RESUMO: Historicamente, o Brasil alimenta um suposto ideal de miscigenação. E esse “ideal” não diz respeito a uma harmonia entre as diferentes “raças”/etnias que aqui coabitam – como talvez pressupõe quem acredita no mito da “Democracia Racial”. Como tentarei mostrar e, assim, dar abertura ao debate, muito diferente dessa harmonia, essa suposta miscigenação teria/tem um propósito de cunho violento, racista e epistêmico. Comentarei que seu propósito principal diz respeito a tornar branca uma sociedade inteira; eliminando, assim, características físicas e subjetivas indígenas, negras, e qualquer que não seja branca. E, entre as possíveis vias de atuação, foi também nas relações afetivas que o racismo construiu sua base operativa: diluir a cor da população. Daí advém o termo “palmitagem”, que é comumente definido como a relação afetivo-sexual entre uma pessoa negra e uma pessoa branca. Há controvérsias sobre se mulheres palmitam ou não; então, algumas definições dizem que a “palmitagem” acontece entre homens negros e pessoas brancas. Não penso assim, e dissertarei a esse respeito. Ademais, apontarei que é justamente no cruzamento das experiências sociais vividas historicamente que o tema da “palmitagem” se torna importante, porém incompleto em grande parte dos debates. Nesse caminho, trarei minha percepção de que em vez de buscarmos assimilar o discurso e o comportamento da branquitude colonizadora, poderíamos considerar a possibilidade de realmente descolonizar os afetos; mesmo isso não sendo lá muito simples. Metade desse texto é sobre uma contextualização social do racismo e de suas consequências na psicologia humana. A discussão sobre a ideia de “palmitagem” e sobre relações interraciais compõem a outra metade. Sugiro uma leitura completa, pois é fundamental compreender o contexto em que a “palmitagem” é abordada neste escrito.
Uma Breve Introdução Sócio-Histórica
O maior suicídio coletivo que alguns ramos de muito movimentos sociais [não-privilegiados] pode cometer é utilizar as ferramentas opressoras para organizações que são oprimidas. É como se com as próprias mãos esses ramos realizassem os desejos e os projetos mais fundamentais do colonizador. Também é quando os colonizados imitam – muitas vezes inconscientemente – seus colonizadores que se pode afirmar que o processo colonial está em seu clímax: sua implantação foi bem-sucedida. Apesar das contaminações ideológicas, como é o caso das teorias racistas, respingarem por toda parte, novos desafios são postos quando alternativas descolonizadoras precisam emergir nas lutas contra tecnologias socioculturais enquanto lutamos para poder ser gente negra num mundo branco e constantemente embranquecido. E nesse conjunto de técnicas segregadoras, excludentes e, portanto, violentas, as relações interraciais ocupam um lugar central – uma vez que ser humano é também se relacionar. Assim, num mundo globalizado, fluido e dinâmico em diversas de suas instâncias, salta aos olhos o fato de que as vertentes racistas têm tentáculos tão longos quanto invisíveis, e que escapar deles requer um olhar crítico e, sobretudo, mudança de comportamento.
* * *
Historicamente sabemos que um processo de colonização – seja ele qual for – pode ser caracterizado por mecanismos nem sempre evidentes no momento em que ocorre, e nem sempre acontecendo “à luz do dia”, mas permeado de simbologias e de estratégias que, quanto mais se propagam são também menos notados[1]. Esse mecanismo permite, entre outras coisas, que seu combate seja dificultado, que suas marcas sejam pouco percebidas em seus momentos históricos em que atuam e, como uma possível consequência, permite que objetivo colonial seja implementado na sociedade.
“Ao fazer abstração da natureza dos recursos, espaço e territórios, o desenvolvimento histórico da sociedade moderna e do capitalismo aparece como um processo interno, autogerado, da sociedade europeia, que posteriormente se expande para as regiões atrasadas. Nessa construção eurocêntrica desaparece do campo de visão o colonialismo como dimensão constitutiva destas experiências históricas” (Lander, 2006, p. 250)[2].
Entre os projetos coloniais mais “bem-sucedidos” não se pode deixar de incluir o seu filhote mais “robusto” e faminto: o racismo. O racismo que construiu o Brasil e que o sustenta diariamente é tão forte quanto é naturalizado – e essa relação é autocatalítica: um fortalece e acelera o outro à medida que é alimentado e encorajado. E apesar das denúncias e das movimentações de ativistas negres, não existe sequer a ideia fugidia de que o racismo tenha desaparecido ou que, mesmo que fosse na melhor das hipóteses, ele deixasse de ser considerado como algo natural. Pelo contrário, a atuação policial, o judiciário, as mídias sociais, as instituições de produção de conhecimento e o mercado de trabalho seguem cada dia de suas existências fomentando o racismo cada qual à sua maneira[3].
Os dados estatísticos não mostram que pessoas negras são violentas e selvagens, muito pelo contrário. Se olhada da perspectiva sócio-histórica o que se percebe é um tratamento diferente, e negativo, que essa população recebe. Por exemplo, de acordo com o Infopen, um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro desenvolvido pelo Ministério da Justiça[4], em 2018, Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Vale lembrar que 53,63% da população brasileira têm essa característica. Os brancos, inversamente, são 37,22% dos presos, enquanto são 45,48% na população em geral.
Em 2019, o IBGE publicou a pesquisa intitulada “Desigualdades sociais por cor e raça no Brasil”[5], na qual diferentes indicadores sociais, como educação, mercado de trabalho, distribuição de renda, moradia e violência, revelam maior vulnerabilidade social da população negra em relação à população branca. Por exemplo, em 2018 o salário médio mensal das pessoas brancas era de R$ 2.796,00, o da população negra não ultrapassava R$ 1.608,00[6]. Uma disparidade de 73,9%. Já em relação às mulheres negras a diferença era ainda mais expressiva, elas recebiam menos da metade (44%) do salário médio mensal dos homens brancos, independentemente do nível de escolaridade (IBGE, 2019). Trazendo esta discussão para o contexto presente, em 2021, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou que a população ocupada no mercado de trabalho brasileiro é de 91,6 milhões. Aproximadamente um terço dessa população recebe até um salário mínimo (PNAD – IBGE), 66% dessas pessoas se autodeclaram negras– ou seja, praticamente o dobro da população branca nas mesmas condições.
Seria absolutamente ingênuo, senão perverso, supor que não existe racismo no Brasil. De igual maneira, beiraria o absurdo considerar que vivemos uma Democracia Racial, na qual as diferentes “raças” convivem em harmonia, supondo ainda que essa existência seja democrática, conferindo acesso livre a todes, independentemente da cor de sua pele. Não são necessários anos de estudos em grandes universidades e uma leitura densa sobre raça e racismo para ser capaz de perceber que o racismo opera o maquinário que movimenta o crescimento do Brasil desde antes de sua fundação, como foi desde a invasão europeia em 1500. Nos dias atuais, o racismo, e com ele todos os benefícios que ele garante ao grupo privilegiado, continua atuando e produzindo efeitos na lei, na economia, na política, na educação e na religião[7]. Mas não somente isso!
