Monique Rodrigues do Prado[1]
Andreone Teles Medrado[2]
PARTE I
Um epílogo por antecipação
A narrativa é viva e ela está em disputa, sobretudo, por conta do tensionamento gerado em torno do não-dito, o qual muitas vezes aparece pelo viés do simbólico, da semiótica, da estética e das práticas discursivas. É nesse cenário fértil que aquilo que não é falado ganha expressão e que as nossas mentes pensantes e os corpos marcados pela racialização são levados a cristalizar a violência como o único lugar possível de existência: tome aqui 80 tiros, mais um dos nossos tombou, Marielle é brutalmente assassinada, pessoas trans tem as suas expectativas de vida na média de 35 anos.
O lugar do não-poder-existir e do não-agir é como uma prateleira branca, na qual nos colocam, expondo-se diariamente o espetáculo da raça e do gênero dissidente; é nessa prateleira que se apresentam vivências marcadas, onde assentam-se os desejos coloniais jamais saciáveis. Quando a branquitude escolhe narrar o sujeito racializado pelas suas múltiplas violências sofridas, recorrem àquela prateleira. Essa é uma estratégia para demarcar o seu espaço de poder sobre o outro, o outro que somos nós – corporeidades não-brancas, não-cis, não-hétero, não-padrão, não-rica, não-europeia e não-estadunidense; agem sequestrando o nosso imaginário histórico e o representando somente como pertencente às desgraças e às violências claramente forjadas por essa branquitude.
Querem nos tornar o não-ser. Esse sequestro da nossa imaginação serve para retirar a subjetividade das pessoas não-brancas como se fossem “não-seres” a fim de marginalizá-las e subordiná-las na mera condição de outro; um outro a ser evitado. Isso é a outrização; ela é a dinâmica, o discurso, a ação empreendida pela branquitude para apartar-se simbólica e materialmente do resto da sociedade e construir um modelo de universalidade que, ao mesmo tempo que se pretende homogeneizadora se faz segregadora; cria-se o outro como tudo que difere de seu feitio, tudo que não pode gozar dos mesmos privilégios; tudo que pretendem desumanizar. A outrização, portanto, é um dispositivo de manutenção dos desejos dessa branquitude em manter vigoroso o seu status quo enquanto empurra para a marginalidade quem não se parece com ela. “Narciso acha feio o que não é espelho”[3]. Ora, o conforto vem em não precisar se marcar enquanto branco já que usam como artimanhas as ferramentas da neutralidade e da pretensa universalidade. Nessa esteira, quando tangenciamos questões estruturais tais quais gênero e classe, sequer se marcam enquanto pessoa branca para explicar esses fenômenos, visto que o não-dito é branco; isto é, ele retroalimenta a brancura que se centraliza em si mesma sem precisar enunciar-se como agente.
A título de exemplo, mesmo no sul global, nas discussões políticas e acadêmicas, para ficarmos apenas em alguns setores, a classe trabalhadora é destituída de raça e etnia, gênero e orientação sexual, como se a moldura do sistemas de classes fosse dar conta da complexidade desses atravessamentos. Ou seja, a branquitude ilustra as mazelas do capitalismo como se a classe trabalhadora fosse homogênea e que ao cessar essa marca econômico-financeira-mortífera, automaticamente, corporeidades não-brancas, não-cis, não-hétero e não-padrão, usufruiriam de suas subjetividades de maneira plena, o que não é bem verdade, uma vez que desconsiderar a interseccionalidade é perpetuar os privilégios.
Portanto, o não-dito, ou seja, não tangenciar as questões que arrisque o seu privilégio, é a malemolência da branquitude justamente porque simula a sua passividade para não colocar em xeque as estruturas e instituições que organizam os seus benefícios sócio-político-econômicos. Nesse sentido, precisamos nos ater que a violência simbólica e, muitas vezes, silenciosa, realizada pela branquitude, marca o trânsito dos corpos racializados e outras dissidências. Dito em outras palavras, marca onde e para quais posições sociais eles, os outros – os sujeitos outrizados – serão alocados. De outra sorte, a branquitude aniquila essas existências e esses saberes; ou como vai dizer Sueli Carneiro[4] é epistemicida em relação à pluriversalidade dos saberes e formas de produção de conhecimento de pessoas não brancas, consolidando-se como pioneira, desbravadora e salvadora para manter o seu pacto narcísico. Isso ocorre inclusive com os pretensos “aliados” que promovem alianças com pessoas dissidentes, mas que através do não-dito, seja por meio de imagens ou não mencionando as suas produções intelectuais, perpetua essas violências meramente por escolher retratá-las como subalternas, desprovidas de saberes e/ou enquadrando-as nas inúmeras formas estereotipadas, o que resulta na prática da outrização.
