A história avança. Tal como quando alguém que possui uma enorme capa está caminhando sobre um chão de terra, revolvendo as pedras ao mesmo tempo que as revela quando a capa passa, tal é a história, que ao se mover também revolve e revela seus componentes outrora não percebidos ou nomeados com outros termos. Ao se fazer, a história também se modifica; nunca pode ser a mesma coisa aquilo que tem em si a constante união de novas partículas. O que chega renomeia e ressignifica o que o era. A chamada América Latina é esse espaço no qual novas realidades se materializam na construção de algo que, outrora sendo existente à sua maneira, numa determinada curva da história se revelaria usurpada, modificada, experimentada. Transformada como uma solução experimental num tubo de ensaio cujas mãos que o agitam eram [e predominantemente se pretendem ser] brancas. Até hoje essa solução está reagindo.
* * *
A história do que hoje chamamos de América Latina não começa com europeus sedentos por riquezas e ávidos por exploração. Todo um contexto de existência e de trato com a vida já estava em efervescência, já exalava os aromas da diversidade que em seus modos plurais diziam sobre o que é a vida, sobre o que é ser e estar num território validado e digno de existência. No entanto, ao se utilizar as métricas oriundas da Europa, os povos originários que aqui estavam não eram (e ainda não são em sua totalidade) considerados capazes de possuir sofisticação, uma vez que seu modo de vida destoava e muito do modelo vigente do aclamado “berço do conhecimento”, conforme equivocadamente afirma a branquitude.
Para cada traço arqueológico, por exemplo, que encontravam aqui, traçava-se um comparativo e logo buscava-se desmentir suas qualidades e direcioná-las ao norte ocidental do globo terrestre. “Considerava-se que os nativos do Brasil eram muito primitivos, e que seus ancestrais seriam incapazes de elaborar as belas cerâmicas e esculturas de pedra encontradas em vários sítios. Dessa forma, muitos atribuíram as cerâmicas Marajoara a povos fenícios ou gregos – que teriam desembarcado aqui na Antiguidade –, e as esculturas dos sambaquis a uma influência das culturas andinas”[1].
Novamente, a história da América Latina não se resume à chegada de colonizadores, que atentam contra a vida que aqui estava. Em vez disso, ela se transforma ainda mais. Ao se perceber a fertilidade da terra, como expressa na carta de Pero Vaz de Caminha, que diz que “em se plantando tudo dá”, os exploradores notaram que uma nova dinâmica faria mais produtiva a exploração; foi quando perceberam o lucro que traria a escravização compulsória de pessoas do continente africano. Trazidos para a Terra de Vera Cruz contra sua vontade, num processo desumanizador e sangrento, eis que novas partículas de existências foram adicionadas.
Essa é a colonização nessa porção de terra continental entre Pacífico e o Atlântico. Nesse tubo de ensaio misturou-se as etnias, as dores, as experiências, os sangues, as religiosidades, os hábitos e as estratégias, as angústias e os desenraizamentos. Num caldo inicialmente heterogêneo se misturam catalisadores: colonização em seu mais alto grau de desenvolvimento. Dessa mistura exalava o cheiro de supremacia branca que subjugava todos os Homo sapiens que não pertenciam ao crivo europeu – classificava-se em merecedores e desmerecedores, bons e ruins, anjos e demônios; ninguém seria deixado de lado na hora da marcação colonial. A História do Ocidente[2] não esconde certas coisas de quem nela presta atenção; e existe um comportamento fundante e recorrente nessa narrativa: se alguém ameaça a hegemonia do conhecimento, da lei e da religião, chame-o de rebelde, louco e de contaminante – e expulse-o do paraíso.
Existem diferentes mecanismos historicamente utilizados para dizer se determinada prática é boa ou ruim, aceitável ou inaceitável, moral ou imoral. Como se vê logo no parágrafo anterior, a própria binaridade/dicotomia é em si uma estratégia de segregação; classificar coisas em polos, oposições e conflitos geralmente são a base de um sistema que se pretende dominante.