Uma das maiores consequências do racismo se dá sobre o modo como as pessoas se relacionam entre si. O mecanismo racial, que predispõe o sujeito branco como um fator de universalidade, ou seja, como aquele que não apenas pode, mas deve, ser desejado e posto como parâmetro, constrói subjetividades que podem ou não ser afetadas. Um mecanismo social eficiente é aquele que altera o comportamento humano a tal ponto que toda a sociedade possa se movimentar na direção dos interesses do Estado ou do modelo Nacional de organização, e esses modelos são construídos histórico-culturalmente[8].
Quando um sistema de humanos passa a se comportar como sugere a lei, a economia, a política, a educação e a religião, por exemplo, tem-se aí um processo controlador em sua forma mais eficiente. A partir disso, esse sistema seguirá um modo de atuação que é (I) autocatalítico e (II) pautado em privilégios. É autocatalítico, pois, como dito antes, à medida que os mecanismos atuantes no sistema racial produzem o comportamento racializante, elencando suas técnicas de discriminação, preconceito e violência, ele também se volta para o modo como essas técnicas serão aperfeiçoadas. A técnica transforma a prática ao passo que a prática aprimora a técnica. E ele é pautado em privilégios, uma vez que com essa autocatalização do sistema de raças, e de modo intrínseco a ele, surge a constituição de grupos que ocupam diferentes pontos e diferentes nós nessa rede relacional. De um lado estão os indivíduos que possuem imunidade estética social, que têm suas identidades asseguradas por um dispositivo complexo que garante a estes o direito de existência sem que sequer se questionem a respeito, sem que a estética da pele, ou seja, a quantidade de melanina, seja transformada em alvo. Direito de existência tal que não pode ser retirado, não pode ser interrompido e não depende de sua tomada de consciência para existir: o direito de ser alguém branco num país que concretiza a existência branca como a norma, como a causa aceita e como o passaporte exigido para viver, ainda é um organizador social. Do outro lado da relação estão os seres subjugados, estranhamente chamados de “minoria social”, já que são a maioria, aqueles cuja subjetividade é questionada toda vez que se revelam socialmente como corpos tais como são. Ser negro e indígena no Brasil é ser interpelado pela sua existência, pelo seu modo de circular, de falar, e comer, de se vestir, de respirar – e um a um desse modos de ser são violentamente e combatidos. Somos pessoas imigrantes indesejadas na nossa própria terra.
A complexidade desse sistema se mostra quando a colonização entra nos espaços mais subjetivos dos indivíduos[9]. O racismo entra em ação no modo como os afetos são construídos, nas relações íntimas, nos desejos e nas performances sociais. São nas relações, sobretudo as de amor, que entram as grandes complexidades de um sistema humano – toda ação do Estado, da religião, da educação, da economia e do fazer social atravessam as relações afetivas amorosas.
“A construção social da raça e do racismo são os principais organizadores das desigualdades materiais e simbólicas vividas pelo povo brasileiro. Perpassam os modos de subjetivação e socialização dos sujeitos negros, brancos, mestiços/pardos e indígenas, nos mais variados espaços públicos e privados, estruturando as condições e possibilidades de trabalho, de estudo, de vínculo (incluindo o casamento e as relações amistosas), de liberdade, de lugar onde morar e a forma de morrer” (Vainer, Nunes e Costa, 2015)[10].
O Apagamento Referencial
O racismo no Brasil é estrutural; e ele atua em diferentes dimensões, em variados ambientes e sob inúmeras dinâmicas. Entre essas possibilidades racistas, há a crença de que o racismo atua promovendo o ódio entre a população negra e indígena de um lado, e a branca, de outro. Ou seja, é como pensar que o mecanismo principal do racismo é aquele que incita brancos contra não-brancos (há inclusive quem acredita que o racismo reverso existe, no qual pessoas negras e indígenas são racistas contra pessoas brancas)[11] [12] [13]. Além disso, pode-se pensar que ele é estimulado pela explícita inferiorização e humilhação de pessoas negras, por exemplo, num movimento que pretende colocar cada “raça” em seu lugar social. Embora não seja a principal ação, essa dinâmica não é ilusória; ela existe!
Mas surge outro aspecto, outra possível interpretação: e se a questão da superioridade branca em detrimento da população negra e indígena ocorrer não somente por oposição, mas também por um apagamento referencial? E se o fato de haver um estereótipo branco, um modelo de casamento branco, representações brancas e um “ideal de ego” social todo branco, como diria Neuza Santos[14], não necessariamente criasse uma oposição entre ser branco e ser negro, mas sim a anulação silenciosa e sistemática da imagem da pessoa negra enquanto um possível modo de existir em sociedade? Dito em outras palavras: em vez de haver “apenas” um antagonismo explícito entre brancos e negros (e também indígenas), o racismo também atua invisibilizando a possibilidade de uma vivência não-branca e, a partir dessa invisibilização, estimula e perpetra o comportamento que busca no “ser branco” a única forma existencial. Assim, apaga-se o referencial negro/indígena e coloca-se o branco como a única opção social de existência.
Todavia, não devemos generalizar esses apontamentos, pois corre-se o risco de que, ao fazermos isso, surja a ideia de que o racismo não é uma ação ativa, estrutural e estruturante, mas que acontece “naturalmente” ou ao acaso. Quando na verdade existe todo o complexo de privilégios que sustentam e mantém a desigualdade racial ao enaltecer determinados perfis sociais estereotipados e tipificados em detrimento de outros. Para além disso, esse conceito/raciocínio de apagamento referencial pode ser aplicado a diferentes contextos, como ao gênero, à orientação sexual, à religião, etc. Mas não esqueçamos que apagamento é sinônimo de exclusão, é um epistemicídio; e ambos fazem parte do projeto colonial que inclui o racismo nas tecnologias epistêmicas (ver Grosfoguel, 2011[15] e Zamora, 2011[16]).