* * *
É assim que abrimos este ensaio que se veste de manifesto (ou vice-versa), com informações que apresentam o nosso desconforto e a nossa indignação; resumindo sem pretender resumir, mas pontuando – ainda que não com a merecidas agulhas quentes – as feridas abertas causadas pela branquitude, as quais ela insiste em sustentar. O cinismo branco é fundamentado pelo pacto em que todos que detém privilégios claramente se protegem, tiram vantagens e se acobertam.
Assim, para não cairmos no golpe da branquitude e não incorrermos em práticas que imitem os opressores, quebraremos o espelho branco. Por isso, cabe destacar que esse ensaio-manifesto não pretende falar por todas as vozes, como o faz a branquitude ao colocar todas as outras subjetividades como outros. Em vez disso, nos levantamos para pontuar as diferenças nessas existências que estão vivas pensando, produzindo, lutando, existindo, resistindo, ocupando e retomando, mas respeitando as particularidades dessas subjetividades sem querer falar por todas elas.
Logo, não comeremos do pão da pretensão universalizante; não cometeremos outrização, tampouco seremos oportunistas que mencionam a diversidade para compor uma cota epistêmica. Trazemos a memória, a História e as pluralidades, mas o que marca o recorte aqui nessa longa fala é a vivência negra. Ainda que iniciemos a caminhada discursiva aqui da perspectiva de UMA mulher cis hétero e de UMA pessoa não binária, não duvidamos de que a nossa fala ecoa em outras corporeidades negras que transcende outras dimensões as quais ultrapassam o nosso singular viver e que se consubstancia e ecoa na existência de outras pessoas negras. E, se vale o adendo final, essa escrita trabalha a perspectiva do epistemicídio – da invisibilização do saber de pessoas negras -, da violência material e simbólica que a branquitude exerce histórica e cotidianamente na produção do saber. E o mais importante: o racismo da academia não é só da academia, ele é herdeiro de todo o racismo estrutural. Criticar um é criticar os outros. O não-dito revela a estrutura, e o não-dito é branco em toda e em qualquer parte.
PARTE II
Um desejo pelo indesejável – naturalizando a omissão
“[…] não é descabido dizer que para eliminar um conhecimento nem sempre é necessário reduzir o valor ou eliminar outro conhecimento de modo ativo; pode-se hegemonizar um conhecimento a partir do momento que somente ele é falado, considerado, legitimado e propagado. Dito em outras palavras, o não-falar, o não-fazer, o não-reconhecer e o não-expor são maneiras, entre outras, que produzem um epistemicídio: a invisibilização é em si uma maneira de assassinato do logus não-normatizado e não-normalizado, e ela é amplamente aplicada.”[5]
A astúcia da branquitude em espaços acadêmicos é o espelho narcísico de seus comportamentos e praticadas fora dos muros da universidade. Não é que ela seja mais intensa nem em um sítio nem em outro, são em certo modo específicas em rua reprodutibilidade. O que muda entre estes e entre aquele ambiente não é a branquice da prática, mas as estratégias, as ferramentas, as tecnologias. Os dispositivos, ou seja, o conjunto de tecnologia, ferramentas e estratégias, somado aos códigos funcionais produzem o discurso de universalidade do sujeito branco ao passo que desumaniza quem não pertence a esse modelo.
Se o olhar crítico se distancia do objeto, assumindo uma visão menos micro e mais macro, vemos as veias abertas, com a branquitude sugando e explorando o sangue – que não é o sangue branco. Usando brancos contra brancos, um provérbio romano diz que “de longe vê-se o alto”; então, ao se afastar vemos mais contornos dessa branquitude, que tenta por diferentes dispositivos clarear o sistema social.
