Ser uma pessoa LGBTIA+ não faz de você alguém não-heteronormativo; abrir o seu relacionamento não fará de você alguém menos monogâmico; namorar uma pessoa negra/indígena/amarela ou ter filhos negros/indígenas/amarelos não fará de você alguém antirracista; não necessariamente.
A primeira coisa a ser dita é que somos pessoas inseridas num tecido social que nos afeta o tempo todo. Cada afeto que nos toca pode também exercer sobre nós influências diversas. E ainda que não consigamos perceber o quanto disso interfere nas nossas vidas, o fato de sermos seres afetados e afetivos é o bastante para que hajam potenciais mudanças quando universos subjetivos se cruzam. Mudanças essas que ao longo do tempo criarão características em nós que comporão nossas subjetividades e, potencialmente, atuarão no nosso comportamento. E, na prática, o que transforma uma sociedade não é necessária ou exclusivamente o que está escrito ou o que se diz, mas o comportamento gerado a partir daquilo que está no discurso.
Ninguém saí por aí decretando guerra à alguma “Troia“, tampouco se vê discípulos que santificam a morte de Aquiles e Odisseu – essas palavras escritas nesses longos poemas não alteram o comportamento de seus leitores ao ponto de promoverem ações práticas que interfiram na dinâmica social – ao menos não atualmente. Por outro lado, um outro livro igualmente mitológico – escrito para retratar de modo lírico/fantástico a vivência de uma época – ganhou mais adesão sociocultural e, a partir de imposições e de colonizações, atuou diretamente no comportamento social ao ponto daquilo que era para ser apenas a Bíblia Sagrada se tornar um motivo pelo qual pessoas mataram e morreram, e seguem nesse movimento até hoje. “Ideia só mudam o mundo quando mudam o nosso comportamento”, já disse Yuval em seu livro Homo Deus.
É nesse sentido que percebemos o quanto do que se pratica na tessitura social tem implicações na conformação dessa própria sociedade. O tecido social, nessa metáfora, diz respeito a um espaço conceitual sobre o qual as vivências, as éticas, as leis, as crenças e outros conjuntos modeladores do comportamento humano se estruturam, se modificam e se movimentam. Assim, uma vez vivendo numa sociedade normativa que se estrutura a partir de um sistema que é simultaneamente lgbtqfóbico, cis-heteronormativo, estruturalmente racista, misógino e machista, patriarcalista e desigual em diversos outros pontos, estamos também sujeitos às suas dinâmicas. Tais dinâmicas estruturantes atuam diariamente na construção de perfis sociais que tenderão a manter a ordem vigente. E são, entre outras tecnologias, a normalização dos corpos e a normatização dos comportamentos que desenham o que chamamos de “normal” e que exerce sobre os corpos um controle que não precisa ser nitidamente perceptível para ser eficiente em sua ação. Muitas vezes, vale repeti-lo sem questioná-lo. Questionar uma norma vigente pode significar, em certos casos, a percepção de suas contradições.
Efeitos de se viver num Sistema Normativo
A maior característica de um Sistema Normativo é que ele fornece pouquíssimo acesso às suas bases de informação, ou se preferir, aos seus códigos de controle. Ainda que seja necessário criar uma constituição, ou um conjunto de leis que devam ser disponibilizados publicamente, tais documentos devem estar numa linguagem que limite o acesso da população geral, ou seja, da maior parte da população que se deseja controlar com essas próprias informações. Vende-se a ideia de liberdade a todo custo. No entanto, em um mundo habitado por humanos é impossível conferir liberdade a todos para que façam o que desejarem. Logo, esse paradoxo da liberdade desejada mas impossível é disfarçado a partir do momento que se diz que tudo é transparente, que as informações estão aí. Se preciso for, inventa-se uma entidade divina e se diz que essa entidade que decidiu como as coisas deverem acontecer.
E é dentro desse conjunto dinâmico de ditos e não ditos que os comportamentos são realizados quase que como numa ditadura dos corpos. É nesse tecido social que nascemos aos montes e que entramos em contato com tudo que nos cerca direta e indiretamente. Aprendemos que existe uma maneira correta de estar num relacionamento; diz-se, ainda, que devemos separar categoricamente as relações afetivas em grupos: família, amizades e romances – e para cada um desses somos doutrinados a desenvolver um tipo limitado de afeto/carinho/desejo. Como uma cola que cimenta essas ações e as torna em práticas fundidas, o controle monogâmico dos corpos institucionaliza essas divisões na forma do casamento. Pessoas se casam crentes de que foram elas quem decidiram espontaneamente por isso, mesmo que nunca tenham se perguntado ao menos “De onde veio essa ideia de casamento? Porque seguimos esses rituais de passagem chamado de namoro, noivado e casamento?”. São perguntas demais para um sistema que glorifica o casamento – independentemente de sua qualidade prática.
