais recente, ver:

[8] Latour, 2019, pg. 81.

[9] Diz respeito ao mesmo livro citado em “Latour, 2019”.

[10] Latour, 2012; p.158

[11] Braga & Suarez, 2018; p.219.

[12] Vargas, 2007; p.26-27.

[13] Faustino, 2013

[14] Lima, 2020.

[15] Fanon, 2005.

[16] Gould, 1996; p.127.

[17] Gould, 1981; p.24

[18] “Se queremos mudar o mundo, deve ser a partir da luta antirracista, diz Mireille Fanon”. Disponível: <https://www.brasildefato.com.br/2018/11/22/se-queremos-mudar-o-mundo-deve-ser-a-partir-da-luta-antiracista-diz-mireille-fanon/&gt;. Acesso 14 jul de 2023.

[19] Carneiro, 2023.

[20] Mbembe, 2018a; Mbembe, 2018b; Agamben, 2015.

[21] Singer, 2000.

[22] Malvezzi & Nascimento, 2020.

[23] Faustino & Lippold, 2022.

[24] Santos, et al., 2020; Garcia et al., 2021;

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