Esse clareamento, historicamente observado e experimentado na prática do ser, tem dinâmicas múltiplas: quiçá a mais utilizada é a da morte – que se dá de no mínimo duas maneiras: simbólica e/ou materialmente. Na morte material, elimina-se vidas, mata-se pessoas não-brancas. Então, caso esse processo falhe, ou não seja satisfatório o bastante, entram os detentores da linguagem verbal e escrita, que matam por invisibilização tudo que não seja branco, europeu e/ou estadunidense. Ao assassinato de saberes, sejam aqueles inscritos na linguagem ou nos hábitos, chama-se epistemicídio; quando associados ao extermínio do corpo material, a isso chama-se genocídio.
Nesse sentido, podemos falar que o espírito salvacionista branco, muito mais material que espiritual, não aceita que toquemos em seu ego – que, claramente, é branco. A branquitude não suporta o peso colossal de sua frustração ao perceber que pessoas não brancas e que corpas dissidentes também produzem tecnologias, saberes, intelectualidade e conhecimentos fora do espectro branco e eurocêntrico-estadunidense. Quando apontamos o racismo na omissão de autoria não-branca não aceitam a crítica!
Por se pretender a grande condutora da narrativa da humanidade – perpetuando o privilégio do saber -, a branquitude não suporta o peso do imenso ressentimento que ela tem de carregar quando se descobre (e quando é descoberta) em seus vacilos. Não dura muito até que suas performances de declarações de apoio e de aliança sejam expressamente suspensas, novamente, pelo sentimento que a supremacia branca produz em seus sujeitos. Novamente, apesar de toda uma estrutura historicamente reforçada para sustentar o racismo estrutural, essas alianças são frágeis, pois não podemos sequer ameaçar/denunciar o pacto narcísico da branquitude. Uma vez o fazendo, imediatamente a branquitude promove o distrato, ou seja, quebra-se o contrato de desconstrução e respeito e suspende-se a aliança. Criam-se muros grossos[6], erguem-se fortalezas e armam seus exércitos, pois sua fragilidade precisa ser protegida no interior de suas torres de marfim.
“[…] docentes que dedicaram suas horas e seus dias inteiros à aquisição de saberes muito específicos se convencem de que, em vez do sol no centro do sistema solar, o que está ali é o seu berço epistemológico; ou seja, acreditam que podem até existir outras maneiras de se pensar o mundo, e até ousam mencioná-las quiçá na tentativa de se mostrarem como se tivessem de fato uma mentalidade mais aberta. Mas na hora em que lhes questionam firmemente, no momento em que alguém arrisca contrariar suas falas, retomam o seu Logocentrismo (seu logus como centro de tudo), com o qual se armaram durante todo o tempo.”[7]
Existem ferramentas que podem quebrar o efeito logocêntrico da branquitude, e são as palavras de pessoas negras, amarelas, indígenas, travestis, periféricas, com deficiências, entre outras. Palavras essas postas a seguir como um esboço de manifesto. Se a branquitude não quer perceber o tamanho do preconceito e das violências que elas geram e que alimentam diariamente, se não querem escutar as vozes do conhecimento não-hegemônico e se querem fingir a ignorância disfarçada de salvação, pois que tentem. E, embora não seja o nosso dever ser escola, aqui, num gesto de incômodo, há coisas que precisam ser pontuadas, agora sim, como agulhas quentes na ferida branca chamada racismo. Se essa ferida não dói na pele branca, então que agulhemos sua carne, seus ossos e seus privilégios.