Da mesma forma, ser heterossexual nunca foi uma questão para os humanos ocidentalizados que se atraem exclusivamente por pessoas do sexo-gênero diferente dos seus; que num binarismo define os extremos únicos entre homem e mulher. Assim, não se questiona [do ponto de vista apenas de pares possíveis] caso um homem se sinta sexualmente atraído por uma mulher – ou vice-versa. No entanto, se essa normalidade é quebrada e se as normas sociais que instituíram essa normalidade forem contrariadas aí sim haverá um incômodo. Mudanças tendem a ameaçar qualquer que seja a noção estabilidade de um sistema. E se ameaça a hegemonia, seus corpos súditos atuarão no combate daqueles corpos disruptivos.
Nesse mesmo caminho, namorar pessoas amarelas não fará de você alguém que não antirracista e que se diz não fetichizar corpos amarelos; muitas vezes esse namoro é produto própria dessa sexualização desproporcional e desse fetiche com corpos que compôem o imaginários de fetiches sociais. É preciso muita cautela, muita sinceridade e bastante humildade conosco e com as demais pessoas para compreender o quanto dos nossos gostos nos afastam das normatividades impregnadas no tecido social e o quanto deles nos torna mais aderentes ao meio.
A mudança precisa ser efetiva, mas isso requer gasto de energia
Como numa linha de produção que lança para fora da esteira os objetos considerados defeituosos, num sistema social dinâmico, mas normativo e normalizador, os comportamentos que não se adequam ao esperado serão tratados como inadequados; e a partir de uma série de mecanismos violentos (visivelmente agressivos ou não) serão executadas ações que tentem eliminar os dissidentes. Desde uma “reparação” que descaracteriza sujeito em sua subjetividade a partir da negação de si mesmo (como quando sua identidade de gênero é negada, quando sua pela é chamada de morena para não chamá-la de negra, quando sua orientação sexual é invalidada, ou quando chamam de espíritos do mau tudo aquilo que vai contra as supostas leis divinas), até aquelas “reparações” que eliminam fisicamente um corpo que se comporte de maneira a não se encaixar nas exigências mínimas [do sistema social], várias medidas serão tomadas para manter a ordem social. O que impede o sucesso pleno desse sistema sãos as lutas de resistências, sempre presentes.
Dito isso, há que se pontuar algo importante. Quando um sujeito envolto no tecido social tenta se desvencilhar de alguns nós que o amarrara a certos espaços, quando alguém tenta romper com os comportamentos institucionalizados e quando um corpo inicia um processo de reivindicação de condições de vida que não estão previstas na ética praticada socialmente, há que se aplicar muita energia para isso. Movimentos e mais movimentos organizados que atuam nesse processo de ruptura das normatividades atuam contra um conjunto inteiro de imposições sociopolíticas. Logo, movimentar-se dessa maneira não costuma ser uma tarefa nem pacífica nem livre de gastos de energia. Quem está numa posição de privilégio social nunca entregará suas comodidades a um grupo que lhes mostre que sua maneira de ação é exploratória e historicamente violenta. O senhores jamais aceitarão que a senzala reivindique condições melhores de sobrevivência.
Por isso, repito a primeira frase desse texto: Ser uma pessoa LGBTIA+ não faz de você alguém não heteronormativo; abrir o seu relacionamento não fará de você alguém menos monogâmico; namorar uma pessoa negra/indígena/amarela ou ter filhos negros/indígenas/amarelos não fará de você alguém antirracista; não necessariamente.
Para que nossas palavras caminhem no mesmo sentido dos nossos comportamento algo óbvio deve acontecer: devemos nos comportar de acordo com o que falamos. Isso parece redundante, mas na prática não o é.
Quando digo que ser LGBTIA+ não faz de uma pessoa alguém menos heteronormativo, estou dizendo que as imposições socioculturais heteronormativas continuam a exercer pressão sobre os corpos e os modos de vida LGBTIA+. Ou seja, se considerarmos que “hétero-normativo” diz respeito a um conjunto de códigos que vão além da união de dois corpos de sexo-gênero diferentes, entenderemos melhor a questão. Um sistema “hétero” diz respeito, entre outras coisas, a construção de símbolos que atuam em par, mas ao par de categorias diferentes entre si, com papéis sociais diferenciados, cada um com sua atribuição. Ser heterossexual não é simplesmente sobre um homem se atrair por uma mulher, ou vice-versa. Até porque, se essa mulher ou esse homem não estiverem enquadrados no que se espera normalmente e normativamente de um ser “feminino/masculino” essa “dupla hétero” não será aceita. E estar enquadrado no sistema é estar dentro do que ele produz como simbologia, é falar a sua língua e performar os seus comportamentos.