Nas pegadas da Colonização
Digo, por ora, que essa contextualização serve para ressaltar que [do meu ponto de vista] o modo de atuação da Colonialidade – ou seja, da exploração e da desintegração subjetiva de um grupo em relação a outro – acontece obedecendo alguns princípios básicos listados a seguir [não necessariamente nesta ordem, e com certeza não restrito a eles]. Assim, seguindo-se a lógica colonial:
- invade-se o espaço existencial (físico e/ou simbólico) do indivíduo/grupo a ser colonizado;
- retira-se ora lenta e gradualmente, ora abruptamente, os signos que constituem suas maneiras de interpretar a vida ao redor;
- coloca-se forçosamente no lugar dos signos antigos pertencentes ao sujeito colonizado novas formas de interpretar suas vidas – formas essas trazidas pelo colonizador e tidas como as verdades atuantes e geralmente inquestionáveis;
- dilui-se a subjetividade do sujeito colonizado na subjetividade trazida pelos invasores, de modo a misturar as vivências e dissociar qualquer traço que possa parecer originário. Em contrapartida, tenta-se construir no lugar daqueles traços originários novos sentidos que criem a percepção de que a origem correta é, então, aquela trazida pela colonização;
- promove-se ou a privação parcial ou a privação quase que total de recursos básicos, como abrigo, alimentação, renda, conforto psicológico e conjunto de crenças e da cultura originária; isso porque, dentro dessa lógica, um grupo que tende à miséria é um grupo que pode aceitar as piores ofertas de seus opressores; tudo para não perecer de fome. A fome ressignifica até os valores e os motivos pelos quais se passará a viver e, inclusive, a direcionar sua vida. E esse processo não precisa ser consciente para que aconteça;
- se for preciso – e geralmente o é – cria-se um inimigo em comum; geralmente um inimigo que não pertença ao universo do agente colonizador. Tão mais eficiente será esse empreendimento quanto mais próximo do colonizado for esse inimigo: é quando indivíduos colonizados deixam de lutar contra quem os coloniza e passam a lutar entre si para defender a colônia exploratória que o Sistema Colonial inicia sua fortificação;
- não necessariamente após, mas também concomitantemente a outras variedades possíveis de etapas da colonização, ocorre a alteração na construção dos afetos entre os seres colonizados. É fundamental que o modo como eles se relacionam seja alterado e direcionado ao modo como deseja a estrutura colonial. Afetos construídos de modo saudável representam um núcleo simbólico de paz para os sujeitos; sujeitos com paz podem pensar, e sujeitos pensantes que exerçam a conscientização crítica dificilmente aceitarão a desapropriação de seu estado de vida. Por isso, coibir seus relacionamentos é uma maneira profundamente eficaz de condicionar corpos a modelos sociais desejados. E isso é ambiguamente complexo!
Assim, entrando no assunto central desse texto, cabe partir desse último ponto que traz ao debate o efeito da construção e manipulação dos afetos para entender o que comumente se chama de Palmitagem.
A “Palmitagem” – definições e contextualização do termo
Pensando nas possíveis compreensões do que é a palmitagem, pode-se dizer num modo mais centralizado de compreensão que palmitagem é a prática na qual uma pessoa negra se relaciona afetivo-sexualmente com uma pessoa branca. Entretanto, e de modo mais abrangente, palmitar também pode ser considerado como o ato de uma pessoa negra se relacionar afetivo-sexualmente com uma pessoa não-negra (desde que essa pessoa “não-negra” tenha passabilidade na sociedade branca, como pessoas judias, amarelas, etc) – mas aqui podem surgir discordâncias. Pense aí.
Apesar disso, dado o uso mais difundido do termo, e por considerar que as relações sociais entre pessoas brancas e pessoas negras são as mais potencial e praticamente imbricadas no processo de racialização no Brasil, ao longo do texto seguirei a definição mais centralizada [palmitagem é a prática na qual uma pessoa negra se relaciona romântico-sexualmente com uma pessoa branca]. Peço que não apaguemos da memória o genocídio indígena [e negro], proveniente de estupros massivos e constantes, e desses estupros o nascimento de pessoas miscigenadas; mas isso entra em outro contexto. Só não esqueçam esse detalhe. Outro ponto importante, e antes que ocorra erroneamente a intersecção sexo-gênero sobre as pessoas envolvidas na relação, ressalto que, por definição, homens palmitam, mulheres palmitam, pessoas não-binárias palmitam, e todas as pessoas negras que se relacionem afetivo-sexualmente com pessoas brancas podem, enfim, palmitar. Isso obviamente que não invisibiliza a questão real e histórica da solidão da mulher negra e das travestis negras, bem como não é um debate que busca invalidar qualquer que seja o nível hierárquico ocupado pelas diferentes etnias que se interrelacionam[17]. Aqui faço apenas uma definição inicial, a qual usarei para prosseguir essa conversa.
O adendo acima é importante porque, quando se fala de palmitagem, não raramente se intervém dizendo que mulheres não palmitam. Ora, suponho que, sim, mulheres podem se relacionar com pessoas brancas, portanto, podem palmitar. O que jamais deve ser negado nesse percurso crítico, reitero, é o impacto da palmitagem na vivência de mulheres negras, bem como o lugar social que elas ocupam quando se fala de relacionamentos amorosos, de afetos e de desejabilidade. Obviamente que eu não tenho o protagonismo para dissertar sobre essa temática que envolve diretamente a vivência da mulher; da mesma forma, não sou a pessoa mais recomendada para debater sobre o também inegável tema da solidão da mulher negra[18] [19] [20]. Com isso quero dizer que afirmar que mulheres palmitam não invisibiliza esses pontos necessários para discussão dos afetos entre pessoas negras; talvez esse reconhecimento sirva inclusive para lançar luz sobre essas temáticas. É histórica e socialmente desonesto dizer que os relacionamentos interraciais operam de modo igual – ou no mínimo semelhante – nos diferentes grupos sociais de pessoas negras (homens, mulheres, pessoas não-binárias, pessoas trans de modo geral e travestis em particular, por exemplo).
Apenas por curiosidade, e não que seja difícil pensar nisso, o termo “palmitagem” remete à cor do palmito, que é branco. Logo, também pode-se inferir que palmitar é como tender ao branco, clarear, embranquecer; e todos esses termos podem fazer referência ao embranquecimento tanto do ponto de vista histórico-social, como quando se ascende socialmente a partir de algum atributo branco (por exemplo, buscar por características simbólicas mais aceitas pela branquitude), como do ponto de vista social-biológico, que diz respeito ao embranquecimento das gerações a partir da miscigenação. Falarei de ambos ao longo do texto, mas pensando nesses conceitos, recomendo fortemente um vídeo no Youtube, chamado A REDENÇÃO DE CAM – Análise e Interpretação da Obra do Ponto de Vista Racial.
A “Palmitagem” como Aliada ao Racismo
“O Homem é movimento em direção ao mundo e ao seu semelhante. Movimento de agressividade que engendra a escravização ou a conquista; movimento de amor, de doação de si, ponto final daquilo que se convencionou chamar de orientação ética. Qualquer consciência é capaz de manifestar, simultânea ou alternativamente, essas duas componentes. Energeticamente, o ser amado me ajudará na manifestação da minha virilidade, enquanto que a preocupação em merecer a admiração ou o amor do outro tecerá, ao longo de minha visão de mundo, uma superestrutura valorativa”. (Frantz Fanon)[21]
Qual a cor do amor?