PARTE III
I. Não faltam recursos, falta vontade
Rejeitamos a desculpa de que faltam estudos de pessoas negras sobre os diferentes temas trabalhados na Academia. O que falta é a vontade [branca] de buscá-los. O confortável trono colonialista produz um sentimento de acomodação branca, que sempre delega ao outro o dever de produzir e falar de si, ou que seja de servir de objeto de estudo meramente objetificado em sua existência. Enquanto isso, o saber branco é produzido, distribuído, destacado e legitimado a cada novo texto, filme, novela, desenho, arte e expressão de ‘humanidade’. Sim que temos conteúdos sobre os mais variados temas, e um exemplo pode ser quando se pretende falar de sexualidade e de gênero na Academia brasileira. Fala-se com referência sempre eurocentrada e estadunidense. Essas pessoas falantes são brancas e herdeiras do colonialismo que querem manter o pacto narcísico intacto, sobretudo, validando somente a sua forma de produção de sexualidade como se outras maneiras fossem selvagens, ilegítimas ou de quinta categoria. Querem entender a história da sexualidade e do gênero francesa, britânica e estadunidense e ignoram direta e/ou indiretamente os saberes africanos e latino-americados; a Améfrica Ladina existe, e Lélia Gonzalez não nos poupou dessa noção[8]. Por isso, iniciamos essa terceira parte dizendo que é urgente que se dê atenção às produções não-brancas; não uma atenção utilitarista e oportunista, mas uma atenção com respeito, com compromisso e com sinceridade. Pessoas negras estão produzindo materiais há décadas, e esses materiais não precisam ser vistos pelas lentes da brancura para que sejam validados, não é validação que exigimos. Exigimos que se honre as produções não-hegemônicas, entre elas a negra, para que o conhecimento não siga enviesado e distorcido, amassado e recortado para caber numa forma enferrujada chamada branquitude.
II. Nossas histórias não podem mais ser apagadas
Desde a invasão que inoculou a colonização no continente chamado de “Novo Mundo” e desde todo o processo muito bem documentado de expropriação e de exploração, a história do então Brasil tem-se construído sobre o apagamento de povos originários e da população africana sequestrada de África e escravizada aqui e nas Américas. O apagamento[9] marca essa cultura colonial, funda uma economia, estrutura a educação e formula as leis. Muitos contextos dizem desse apagamento, que a partir do século XIX recebe o nome de racismo. Dar um nome não significa que o corpo passou a existir naquela hora, a fecundação e a gestação se iniciaram bem antes. É contra esse pilar do racismo estrutural que lutamos quando dizemos que nossa história não pode ser apagada. O discurso de que “Não tenho domínio para falar dessa autoria negra” só evidencia o racismo subjacente à escolha. Uma escolha racista é aquela que só deseja o que produz a aceitação da hegemonia; e a hegemonia opta por apagar a história (ainda que pela objetificação metodológica) que ela não tenha produzido. Representações negras devem ser trazidas para a cena principal; vozes negras devem ser ouvidas; histórias negras devem ser contadas – e que sejam contadas também por pessoas negras, não pela exclusividade colonialista branca como se a produção negra coubesse em um parágrafo ou pior, em uma nota de rodapé. O branquismo precisa se enxergar, se localizar e se posicionar em seu epistemicídio cotidiano; precisa ser posto em choque; precisa beber de sua própria água, quiçá assim saibam o veneno que nela contém. Apagar a história negra é um ato colonial; lutar contra isso é um ato revolucionário.
III. A mudança de comportamento não precisa esperar por outro ciclo
A branquitude – e as pessoas que dela participam em seus privilégios – deve ser posta para trabalhar na reparação da história colonial e de suas marcas e sementes germinantes presentes até hoje. Nenhuma ideia será eficiente nesse contexto se ela não produzir uma mudança de comportamento que aponte para o antirracismo, para a redução de violência e para a desconstrução do castelo branco. Não se pode esperar que a futura geração passe a estudar os temas que deveriam ser inseridos nos estudos imediatamente. Se o poder está centralizado nas mãos brancas de pessoas acadêmicas, então é nisso que devemos focar: estas são as mãos que devem também movimentar a roda, quebrar o pacto e o não-dito, responsabilizando-se pelas desigualdades que o racismo produz dentro e fora da Academia. É covarde e é violento dizer que a próxima geração (e no caso as gerações negras/racializadas) devem dar conta do problema que a branquitude instaurou. Por que esperar pelo próximo ciclo se a alteração foi pontuada no presente e se existe material suficiente e adequado para a substituição? Precisa haver mudanças, e nem toda mudança é espontânea. Reconhecer o problema, e apenas isso, não o torna resolvido. A mudança do comportamento deve ser posta como uma medida estratégica e prática na luta antirracista, esperar pelo outro ciclo, pelas outras pessoas e por outros tempos é racismo.