Contornando e delimitando cada uma das diretrizes que fundam a nossa sociedade ocidentalizada está a necessidade de reforçar um traço talvez pertencente a todos os grupos humanos: a criação do “Nós” e do “Eles”. Esse reforço ocorre quando, para além da existência do “Nós” e “Eles” essa divisão se pretende cada vez mais concreta, com uma distinção social, mas também física e subjetiva, que se fortalece a cada discurso e comportamento.
Entre as estratégias mais usuais nos modelos de separação de grupos, está aquela que classifica como exemplar e como pura uma determinada característica (gênero, etnia, orientação sexual, classe social), logo superiores; enquanto outras são consideradas condenatórias, sujas, contaminantes e, portanto, inferiores.
O israelense Yuval Noah Harari, em seu livro “Sapiens – uma breve história da humanidade”[3], nos lembra que “no decorrer da história, e em praticamente todas as sociedades, conceitos de contaminação e pureza tiveram um papel fundamental na imposição de divisões políticas e sociais e foram explorados por muitas classes dominantes a fim de estas manterem seus privilégios. No entanto, o medo da contaminação não foi totalmente inventado por sacerdotes e príncipes. Provavelmente tem suas origens em mecanismos de sobrevivência que fazem os humanos sentirem uma repulsa instintiva por portadores de doenças em potencial, como pessoas enfermas e cadáveres. Se você quiser manter qualquer grupo humano isolado – mulheres, judeus, ciganos, gays, negros –, a melhor forma é convencer todos de que essas pessoas são fonte de contaminação”.
Ramón Grosfoguel relembra com precisão os quatro epistemicídios que marcaram o século XVI, e que podem ser inseridos como catalisadores do que se entende por ocidentalização. O autor faz isso ao evidenciar e apontar os mecanismos envolvidos no genocídio/epistemicídio contra muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus, contra povos nativos na conquista das Américas, contra povos africanos na conquista da África e a escravização dos mesmos nas Américas e, finalmente, contra as mulheres europeias queimadas vivas acusadas de bruxaria[4]. Tais episódios sombrios na história ocidental foram a base, junto a todo um reforçamento dessas práticas, daquilo que percebemos hoje na América Latina: busca-se pela construção de uma identidade que não sabe ao certo como ela é.
Nesse movimento, pensadores e pensadoras tentam resgatar o processo de emancipação de um povo que foi destituído de suas origens – sejam origens distantes, como os povos africanos, sejam de origens locais, como os povos indígenas. Mas nessa análise teórica traça-se também o panorama sobre o qual se instaura o processo de colonização. Quijano dirá que
[…] a estrutura colonial de poder produziu as discriminações sociais que posteriormente foram codificadas como “raciais”, “étnicas”, “antropológicas” ou “nacionais”, segundo os momentos, os agentes e as populações implicadas. Essas construções intersubjetivas, produto da dominação colonial por parte dos europeus, foram inclusive assumidas como categorias (de pretensão “científica” e “objetiva”) de significação a-histórica, isto é, como fenômenos naturais e não da história do poder.
[…] Mais tarde, os ensinaram de modo parcial e seletivo, para cooptar alguns dominados em algumas instâncias do poder dos dominadores. Então a cultura europeia se converteu, além do mais, em uma sedução; dava acesso ao poder. Depois de tudo, mais além da repressão, o instrumento principal de todo poder é sua sedução. A europeização cultural se converteu em uma aspiração. (Quijano, 1992)[5].
O sujeito Latino Americano é um sujeito ainda indeterminado, ou, na melhor das hipóteses, um sujeito supostamente determinado. O grande e complexo povo Latino Americano busca dentro de uma epistemologia plural construir-se a partir das partículas que lhes foram adicionadas historicamente. A história desse povo é incapaz de ser entendida se não for mirada pelas lentes que identificam no racismo uma das grandes estruturas que sustentam o colonialismo. Dizer que são sujeitos indeterminados jamais será sinônimo de dizer que são sujeitos que não se pode determinar cada um pelo mesmo motivo. São diferentes níveis de indeterminações que produzem esses corpos subjetivados. Se por um lado suas subjetividades não são universais – o que de fato não me parece -, por outro lado é inegável que o colonialismo pretende universalizar corpos dentro de um modo subjetivo de existência: a existência branca.