Dada a abordagem feita até agora, sobretudo se você assistiu ao vídeo que indiquei, podemos iniciar dizendo que o efeito mais direto daquilo que chamam de palmitagem é o embranquecimento dos corpos até o ponto em que eles sejam o mais claro possível; tão claros que não possam mais ser chamados de negros. Esse apagamento é multidimensional – olhá-lo somente pela ótica da proibição ou da retaliação é fazer uma leitura incompleta e tendenciosamente perigosa. O racismo opera apagando lenta ou gradualmente os corpos e as subjetividades. Seus mecanismos agem sobre o psicológico do sujeito, atuando na configuração dos significados de ser uma pessoa negra, atribuindo ao ser negro simbologias ruins e indesejáveis. Quando não se consegue isso imediatamente, ele atua sobre as gerações, removendo traços físicos não desejados por codificações brancas. E nas relações interraciais esses mecanismos de reconfiguração e de remoção dos tratos físicos encontram terra fértil. Entre as vias de atuação do racismo estrutural, podemos considerar a via da emoção, do afeto e do cuidado; quiçá chamemos de amor a soma desses sentimentos complexos, ao menos por didática.
Falar de amor é sempre algo ambivalente. Ao mesmo tempo que é um tema complexo e cujas definições não são tão nítidas, é também algo que em algum momento de suas vidas todas as pessoas já ouviram falar, e a maioria tem uma opinião a respeito. Mas aqui eu pergunto: sobre que amor estão falando? Quem pode amar esse amor? Qual a cor do amor socialmente difundido? Falar de amor é o mesmo que senti-lo? Falar de amor é o mesmo que poder senti-lo?
Parafraseando bell hooks em seu texto Vivendo de Amor[22], pessoas negras passaram tempo demais na tentativa de sobreviver ao ponto em que seus afetos foram construídos como segundo plano.
O amor romântico, esse mesmo pelo qual pessoas “vivem e morrem”; o amor que o ocidentalismo desenvolveu em suas narrativas épicas, aquele amor que deve ser mostrado, buscado, exposto, perseguido com a própria vida e desejado até à morte; o amor cristão[23], que serve de marcador de um significado mais intenso do que é ser humano; todos esses exemplos de amor, a quem são destinados? Que sujeito corporificado pode ser contemplado por esse jeito de amar? Novamente, como diz bell hooks ao longo de seu texto “Vivendo de Amor”, pessoas negras não têm essa permissividade social para amar. Seu amor é reprimido desde tempos de escravização, em que mostrar seus sentimentos era sinônimo de atentar contra a própria vida. O amor não-branco foi silenciado historicamente.
Até hoje esse silêncio ecoa nos corações negros; muitas pessoas negras não se sentem amadas, não se sentem desejadas e têm dificuldades de mostrar seu amor. O afeto ainda é mantido sob escolta do medo e de outros fatores sociais, como a dor, a insegurança e a pressão pelo [sobre]viver. Na tentativa de demonstrar esse amor reprimido, ressignificamos os nossos afetos em cuidados materiais. Muitas pessoas negras acreditam que prover exclusivamente cuidados materiais é sinônimo de amar; sabemos que, sim, tal ação faz parte do amar, no entanto sabemos também que não é só isso. Acontece que ao longo da vivência, nós, pessoas negras, fomos ensinadas a sobreviver, enquanto o amar foi deixado em segundo plano: ama-se caso dê tempo antes de morrer. E enquanto a morte não chega tenta-se [sobre]viver.
Nesse vai e vem dos afetos sociais, o amor que circula por aí é o amor branco, o amor permitido e aclamado; o amor que pressupõe vida. E pessoas brancas “querem nos amar” e “querem que lhes amemos” da mesma forma. Mas são linguagens diferentes. E se elas não forem compatíveis, ou compatibilizadas, esse amor nunca será real. Será indutivo, impositivo e autoritariamente hierarquizante.
Pessoas negras são, sim, capazes de amar e de viver a sensibilidade afetiva do outro ser; mas não é a partir desse amor branco socialmente codificado para representar ascensão e liberdade. Queremos espaço para poder ser quem somos sem aquele medo histórico de sermos punidos por isso. Queremos a segurança de que somos pessoas amadas e amantes, não objetos e divertimentos. E até entre pessoas racializadas o amor branco tem sido tomado por modelo. Um modelo falho, mas que tem se espalhado no solo fértil do racismo estruturante da nossa sociedade.
Aspectos Psicológicos da “Palmitagem”
Nesse sentido, a palmitagem enquanto mecanismo social atua justamente intensificando o desejo afetivo por tudo que é branco. Se a brancura soa como o modelo social dos gostos e afetos, ela soa também como uma escolha bem-feita – mesmo que não seja totalmente consciente ou racional. Logo, a atração afetiva por pessoas brancas pode ser contaminada pela atração do status social de estar com uma pessoa branca. A perversidade do racismo é tamanha que ela atua a partir de um grupo que não se denomina “raça”, mas transforma em racializado tudo que não é desse grupo. A coisa é que a branquitude não se reconhece como uma “raça”, em vez disso ela se vê como o modelo. Pensando nisso, ousei elaborar alguns tópicos sobre mecanismos subjetivos/psicológicos que atuam na palmitagem. São muitos, e eu não daria conta de dizê-los aqui, mas, entre eles, eu destacaria alguns muito importantes:
I – O primeiro movimento que alimenta a palmitagem é a crença de que é preciso estar numa relação interracial (pessoa negra + pessoa branca) para que exista um reconhecimento social.
Dentro da lógica de supervalorização dos símbolos e signos brancos, existe um movimento ora inconsciente ora consciente que induz pessoas negras a desejarem o clareamento, e este pode ser tanto objetivo quanto subjetivo. E por mais que soe repetitivo, quero reiterá-los.
Dentro do clareamento objetivo, na impossibilidade de clarear sua pele, afinar seu nariz e modificar consistentemente a textura de seus cabelos, busca-se “clarear seus genes”, ou dizendo mais corretamente, busca-se por genes que produzirão humanos com tons de pele mais claros, até se atingir o tom “branco”. Essa busca também não precisa ser consciente para que aconteça. Mesmo com o racismo sofrido por muitas pessoas negras quando frequentam os lares das pessoas brancas com quem se relacionam, isso ainda não é o suficiente para competir com o sentimento produzido pela aparente aceitação social e, como já foi dito, de ascensão social. Assim, na lógica racista, ter descendentes cada vez mais claros, “preferencialmente brancos”, é gerar pessoas que terão mais acesso social, serão incluídas em espaços separatistas e serão reconhecidas enquanto seres humanos dignos de viver, dentro do sistema racial. O clareamento objetivo é, então, a via pela qual a partir das gerações se permite a realização de um desejo que vive no indivíduo negro – desejo esse que é socialmente construído e enraizado profundamente em sua subjetividade.