IV. O antirracismo precisa ser real, para além de uma medalha
O antirracismo precisa estar no campo da materialidade, na práxis, no fazer, e não somente pendurado como uma medalha ou um selo. O lugar de cala também é um lugar, mas a branquitude utiliza-se desse não-dito muitas vezes para ser negligente com as suas próprias práticas. Querem o selo antirracista ao dizerem “eu sei dos meus privilégios” e até dizem pretendem ouvir o que estamos dizendo, mas quantas são as autorias não-brancas que essas pessoas brancas estão lendo para constituir o seu pensamento antirracista? Quantas vozes ancestrais de pessoas mais velhas e de outras etnias e raça elas estão ouvindo? Ou estão apenas ecoando a herança branco-colonial que carregam?
V. O pacto narcísico da intelectualidade branca é violento
Dentro do conceito de Pacto Narcísico Branco[10], nota-se correntemente que a superproteção de um determinado grupo de teóricos priorizados em suas produções não passa de um um acordo de proteção mútua. Nesse pacto, a branquitude concorda em referenciar somente a si mesma; rejeitando (ainda que de modo sutil) o que não reflete sua brancura. Essa rejeição é violenta a partir do momento em que há um mundo imaginado e pretendido como universal, e ele é branco, euro-estadunidense. Referenciar o comportamento humano, os estudos acadêmico-científicos, o desejo e a subjetividade humana a partir do branco é uma agressão que não ofende à brancura. Pelo contrário, ela é mantida e alimentada pelo racismo em suas diferentes combinações justamente por assegurar os seus privilégios.
Há também outro ponto de cruzamento relevante entre a legitimação do discurso e o medo de ver sua posição de poder por descumprimento do pacto. A nossa hipótese é de que pessoas brancas temem (ou receiam?) perder seu espaço de destaque, de aceitação e de legitimidade caso não usem trabalhos canonizados pelo que dizem ser o “conhecimento verdadeiro”. É como se o ato de mencionar pessoas não-brancas fosse sinônimo de manchar de cores impróprias as vestes Reais da branquitude; envergonham-se de produzir (ou, em muitos casos, repetir e reproduzir) conteúdos que não estejam amparados no branquismo intelectual. Em geral, trabalhos que não citam referências canonizadas são tidos como incompletos, senão não-verdadeiros; logo, são produções sem embasamento e sem o devido valor.
Nessa lógica, mesmo que você nunca tenha lido uma dessas referências euro-estadunidense você precisa ao menos dizer que já ouviu falar delas, do contrário será tomada como uma pessoa desinformada. E aqui, novamente, o pacto narcísico é acionado, pois toda uma rede de manutenção epistemológica age sustentando o saber branco enquanto o saber desejado e o único necessário. Mesmo quando quando mencionam os conhecimentos de pessoas negras o pacto ainda está em ação, pois o fazem do mesmo lugar: os mencionam para também assegurarem seus lugares no banquete do salvacionismo piedoso, quando isso lhes é conveniente.
Existem, sim, pessoas brancas aliadas que de fato se engajam na luta antirracista, mas evidentemente não é para essa minoria importante, porém quase inexistente, que direcionamos o nosso manifesto. Falamos para aquelas pessoas que não utilizam o seu lugar de fala para se levantar contra a perpetuação dos privilégios.
Assim, exigimos que a branquitude se olhe no grande espelho da opressão e se enxerguem ali. Romper o pacto narcísico racista é uma urgência num país chamado Brasil que está localizado no sul global e é americano, como diria Lélia Gonzalez para que o racismo seja minado até chegar a sua inanição. A união de forças é o movimento que rejeita esse pacto, que luta verdadeiramente contra o sistema opressor. É esta a nossa exigência: que o pacto seja rejeitado sistematicamente, em todos os recônditos da sociedade o tanto quanto for necessário e possível; que na academia as pessoas brancas tomem seus lugares efetivos na luta antirracista e se posicionem no lugar de estar na luta, mesmo que isso lhes retire os berços explêndidos.