* * *
Como destaca a pensadora Lélia Gonzalez, “a afirmação de que todos são iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latinoamericano é suficiente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento”[6].
Pensando em recortes contemporâneos, o racismo se estrutura em aspectos supervalorizados socialmente, como a “educação”. Dizem com força e com certeza que a educação é a libertação da “humanidade”. Ainda, citam fervorosamente a fala do europeu Emmanuel Kant, o qual diz que “o homem é o que a educação faz dele”. Porém, fico me perguntando se essas frases são tão compreendidas quanto são veneradas. E suspeito de que, se sim, isso só confirma o sistema racial tão reforçado como é o nosso; e, se não, atua como uma demonstração da silenciosa maquinaria racial que reproduz falas e ações reforçadoras das políticas genocidas. Seja como for, deve-se pensar em quem é esse “homem” que merece ser educado, que merece ser humano, que merece viver. Sabemos!
O Sistema Educacional é construído sob uma perspectiva branca, sobretudo no que diz respeito ao conteúdo presente no Currículo Base. No mesmo sentido, a História é contada a partir do olhar branco e eurocêntrico/estadunidense; a geografia, por sua vez, marca os estereótipos das regiões do Globo que, junto com a geopolítica, dizem onde reside a miséria e a pobreza, o luxo e o poder, a submissão e a repressão, os senhores e os escravos. Para muito além disso, todas as demais ciências ensinadas são assinadas por, novamente, homens, héteros, cis, burgueses e europeus/estadunidense.
Aliado a tudo isso, numa junção inseparável, estão as artes, a música, a mídia e muito mais – tudo delimitando e expandindo os espaços onde esses conhecimentos são produzidos.
Enquanto isso, o Brasil segue sendo tido como “descoberto”, em vez de invadido, explorado e devastado. Os povos originários são chamados de “índios”: só mais uma maneira de homogeneizar quem não é… branco e europeu/estadunidense. Como dito anteriormente, os negros entram na História de uma maneira brutal. E suas existências são resumidas não às suas vozes plurais, mas ao sofrimento: para a Educação, ser negro é ser pobre, sofredor, miserável e mendicante – jamais gente pensante. E a Educação segue com vigor: passo a passo de sua estratégia silenciosa: contar uma história; e sabemos sob qual ponto de vista.
Por isso, e num tom de finalização do texto, mas não do debate, o maior aliado do racismo é o Sistema Educacional como o temos hoje. Até porque, ser educado é ser dotado da cultura europeia, é aspirar o sonho estadunidense, é ser cristão – e ser crucificado no lugar do tal Cristo. Penso até que o único cristo negro crucificado é o povo negro que morre para que brancos tenham a vida eterna de privilégios. É a colonização indeterminando sujeitos, como num tubo de ensaio em que ao se misturar a solução não apresenta todas as suas fases.
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
[ . . . ]
Use o espaço dos comentários para compartilhar também a sua opinião por aqui! Você já segue o Blog Devaneios Filosóficos? Aproveite e faça essa boa ação, siga o Blog e receba uma notificação sempre que um novo texto for publicado. Conheça o meu canal no YouTube e o sigam-me no Instagram. #VocêJáParouParaPensar
NOTA: a imagem usada para compor a capa desse texto foi obtida aqui.
Referências
[1] André Prous. 2016. O Brasil antes dos Brasileiros – a pré-história do nosso país. Ed. Zahar, Rio de Janeiro.
[2] Entenda-se por Ocidente, nesse contexto, a Europa ocidental e os EUA.
[3] Yuval Noah Harari. Sapiens – uma breve história da humanidade. Ed. L&PM. 27ª edição. 2017. Pp. 428.
[4] Ramón Grosfoguel. 2011. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016. DOI: 10.1590/S0102-69922016000100003
[5] Aníbal Quijano. “Colonialidad y Modernidad-racionalidad“. In: BONILLO, Heraclio (comp.). Los conquistados. Bogotá: Tercer Mundo Ediciones; FLACSO, 1992, pp. 437-449. Tradução de Wanderson flor do nascimento.
[6] Lélia Gonzalez. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.