O termo clareamento pode surgir também como branqueamento, como vai dizer muito bem Tanya Katerí Hernández:
“O branqueamento é um conceito de um significado individualizável, pessoal, e outro nacional, mais amplo. No nível individual, o branqueamento gira em torno do desejo de uma aparência branca e a ambição de ter filhos mais claros por meio de relações inter-raciais. Acredita-se que filhos de pele mais clara terão mais oportunidades de mobilidade social. Ao mesmo tempo, a valorização individual da branquitude é muito mais influenciada pela promoção nacional da branquitude, mais bem exemplificada pelas representações das relações inter-raciais como aquelas que “melhoram a raça”. No nível nacional, o branqueamento é um conceito que descreve não só uma campanha concreta, de construção nacional e patrocinada pelo Estado para branquear a população, mas também a ideologia racial geral que valoriza a branquitude. Portanto, o branqueamento é um projeto mais amplo do que as oportunidades concedidas no período colonial ao seleto grupo de pessoas de ascendência africana na classe alta, as quais podiam alterar oficialmente sua identificação racial por meio de uma petição e do pagamento à Coroa Espanhola por um certificado de branquitude conhecido como cédula de gracias al sacar […] Isso porque o branqueamento, ao contrário desses certificados, buscava beneficiar toda a nação com uma imagem branca, e não apenas as pessoas de ascendência africana que buscavam ter os mesmos direitos e privilégios dos colonos brancos”. (Hernández, 2017; pág. 33)[24]
Uma pessoa negra que já vivenciou uma relação interracial com uma pessoa branca possivelmente já notou como seu acesso a espaços mais elitizados se tornam menos bloqueados: existe a fantasia de “ser uma pessoa branca”. Fantasia essa que, além de jamais ser possível a realização concreta, produz sofrimentos. Quando não percebidos, esses sofrimentos se expressam em outras dimensões do comportamento: busca-se por um perfeccionismo, uma produtividade além da necessária, um esforço contínuo de provar sua eficiência. Tudo isso para se sentir em aceitação por pessoas brancas que atingem os mesmos objetivos produtivos sem fazer quase nada comparativamente, apenas existindo sendo branca, e esse é o clareamento subjetivo.
Mesmo em espaços cotidianos, a vigilância sobre os corpos negros tende a ser menos marcada (embora não seja inexistente) quando se está acompanhada de uma pessoa branca. Duvidam menos de você, questionam menos se você é confiável e te abordam com outros tipos de violências que não necessariamente a física e verbal explícitas, pois a presença branca muitas vezes serve como passaporte de fluidez na sociedade. Todavia, logo que essa pessoa branca não está presente a pessoa negra vira novamente um objeto explícito de ameaça.
Além disso, numa lógica racista emerge a ideia de que, se uma pessoa branca “aceitou” se relacionar com uma pessoa negra, logo essa pessoa negra deve ter algo extraordinário, ou no mínimo compensatório, que motivou essa aceitação. E quanto mais dentro do padrão de beleza e de ascensão social da branquitude for aquela pessoa branca, maiores serão as suposições e as curiosidades acerca dos supostos valores que esta pessoa negra teve para conquistar o afeto branco. Não raramente essa pessoa negra se torna objeto de curiosidade: “o que ela tem de especial que essa pessoa branca até aceitou se relacionar?”. Meu palpite é de que isso produz na pessoa negra um sentimento ambíguo: ao mesmo tempo que lhe constrange transformando-a num alvo de questionamentos, e a colocando como inferior, a pessoa negra se sente “em acolhimento” por entrar num núcleo social que talvez nunca entraria se não fosse assim, na companhia branca. A armadilha se instala justamente aqui: quem disse que precisamos adentrar em todos os espaços que a branquitude nos proíbe? O que provoca esse sentimento de necessidade é justamente a falsa realidade de que o mundo branco é melhor que qualquer outro. E o racismo é tão eficiente quanto mais nos fizer acreditar nisso.
II – O “reforço” é um dos motores da idealização das relações interraciais
A constante ausência de representatividade dos afetos negros, junto com o excesso de demonstração de afetos brancos, cria uma rede de reforçamentos, a qual pressupõe que é no objeto branco que se encontra a realização do desejo de amar e ser uma pessoa amada. Desde filmes, novelas e propagandas até a pornografia, a imagem do corpo branco é mostrada e construída como aquela mais valorizada, mas indicada e mais eleita, enquanto a imagem de pessoas negras aparecem em lugares predominantemente subalternos, subjugados por pessoas brancas, ou em posição de constante e explícita hipersexualização[25] [26] [27] [28].
Estar continuamente em exposição ao conjunto de representações predominantemente branca produz no imaginário social o sentimento de que, se você não é uma pessoa branca, deve buscar pelo valor da brancura (novamente, é o clareamento subjetivo). Valores esses reforçados sempre que se miram as estatísticas, os lugares sociais e os estereótipos. A explicitação contínua das diferenças sociais a partir do marcador da “raça” cria valores que se espalham no tecido social. O racismo hierarquiza os sujeitos na sociedade, desloca as oportunidades, concretiza privilégios, aumenta as desigualdades e pinta de preto tudo aquilo que deve ser evitado. E é nessa lógica estrutural que (se você seguir a cartilha invisivelmente concreta da branquitude) terá reforçada em sua construção simbólica da vida que ser branco é o ideal de ego da sociedade, como diria Neusa Santos Souza, no seu livro “Tornar-se Negro”[29]. Além disso, nem todo reforçamento vem estampado com esse nome, geralmente são sutis, porém, e talvez por isso, muito aderentes.
Perceber as engrenagens do racismo, sobretudo as que permeiam as relações interraciais é geralmente muito difícil e às vezes demorado; mas com certeza doloroso. Muita gente se rende aos encantos da dominação na metade do caminho, entregando-se aos anestésicos e acabando por não seguir um caminho de autoconhecimento e enfrentamento do problema que, novamente, nunca foi simples, tampouco fácil e sem dores. E, cá entre nós, o que mais temos na sociedade são possibilidades de anestésicos[30] [31].
Um sistema social em que as pessoas ficam profundamente tristes, que se sentem pra baixo, e que se percebem nesse estado não dá lucros ao capitalismo; pessoas que se questionam e que divergem do normativamente estabelecido representa um risco ao sistema – por isso a felicidade é a busca mais reforçada na contemporaneidade[32] [33]. E ao mesmo tempo que ser uma pessoa negra no Brasil pode representar muitos sofrimentos – principalmente a partir da carência afetiva que nos é negada pela estrutura – não é logicamente vantajoso que tais pessoas se sintam mal sem que imediatamente busquem se anestesiar. Ou seja, dizendo de outro modo: um sistema exploratório precisa de subjetividades abaladas para que estas consumam aquilo que produz esse sistema.
Assim, dentro de um funcionamento social em que o desejo pelo branco permite também o maior consumo de produções brancas e branqueadoras, a lógica pressupões quase crie mecanismos pelos quais o sofrimento negro seja supostamente consolado ao dar aos indivíduos a sensação de pertencimento e aceitação. Obviamente que um olhar descolado de algumas instâncias do racismo permitiria perceber as múltiplas contradições dessa lógica – no entanto, esse é justamente o motivo da dose de opioide ser reforçada a cada consulta.