Privilégios geralmente são postos à prova quando o ato de lutar por uma causa produz desconforto e/ou perdas e a pessoa, podendo escolher, escolhe não se movimentar permanecendo do lado de quem oprime. Ora, fazendo isso é claro que assegura a sua herança colonial. O poder-escolher não falar sobre outras subjetividades, não se movimentar, não lutar, não revisar a história racial do Brasil e nas Américas, só é possível porque há um pacto narcísico estrutural que sustenta a branquitude. Essa estrutura precisa vir abaixo e ser demolida.
VI. Não somos somente episódios de dores e violências à serviço da satisfação branca
Recusamos a marcação branca em nossos corpos somente em episódios de dores e violências, pois esse é um lugar confortável de outrização cuja branquitude está habituada a praticar há séculos com os nossos corpos, para ilustrar-se como subjetividade sã e universal, de maneira a empurrar pessoas não brancas às mazelas classistas e racistas, as quais na verdade são heranças econômico-histórica do colonialismo branco-ocidental. Pessoas racializadas não são única e exclusivamente as imagens violentas que a branquitude de maneira sórdida cristaliza no nosso imaginário coletivo. Pelo contrário, são as mentes pensantes que detinham os saberes sobre a agricultura, a arquitetura, as travessias, as multiplicidades de línguas e performances de gênero, só para ficarmos em alguns exemplos. Rompemos as correntes que a branquitude insiste em fixar em nossos pulsos seja pelo encarceramento em massa, seja pela morte física advinda do projeto genocida do Estado gerido pela branquitude. Quebramos os estereótipos patriarcais, de classe, de gênero e de raça que atravessam as múltiplas formas de existir das pessoas não brancas. Preferimos nos filiar a práticas pluriversais decoloniais, anticoloniais e quem sabe futuristas de pensar o nosso trânsito no mundo. Recusamos os estereótipos odiosos cujo audiovisual solidificou sob pessoas racializadas e que agora corre atrás para saquear o nosso poder de consumo. Exigimos que a Academia se retrate, olhando primeiramente para a sua branquitude para enxergar-se como parte da sociedade, pois quando escolhe marcar as pessoas dissidentes e racializadas como ameaçadoras, assume a sua própria estrutura racista, já que enquanto foi ela quem a produtora do sistema de raças pseudo-científico-darwinista.
VII. Não somos cotas intelectuais
Embora não tenhamos o dever de ocupar todos os lugares que a branquitude nos nega, não aceitamos mais que usem de nossas histórias, de nossas corporeidades, de nossos saberes e de tudo que não é branco como se usassem de uma cota. Há uma cota, ou seja, uma marcação limítrofe até onde e quando se pode falar de pessoas negras? Evidentemente não deveria haver, mas o discurso revela a sua presença. Nessa dinâmica do Cotismo, pessoas negras nunca assumem o protagonismo de um saber original e legítimo, mas entram em cena como um “Olha como somos gentis, até citamos pessoas negras”. Não! Não aceitamos essa posição. Queremos ser pessoas pontuadas e referenciadas da mesma maneira que pessoas brancas são consideradas no campo do saber. Não somos cotas intelectuais, somos parte significativa da construção do que hoje se chama de Brasil e de História. E exigimos esse reconhecimento; exigimos estar dentro e não sermos vistos como objetos estudados de fora. Desejamos estar ali costurando essas produções. Além disso, no país onde há 56% de pessoas autodeclaradas negras, deveriam vê-las como produtoras de saberes acadêmicos e parte dos programas com as suas literaturas, primeiro para que a academia espelhasse a sociedade localizada no sul global, na América Latina e majoritariamente negra; segundo para que o pensamento produzido por essas pessoas não-brancas não fosse homogeneizado como um bloco, como se pessoas negras não experimentassem, produzissem e criassem de forma diferente, pois na atual conjuntura ao trazer produções negras ignora-se que pessoas negras têm pensamentos pluriversais, assim como as escolas anglo-europeias.
VIII. Vidas negras importam!
Dentro do discurso branco, vidas negras realmente importam? Quando pessoas brancas dizem que “vidas negras importam”, isso geralmente surge em contextos em que pessoas negras morrem brutalmente ou sofrem violências severas. Logo, estão dizendo que “Mortes Negras Importam”. Se vidas negras importam, cadê o antirracismo cotidiano? Queremos que a vida, enquanto algo que pulsa, que produz, que realiza, que vive, seja posta com o seu valor e com o seu direito de existir. Vidas negras importam para além da espetacularização e do engajamento que se alcança quando estratégica e utilitariamente falam dela nos espaços embranquecidos.