E na heteronormatividade as diferenças precisam ser marcadas: o termo “hétero“, que do Latim significa “diferente” deve ser levado a sério. Toda a desigualdade de gênero, toda a diferença dos papéis de gênero socialmente construídas passam pela régua do machismo, obviamente, mas além disso estão intimamente relacionadas com o que a heteronormatividade produz e mantém. Logo, se uma pessoa da comunidade LGBTIA+ mantém os mesmos discursos separatistas e classificatórios vigentes na heteronormatividade, ela é, também, heteronormativa.
O mesmo se aplica a não-monogamia [está saindo um texto só sobre isso, e lá explicarei melhor]. Abrir um relacionamento não te torna uma pessoa menos monogâmica, a menos que essa abertura seja acompanhada do distanciamento das normas da monogamia. Pode muito bem haver uma abertura na relação, em que as pessoas envolvidas passem a se relacionar com outras, mas que nessa dinâmica ainda haja possessividade, controle afetivo, dominação de contatos, limitações das experiências vividas pelas partes envolvidas nas relações, etc. E todas essas coisas são construções fundamentais da monogamia.
Quanto a se dizer antirracista, preciso de outro texto para explicar mais detalhadamente, e o farei!
Dizer-se antirracista porque namora uma pessoa negra não carrega em si nenhum sentido prático, uma vez que existem muitas pessoas brancas que amam ser salvacionistas, e acreditam que ao namora uma pessoa negra a estarão ajudando e a tornando melhor para o mundo. O salvacionismo branco é uma das ferramentas mais utilizadas pelo colonialismo. E só o fato de se desejar salvar alguém já implica a ideia de que este alguém está numa posição social/emocional/etc inferior. Nem todos que dizer que querem o nosso bem, querem o nosso bem. Muitas pessoas querem apenas construir um mundo hegemônico, e para isso acreditam que devem salvar as almas perdidas. O cristianismo e suas perversidades históricas e atuais não escondem esse desejo profundo em converter para seu universo de normas, éticas e dominação o maior número possível de fiéis. Novamente, nesses casos, as práticas que deveriam ser antirracistas e anticoloniais não se descolam do racismo estrutural da sociedade. É mais uma nomeação da mesma coisa.
Por esses e por muitos outros motivos, devemos entender que dissidir de um grupo, ou seja, afastar-se e romper com suas normatividades e normalizações, vai muito além de se rotular de outro modo. Antes, e acima de tudo, dissidir é abrir mão de suas tipologias, de seus comportamentos e de suas construções mais fundamentais. Isso leva tempo, gasta energia e requer um trabalho de conscientização e de práticas que precisam acontecer diariamente. Um mundo criado séculos antes do nosso nascimento não deixará de existir só porque algumas pessoas se renomearam e subiram hashtags na internet. Para ideias agirem e transformarem o mundo elas precisam alterar nossos comportamentos, e certos comportamentos precisam ser alterados desde sua estruturas mais basais.
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: a imagem usada para compor a capa desse texto foi obtida aqui.
Para quem tem mais de 50 anos, já ouviu que “lutar contra o Sistema” é “lutar contra a maré”! Além de “definições” diferentes para a mesma “atividade”: “prostituta/garoto de programa”! Acabou a novela, escrita por homossexual (Império), em que a Bissexualidade foi tratada como “uma necessidade” em que o bissexual leva o amante para a sarjeta, depois que veio a tona, seu relacionamento homoafetivo, já que o personagem que era casado, era “provedor” do “amante”! Depois, o “marido” desce do “armário” e tem de volta o “amante” que conheceu a miséria, depois de ter sido deixado e conseguido emergir, graças a um novo relacionamento homoafetivo! Ou seja, um autor homossexual, “se curva”, ao “Sistema” e, criou um enredo com temática Bi X Homo, em que o “assumido” homossexual, é sustentado, depois humilhado pelo abandono do companheiro e, engole a mágoa ao voltar para o ex! Não podemos mudar o mundo, mas com certeza, a realidade em que possamos estar inseridos! Meados de 2018, o deputado Rodrigo Maia, disse uma frase, que pode parecer óbvia, mas é “profunda”: “O que será do político se não houver Assistencialismo”!
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