Certo, mas depois de dizer isso tudo, a “palmitagem” reforça o quê? Ela reforça – a partir da construção da brancura enquanto modelo – o ideário adoecedor de que é na relação com pessoas brancas que o sujeito negro se torna gente.
III – o apagamento referencial do afeto negro
Embarcando na ideia de apagamento referencial e somando ao que foi dito no tópico anterior, emerge o questionamento de porque é tão comum percebermos pessoas negras formando laços afetivos com pessoas brancas justamente quando essas pessoas negras ascendem socialmente.
Não é raro observar – sobretudo em homens negros – a mudança de suas parceiras (outrora negras) para parceiras brancas acontecer junto com a ascensão social desses homens[34]. Muitas são as explicações, mas uma que soa importante é que, mesmo inconscientemente, o negro absorve o ideário social que o leva a ver na mulher branca um portal que lhe permitirá adentrar a espaços antes limitados (ver nota 21, capítulo 3). Mesmo que essa mulher branca seja moradora da mesma comunidade da mulher negra, mesmo que disponham de semelhantes lugares na classe social e ainda que ambas compartilhem de uma mesma construção vocabular, a mulher branca segue sendo mulher branca numa sociedade que a privilegia por isso; o que, na menor das consequências de compartilhar do mesmo território social e geográfico, não morrerá por conta da cor da sua pele. Logo, apesar das semelhanças, é na diferença de ser branca e de ser negra, atrelada às valorizações culturais, que se encontra o valor socialmente construído do distanciamento entre ser mulher branca e mulher negra. É essa construção valorativa que elenca a mulher branca como peça mais destacada positivamente que a transforma em símbolo de status, mesmo que essa formação não seja percebida racionalmente nem de modo imediato. Por essas razões e por muitas outras que surgem conforme aprofundamos na discussão, a compreensão acerca das relações interraciais precisa acontecer tanto do ponto de vista da branquitude quanto a partir das vivências negras[35] [36].
Nesse jogo de poderes baseados na racialização já começa a indução dos afetos que partem do negro para a branca. Além disso, ao considerar o gênero, que permite maior fluidez ao chamado homem em detrimento do chamado mulher, homens alcançam primeiro locais de mais poder (dentro das limitações raciais) que o sistema permite. Chegando nesses locais de maior poder [ou de teoricamente mais acesso ao poder] o homem vê ali mulheres brancas em local de maiores oportunidades que mulheres negras. O mecanismo racial ilumina o desejo por essas mulheres, que por sua vez pode servir de inserção desses homens negros em espaços.
Estima-se que o casamento inter-racial, utilizado por alguns como reforço ao argumento de igualdade existente entre negros e brancos no Brasil, representa apenas 20% do total de casamentos, o que denuncia a existência de uma idealização das relações raciais nesta sociedade. […] Ao identificar as representações de casais interraciais (branco/negro) percebemos como estes operam com o conceito de “raça”, ao mesmo tempo em que podemos notar a influência de classe e gênero nestas representações”[37]
E embora isso jamais sirva de justificativa para esse comportamento que privilegia a mulher branca, no mínimo serve de explicação. E saber como funciona essa construção dos valores afetivos nos permite compreender a base da questão que envolve afetos, relações afetivo-sexuais e racismo. Em paralelo a isso está a solidão das mulheres negras, sobretudo no quesito de serem preteridas em relações afetivas[38]. Não é coerente dizer que o afeto das mulheres negras seja dependente do desejo dos homens negros por elas, talvez isso as reduza à dependência emocional ao homem, nesse caso o negro. Mas esse debate é muito mais extenso do que se pode supor esse texto. Porém, não é cabível desconsiderar que a “palmitagem” cria também esse ponto de rachadura na construção afetiva. E é por tudo isso que considero que apagar as referências possíveis de afeto é um problema. Ao tornar como referência o afeto branco, toma-se por menos desejável o afeto negro. E é nesse ponto de choque que se mostra a urgência em se trabalhar as compreensões e as percepções do problema da “palmitagem” e, com isso, pensar novas possibilidades que não as proibições.
* * *
Haja vista as relações íntimas entre o conceito de “Palmitagem” e a manutenção do racismo é preciso também problematizar o modo como se fala desse conceito. Saber da existência de um problema é o primeiro passo para pensar estratégias de como resolvê-lo. Certamente que criar uma terminologia e taxá-la como etiqueta, aplicando-a a todas as relações interraciais não é o melhor caminho. Não se educa uma sociedade a partir da proibição; o máximo que isso pode produzir são corpos dóceis e obedientes, adestrados para seguir normas, porém, reprimidos em suas construções afetivas ao ponto de não pensarem em porque fazem ou deixam de fazer suas ações. Que, se observarmos bem, veremos que dialoga com o que foi dito sobre as pegadas da colonização.
Então, se o objetivo real é levar conscientização às pessoas negras no que diz respeito aos modos pelos quais elas se relacionam entre si ou entre pessoas brancas ou não-negras, talvez seja mais frutífero mostrar os pontos de cruzamento entre racismo e afetos. Compreender essa encruzilhada pode ser o primeiro passo para que pessoas negras saibam que existem afetos possíveis que passem pelo olhar autoral e crítico. Do contrário, serão produzidos afetos novamente encaixotados, alienados e anestesiados.
Considerações Finais
Existe uma linha que separa o certo do errado; ela se chama moralismo.
Há uma linha que, sem nenhum fundamento, amarra outras vivências e as sufoca até que desmaiem; a essa chamamos preconceito.
Tem também aquela que amarra pessoas cada uma em um grupo, delimitando por marcadores sociais quem pode e quem não pode se tocar; é a linha da segregação.
A linha que amarra os afetos e os impede de se expandir se chama monogamia.
E, não menos importante, existe a linha que separa os puros dos impuros; essa se chama eugenia, e existe em vários diâmetros.
O carretel que serve de suporte a todas essas linhas é chamado de colonização.
O processo de colonização é voraz, feroz e persistente. Quanto mais ele se espalha de modo lento e gradual mais ele se apropria dos corpos que deseja aprisionar. E o racismo estrutural é tão vivo que atua organicamente na racialização dos afetos.
Racializa-se os afetos quando o racismo direciona o gosto de pessoas negras para pessoas brancas. Segundo o imaginário racista, o branco é o mais desejado, e com o branco em nossas vidas e em nossas relações clarearemos a geração e, assim – e só assim – seremos seres humanos dignos, dizem. O racismo converte aquele desejo por outra pessoa, que pode ser natural, em algo estrutural: deve-se desejar para ser desejável. Isso é violento!
Mas outra perspectiva também violenta é quando querem nos proibir de manter relações, sejam lá com quem for, pois isso fere a “ética” de uma comunidade[39]. Colocam o relacionamento afrocentrado como o prêmio a ser conquistado acima de tudo, e transformam em “certificados de militância” os pares pretos com quem mantém seus laços afetivos.