IX. A Educação é a maior aliada do racismo
“Pensando em recortes contemporâneos, o racismo se estrutura em aspectos supervalorizados socialmente, como a “educação”. Dizem com força e com certeza que a educação é a libertação da “humanidade”. Ainda, citam fervorosamente a fala atribuída ao europeu Emmanuel Kant, o qual diz que “o homem é o que a educação faz dele”. Porém, fico me perguntando se essas frases são tão compreendidas quanto são veneradas. E suspeito de que, se sim, isso só confirma o sistema racial tão reforçado como é o nosso; e, se não, atua como uma demonstração da silenciosa maquinaria racial que reproduz falas e ações reforçadoras das políticas genocidas. Seja como for, deve-se pensar em quem é esse “homem” que merece ser educado, que merece ser humano, que merece viver. Sabemos!
Sistema Educacional é construído sob uma perspectiva branca, sobretudo no que diz respeito ao conteúdo presente no Currículo Base. No mesmo sentido, a História é contada a partir do olhar branco e eurocêntrico/estadunidense; a geografia, por sua vez, marca os estereótipos das regiões do Globo que, junto com a geopolítica, dizem onde reside a miséria e a pobreza, o luxo e o poder, a submissão e a repressão, os senhores e os escravos. Para muito além disso, todas as demais ciências ensinadas são assinadas por, novamente, homens, héteros, cis, burgueses e europeus/estadunidense.
Aliado a tudo isso, numa junção inseparável, estão as artes, a música, a mídia e muito mais – tudo delimitando e expandindo os espaços onde esses conhecimentos são produzidos.
Enquanto isso, o Brasil segue sendo tido como “descoberto”, em vez de invadido, explorado e devastado. Os povos originários são chamados de “índios”: só mais uma maneira de homogeneizar quem não é branco e europeu/estadunidense. Como dito anteriormente, os negros entram na História de uma maneira brutal. E suas existências são resumidas não às suas vozes plurais, mas ao sofrimento: para a Educação, ser negro é ser pobre, sofredor, miserável e mendicante – jamais gente pensante. E a Educação segue com vigor: passo a passo de sua estratégia silenciosa: contar uma história; e sabemos sob qual ponto de vista.”[11].
As bases da educação precisam ser abaladas, refeitas, transformadas. De outra sorte, se elas se mantêm nas mesmas dinâmicas, o sistema racial se fortalece em seus dispositivos.
X. O movimento intelectual precisa ser antirracista, anticis-heteronormativo e transformista
Esse ensaio-manifesto é destinado a homens brancos (e também à toda pessoa branca) e, dentro destes grupos, às pessoas cisgêneras, heterossexuais, de classe média/alta, de corpos “padrões”. Pessoas que em seus contextos detêm privilégios simbólicos e econômicos e que, mesmo pelo não-dito, ou seja, querendo ou não, atuam reforçando um o sistema de assimétricas e destrutivas relações de poder. O privilégio pode não ser uma escolha, entretanto, o poder-dizer e o poder-fazer contra o racismo, é. Essas pessoas devem saber que essas hegemonias, cada qual à sua medida, produzem historicamente violências e exclusões; mas que precisam mudar, e para que isso ocorra é necessário ter agir de modo transformativo. Reformar o sistema de desigualdades não eliminará o problema, criará um novo. Um Cistema feito para binarizar o gênero e a sexualidade e feito para segregar brancos e não-brancos, pautado na outrização, nunca será um sistema adaptável para grupos marginalizados. O que é construído para ser branco-cis-hétero-masculino não será capaz de ser readeaquado para outros modos de existência. O que deve ser feito é uma transformação: um novo lugar, uma nova maneira, um novo espaço, um novo fazer. E esse cenário presente, para se transformar, precisa abandonar suas organizações originais, precisa se reconstruir na pluralidade; nos pensamentos pluriversais sem interdições e julgamentos canônicos; na diferença que não exclui; no [des]fazer dos saberes para não engessar a multiplicidade. E essa é a mensagem mais importante que esse ensaio-manifesto traz. Outrizar corpos é ir contra essa transformação, é legitimar o status atual das coisas; é prosseguir materializando as discrepâncias e os abismos teóricos, é sustentar violências materiais e simbólicas. E isso não aceitamos.
* * *
Num ato de honestidade, dizemos que não pretendemos fechar esse ensaio-manifesto nessas e por essas palavras. Pelo contrário, trazemos aqui os nossos engasgos e acúmulos de dor e sofrimento causados pela branquitude em nossas experiências. Escrito por duas pessoas negras, esse texto se pretende como, um eco das falas, uma continuidade nas falas que foram e que estão sendo produzidas por outras pessoas negras. Fazendo uso de um trecho do poema de Conceição Evaristo, dizemos “a nossa voz ainda ecoa versos perplexos”[12]. Queremos continuar os debates, trazendo elementos que possam contribuir de alguma maneira para as nossas lutas históricas, mas não menos cotidianas. Cada palavra, cada frase, cada parágrafo, tudo junto ou separado em suas partículas poderá se ramificar em novas questões e definições, pois não nos pretendemos imutáveis como um núcleo duro que não aceita revisar-se. Cada sugestão, hipótese e afirmação cumpre aqui o papel não de determinantes, mas de agulha, agulhas nas peles brancas, de incômodos necessários para romper a inércia prescrita no racismo, o não-dizer, a passividade que propaga o acordo silencioso da branquitude. Você que nos leu até aqui pode compartilhar esse texto e produzir novas reflexões; assim como você pode usar desse texto para transformar suas ações e participar da criação de um posicionamento de inadequação, de desobediência, de transgressão, para se levantar contra práticas de outrização de maneira a alocar o racismo ao lugar que ele pertence: de um problema complexo que serve como uma estratégia de ascensão da branquitude do qual nos recusamos fazer parte.
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Monique Rodrigues do Prado
Andreone Teles Medrado
29 de outubro de 2022
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NOTAS & REFERÊNCIAS
[1] Fellow das Nações Unidas do programa OHCHR – Programme for People of African Descent. Pesquisadora de Humanidades no Núcleo Diversitas – USP.
[2] Doutorande; Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, Brasil e Secretárie Geral no Núcleo de Consciência Negra na USP. Acompanhe nas redes: https://linktr.ee/AndreoneMedrado
[3] Liebig, Sueli Meira. 2017. Narciso acha feio o que não é espelho. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-criticos/145-sueli-meira-liebig-narciso-acha-feio-o-que-nao-e-espelho
[4] CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Consciência em debate/coordenadora Vera Lúcia Benedito. São Paulo: Selo Negro, 201, P. 84-87.
[5] Medrado, Andreone Teles. 2020. Academicismo Frágil. Disponível em: https://devaneiosfilosoficos.com/2020/10/14/academicismo-fragil/
[6] Medrado, Andreone Teles. 2019. Há um “muro” que nos separa de entender o diferente. Disponível em: https://devaneiosfilosoficos.com/2019/01/13/ha-um-muro-que-nos-separa-de-entender-o-diferente/
[7] Ver nota 5.
[8] GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
[9] Ver o item “Apagamento Referencial” em: Medrado, Andreone Teles. 2021. A Psicologia da “PALMITAGEM”: O Racismo, As Relações Interraciais & A Descolonização dos Afetos. Disponível em: https://devaneiosfilosoficos.com/2022/02/06/a-psicologia-da-palmitagem-o-racismo-as-relacoes-interraciais-a-descolonizacao-dos-afetos/
[10] Bento, Maria Aparecida Silva. 2002. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001310352
[11] Medrado, Andreone Teles. 2021. TUBO DE ENSAIO – A América Latina, o Colonialismo e a Indeterminação dos Sujeitos. Disponível em: https://devaneiosfilosoficos.com/2021/10/28/tubo-de-ensaio-a-america-latina-o-colonialismo-e-a-indeterminacao-dos-sujeitos/
[12] Evaristo, Conceição. Vozes-Mulheres. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/literafro/autoras/24-textos-das-autoras/923-conceicao-evaristo-vozes-mulheres [adaptado].