O que eu quero dizer com isso? Quero dizer que a minha crítica à “palmitagem”[40] se dá nessa encruzilhada: entre o poder desejar e a proibição do afeto.
Existe uma carência enorme de conscientização racial, oriunda de todo um período histórico de silenciamento acerca do racismo. Essa consciência racial se apresenta como um frutífero caminho para podermos entender a origem dos nossos afetos, os motivos dos nossos desejos e a força de nossas vontades. Em vez disso, talvez num movimento intelectual e numa abordagem teórica apressada, muitas pessoas tratam as relações afrocentradas como “certificados”, embora elas não sejam garantias de afetos leves. Se, por um lado, pessoas negras em um relacionamento afetivo com pessoas negras possuem percepções que podem dialogar melhor e mais instantaneamente entre si, e perceberem as dores umas das outras com mais facilidade e empatia, por outro lado se relacionar somente entre pessoas negras não garante uma relação saudável em todas as suas instâncias (com toda a discussão sobre o que é uma relação saudável). Quem se relaciona ainda são pessoas com suas particularidades, que independente de compartilharem semelhantes marcadores sociais e de ancestralidades, ainda estão imersas numa sociedade que produz subjetividades nos contatos entre os sujeitos e nas relações de poder.
Precisamos de informação, acolhimento e empatia, pois a proibição já nos é imposta desde que nos roubaram a liberdade de existir enquanto gente. Não temos o direito de dizer a uma pessoa negra que se relaciona com uma pessoa branca que ela está errada. Não é empático querer proibir, excluir e menosprezar quem assim se relaciona. Novamente, isso é imitar a colonialidade, utilizando de suas ferramentas excludentes como mecanismos autodestrutivos. Em tempos de globalização em seus estágios mais avançados, como é o nosso, proibir pessoas de diferentes “raças”/etnias de se relacionarem só pode “dar certo” se para isso criarmos um sistema de segregação, de impedimentos e de punições; isso já foi iniciado há séculos, pela branquitude europeia. E nada seria mais produtivo para a branquitude se ela própria não precisasse mais dizer que não quer misturar seus genes com outros que fogem do seu nicho de “pureza”, pois aqueles que ela quer evitar estão reproduzindo suas tecnologias sem que sejam investidas altas energias da branquitude no processo.
Então, por que em vez de utilizarmos as ferramentas coloniais, como a imposição, a proibição e a rejeição de quem pensa diferente do “nosso grupinho” – como faz a gente da gente quando alguém negro se relaciona afetivo-sexualmente com alguém branco – não refletimos sobre como abordar o tema a partir da compreensão do fenômeno? Ao mesmo tempo que existe um componente colonial (e racista) nas dinâmicas sociais que direcionam o afeto da pessoa negra para as pessoas brancas, e ao mesmo tempo que a “política de miscigenação” tenha objetivos perversos, não é construtivo considerar que pessoas negras são incapazes de pensar sobre seus próprios afetos. Parece-me mais saudável mostrar os cenários possíveis e aprendermos a entender nossos afetos, e não os proibir. Se você puder, acolha seus pares antes de imitar a colonização e “negá-los” de poder pensar.
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
[ . . . ]
Use o espaço dos comentários para compartilhar também a sua opinião por aqui! Você já segue o Blog Devaneios Filosóficos? Aproveite e faça essa boa ação, siga o Blog e receba uma notificação sempre que um novo texto for publicado. Conheça o meu canal no YouTube e o sigam-me no Instagram. #VocêJáParouParaPensar
NOTAS & REFERÊNCIAS
[1] Do colonialismo à colonialidade: expropriação territorial na periferia do capitalismo (Assis, 2014): https://www.scielo.br/j/ccrh/a/mT3sC6wQ46rf4M9W7dYcwSj/?lang=pt
[2] LANDER, Edgardo. Marxismo, eurocentrismo y colonialismo. In: BORON, Atilio; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, Sabrina (Comp.). La teoría marxista hoy: problemas y perspectivas, Buenos Aires: CLACSO, 2006.
[3] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder, Cultura y Conocimiento en América Latina. In: Anuário
Mariateguiano. Lima: Amatua, v. 9, n. 9, 199.
[4] Link: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao
[5] Desigualdades sociais por cor e raça no Brasil: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf
[6] LINK: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/09/18/brasil-tem-recorde-de-30-milhoes-de-pessoas-recebendo-ate-um-salario-minimo.ghtml
[7] Do colonialismo à colonialidade: expropriação territorial na periferia do capitalismo (Assis, 2014): https://www.scielo.br/j/ccrh/a/mT3sC6wQ46rf4M9W7dYcwSj/?lang=pt
[8] Mecanismos de Controle Humano – por Andreone Medrado: https://devaneiosfilosoficos.com/2018/11/14/mecanismos-de-controle-humano/
[9] Psicologia Social do Racismo: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=Z45ODgAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT7&dq=psicologia+do+racismo&ots=TY5vNmgcId&sig=oqX_0ZhdMgQtjpFgQfVNIWvzqLw#v=onepage&q=psicologia%20do%20racismo&f=false
[10] A Psicologia da Universidade de São Paulo e as relações raciais: perspectivas emergentes: https://www.scielo.br/j/pusp/a/3jFkh5GdtSrJVrRJmzFpDBz/?lang=pt&stop=next&format=html
[11] Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo, por Antônio Risério: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/racismo-de-negros-contra-brancos-ganha-forca-com-identitarismo.shtml
[12] Ver críticas ao texto de Antônio Risério:
– ‘Racismo reverso’ de Risério busca deslegitimar luta por igualdade racial: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/racismo-reverso-de-riserio-busca-deslegitimar-luta-por-igualdade-racial.shtml
– Racismo: 186 jornalistas da Folha assinam carta aberta contra publicação de texto de Risério; veja nomes: https://www.geledes.org.br/racismo-186-jornalistas-da-folha-assinam-carta-aberta-contra-publicacao-de-texto-de-riserio-veja-nomes/?gclid=Cj0KCQiA3fiPBhCCARIsAFQ8QzUn3VMuQe4Vuuye0WwhdBEfLa0z3BUXCLKhLUxj1MjUGHG5h-KcyjQaAuV3EALw_wcB
[13] Veja apoiadores do texto de Antônio Risério: “Risério contra os 186”, por Guilherme de Carvalho: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/guilherme-de-carvalho/antonio-riserio-racismo-folha/
[14]“Tornar-se Negro”, por Neuza Souza Santos: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/1154/o/Neusa_Santos_Souza_-_Tornar-se_Negro.pdf?1599239573
[15] Ramón Grosfoguel. 2011. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016. DOI: 10.1590/S0102-69922016000100003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/xpNFtGdzw4F3dpF6yZVVGgt/?lang=pt
[16]“ Desigualdade racial, racismo e seus efeitos”, por Maria Helena Rodrigues Navas Zamora: https://www.scielo.br/j/fractal/a/Qnm4D67j4Ppztvz3tfb4kwx/abstract/?lang=pt
[17] Em seu texto “CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Livros, 2019”, Antônia Maria da Rocha Montenegro usa como referência Stephanie Ribeiro, a qual define palmitagem como um neologismo usado pelas feministas negras para se referir a homens que se relacionam com mulheres brancas em função da condição de privilégios em que elas estão em relação à opressão de gênero e à racial. A palmitagem quebra o mito da sociedade racialmente democrática e miscigenada.
– Para ler o texto de Montegnegro, acesse: https://cadernosdolegislativo.almg.gov.br/ojs/index.php/cadernos-ele/article/view/370/317
– Para ler o Texto de Ribeiro, acesse: https://www.almapreta.com/sessao/quilombo/tu-palmitas-e-nos-preteridas
[18] “Tu palmitas, e nós preteridas”, por Stephanie Ribeiro: https://www.almapreta.com/sessao/quilombo/tu-palmitas-e-nos-preteridas
[19] “Mulher negra: Afetividade e solidão”, por Ana Cláudia Lemos Pacheco: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/16794
[20] “A solidão da mulher negra: sua subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo”, por Claudete Alves da Silva Souza: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3915
[21] Frantz Fanon, 1952. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ed. EDUFBA, Salvador, 2008. pg. 53.
[22] “Vivendo de Amor”, por bell hooks: https://drive.google.com/file/d/1h0b5yHx1c8sZ_PXrWBVokXVR1BMxqmaH/view?usp=sharing
[23]“O Cristianismo e a normalização do sofrimento”, por Andreone Medrado: https://devaneiosfilosoficos.com/2020/09/30/o-cristianismo-e-a-normalizacao-do-sofrimento/
[24] Hernández, T. K.. (2017). Subordinação racial no Brasil e na América Latina: o papel do Estado, o Direito Costumeiro e a Nova Resposta dos Direitos Civis / Tanya Katerí Hernández; tradução Arivaldo Santos de Souza, Luciana Carvalho Fonseca. – Salvador: EDUFBA, 2017. 231 p. ISBN 978-85-232-1577-4: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/21748
[25] “O negro na mídia”, por Alexandre Costa: https://www.geledes.org.br/o-negro-na-midia-2/?gclid=Cj0KCQiA3fiPBhCCARIsAFQ8QzUy06cBpcZOHmEpcS7y859wyMn6_Z6LNz8FVoQOuVHiuEzurSmg4XMaApniEALw_wcB
[26] Negros e mídia: invisibilidades: https://diplomatique.org.br/negros-e-midia-invisibilidades/
[27]“Corpo negro e pornografia – A fantasia do negro pauzudo”, por Paulo Esber Barros e Robenilson Moura Barreto: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/download/16361/10917/
[28]“ A hipersexualização da mulher negra e a política da respeitabilidade”, por Ana Paula da Silva: https://www.geledes.org.br/hipersexualizacao-da-mulher-negra-e-politica-da-respeitabilidade/?gclid=Cj0KCQiA3fiPBhCCARIsAFQ8QzUf1yzlQPcFJqI8xakeuWLYyd5Qr4_HlyCcPPTaoo4oORInkJoHUsoaApujEALw_wcB
[29]Ver nota 14, nas referências.
[30] “Canto de sereia? Alienação racial e social da sociedade brasileira, representada na expressão: “Eu não me deixo abalar pelo racismo.””, por Christian Ribeiro: https://www.geledes.org.br/canto-de-sereia-alienacao-racial-e-social-da-sociedade-brasileira-representada-na-expressao-eu-nao-me-deixo-abalar-pelo-racismo/
[31] “O racismo velado”, por Gustavo Nascimento: https://www.geledes.org.br/o-racismo-velado-por-gustavo-nascimento/?gclid=Cj0KCQiA3fiPBhCCARIsAFQ8QzWJzWjkPFyB82NzMoq6htgfpcQkkcmotCbhlMbBEW9VIOzj3RjSGScaAgHPEALw_wcB
[32] CAPITALISMO E FELICIDADE: apontamentos sobre a teoria social contemporânea e o pensamento de Marx, por Rodrigo José Fernandes de Barros e Kelvis Leandro do Nascimento: http://www.cbg2014.agb.org.br/resources/anais/1/1404149862_ARQUIVO_CapitalismoDesigualDistribuicaodeAlimentoseFomeOculta.pdf
[33] “As pessoas dizem: ‘O capitalismo sobreviverá’. Eu contesto: já mudou imensamente”, por Slavoj Žižek: https://brasil.elpais.com/cultura/2021-01-23/slavoj-zizek-com-a-pandemia-comecei-a-acreditar-na-etica-das-pessoas-comuns.html
[34] Ver nota 14 e ver nota 21 (capítulo 3).
[35] “Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana, por Lia Vainer Schucman: http://www.ammapsique.org.br/baixe/encardido-branco-branquissimo.pdf
[36] “Racismo na família e a construção da negritude: embates e limites entre a degradação e a positivação na constituição do sujeito”, por Lia Vainer Schucman: https://periodicos2.uesb.br/index.php/odeere/article/download/2366/2261
[37] CASAIS INTER-RACIAIS E SUAS REPRESENTAÇÕES ACERCA DE RAÇA, por Zelinda dos Santos Barros: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/14530/1/Zelinda%20Barros.pdf
[38] Ver notas 18, 19 e 20.
[39] Alguns links podem ser visitados para pensar sobre isso. Não quero dizer qual está certo ou errado, adequado ou inapropriado, tampouco significa que eu concorde com todos. Mas você pode lê-los e tecer suas considerações a partir da intersecção deles com a sua vivência. São estes:
– “Do genocídio negro à ‘palmitagem’, debate sobre racismo se multiplica e enfrenta contradições”, por Felipe Betim:
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-16/do-genocidio-negro-a-palmitagem-debate-sobre-racismo-se-multiplica-e-enfrenta-contradicoes.html
– “Palmitagem: uma reflexão sobre relacionamentos interraciais”, por Levy Kaique Ferreira:
https://mundonegro.inf.br/palmitagem-uma-reflexao-sobre-relacionamentos-interraciais/
– “O que é palmitar? Entenda termo que se usa para casais inter-raciais”, por Nathália Geraldo:
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/07/29/o-que-e-palmitar-entenda-termo-que-se-usa-para-casais-inter-raciais.htm
– “Precisamos falar sobre exclusão amorosa de garotas negras e ‘palmitagem’”, por Ana Carolina Pinheiro:
https://www.geledes.org.br/precisamos-falar-sobre-exclusao-amorosa-de-garotas-negras-e-palmitagem/
[40] Não acho tão interessante o termo “palmitagem”, mas o utilizo aqui porque preciso deixar muito nítido sobre o que estou falando. De modo mais específico, dou preferência ao termo “relações interraciais”.