Mesmo que você não aceite prontamente, tudo está mudando. E quando você não quer perceber a mudança, você inventa/reproduz uma normalidade. Essa invenção não se pretende universalizante: não é um efeito necessariamente consciente, que tem um objetivo bem delimitado ou um propósito bem estabelecido; o que também não significa que não se universalize por alguma razão. Além disso, essa normalidade que se inventa e se reproduz pode ser uma tentativa cega de fuga daquilo que de outra forma geraria sofrimento ao sujeito – um sofrimento posto em lugar de outro sofrimento, mas que não é percebido em si como um modo de sofrer. E neste cenário, pensar no sofrimento cristianizado é um ponto importante de reflexão, já que para o cristianismo sofrer pode ser sinônimo de amor, de resiliência e de vitória, mas raramente de preocupação enquanto modo de vida.

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A constatação da realidade objetiva requer a construção, ou, digamos assim, produz a elaboração de uma realidade subjetiva que nos distancia de um sofrimento à medida em que nos aproxima de outro. Dito em outras palavras, para a compreensão da realidade objetiva (das coisas físicas como são em si e por si) fazemos uso de uma construção imagética, simbólica e contextual, que nos permite a partir de uma abstração construir uma realidade subjetiva (imaginada e interpretativa) que, por sua vez, nos servirá de compreensão da vida e do mundo. A vida, enquanto um processo que se desenvolve por acasos e aleatoriedades, não tem uma consciência, não apresenta nem propósitos nem objetivos a serem alcançados. Perceber-se numa realidade que não tem tais propósitos fins objetivos faz com que nós – seres altamente conscientes e intrinsecamente angustiados – possamos sentir um profundo desamparo existencial, que nos desloca do mundo e nos posiciona no caos, na ordem das probabilidades, no eventos não coordenados por quem quer que seja; mas que nós insistentemente buscamos por formas diversas de burlar a percepção fria e crua da existência e dar a ela um aspecto mais palatável e inteligível. [A isso chamo de Humanização – mas fica os detalhes para outra prosa.] E algumas maneiras hoje normalizadas são na verdade entorpecentes e anestésicos que nos mantém num processo sedativo que [talvez] seja necessário para a espécie humana existir e seguir existindo, mas que também pode atuar apenas como um modo alienante de existência.

Não me parece atrevido dizer que todo ser humano busca, de um modo ou de outro, um direcionamento para suas angústias e seus desesperos que lhes reduza em algum grau o sofrimento; sofrimento esse que pode ser apenas um substituto do anterior. O que não significa que o sofrimento novo, ou substituído, seja de fato mais leve. Pode, sim, ser o caso de trocar um sofrimento caótico por aquele que está mais lapidado, do qual se conhece melhor e em detalhes os efeitos, as origens e as consequências – mas que nem por isso é organizado. Nesse sentido, se pensarmos na religião, ela surge como uma promessa eficiente de anestesia profunda da visão objetiva, que constrói toda uma ideia do que é o sofrer e ainda diz o que este sofrimento pode proporcionar caso seja bem vivido. Assim, na ideia do Cristianismo, por exemplo, o sofrimento proporcionado por encarar uma realidade objetiva – na qual as vivências acontecem ao acaso, dentro de relações socioculturais e que atravessam os seres humanos com suas profundas angústias -, foi substituído pelo sofrimento desejado; aquele que faz parte de um processo salvacionista, purificador e que encaminha o organismo que sofre a um suposto paraíso.

O Cristo crucificado surge, então, como uma imagem central no deslocamento do sofrimento – e não digo num deslocamento do ponto de vista da psicanálise, mas apenas no sentido histórico-filosófico: e um deslocamento simbólico. Esse símbolo representa uma normalização do estado mais baixo do ser humano, que está em sua fragilidade física de esgotamento, uma criatura exposta numa cruz como símbolo de suportabilidade, em uma ausência completa de resistência e numa profunda inanição diante daquilo que lhe é imposto; entretanto o seu sofrimento é ressignificado. Assim, na representação cristã, o sofrimento não é mais aquele que gera a angústia em quem sofre, pelo contrário, ele supostamente serve de afago, de esperança, de salvação a um sofrimento objetivo vivenciado no mundo prático. O jogo é virado, pois esse sofrimento dá voz aos seres humanos que sofrem e diz a estes que isso não é simplesmente um sofrer qualquer, mas um ato de reverência e de amor. E a partir do momento em que nos é apresentado algo que desvia a nossa atenção observacional do sofrimento provocado pelos episódios cotidianos, uma proposta que altera o sentido do sofrimento e o coloca como prêmio de honra ao mérito tende a ser aderida pelos que o aplicam, e pode ainda ser normalizada, como o é.

Logo, a figura do Cristo crucificado, e admitindo para estes fins que ele tenha existido, e se considerada em sua crua representação, mostra um homem que foi condenado, torturado e humilhado pelo Império Romano. Segundo a narrativa mitológica Cristã, o Cristo foi pendurado sobre uma cruz, tendo seus pés e suas mão cravados, sendo ainda lancetado e exposto publicamente sob vaias e afrontamentos. Apesar disso, a sua condenação não foi inédita, tampouco a pior de todas. Em tempos posteriores, como no século XVI na França, nos chamados suplícios, ou durante todo o período Colonial no Brasil, seguido por empalamentos de indígenas e pelos diários açoitamentos dos africanos escravizados, o sofrimento dessas pessoas era um castigo, uma punição, um exemplo social que visava combater o desvio. E ainda que o Império Romano pretendesse semelhante resultado punitivo com o tal Cristo, o que emergiu disso foi a normalização de que sofrer por um motivo transcendental é uma razão suficientemente válida para que se transforme em esperança toda e qualquer situação adversa.

Nos outros casos, o sofrer e a dor que existia nos atos humanos pertenciam ao plano terrestre, era um componente de uma ordem social que media quem merecia ou não ser tratado com violência. O mesmo não se passou com o Cristo; ele reuniu um conjunto tradicional de simbologias já presentes no imaginário coletivo e acrescentou novas maneiras de sofrer, agora com uma “justificativa”: de que sofrer não te torna um ser ressentido, mas um ser forte. A partir do momento que o sofrimento representa uma possibilidade de recompensa – e que essa recompensa se promete como maior que qualquer montante de sofrimentos possíveis -, eis que um novo sentido é dado ao ato de sofrer; e este ato pode se chamar inclusive de resistir, superar e vencer os males do mundo em prol de um conforto que se consumará na eternidade.

“Pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles.”

II Coríntios, 4:17

“Porque, tendo em vista o que ele mesmo sofreu quando tentado, ele é capaz de socorrer aqueles que também estão sendo tentados.”

Hebreus, 2:18

“Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança.”

Tiago, 1:2-3

“Resistam-lhe, permanecendo firmes na fé, sabendo que os irmãos que vocês têm em todo o mundo estão passando pelos mesmos sofrimentos.”

I Pedro, 5:9

“De fato, vocês se tornaram nossos imitadores e do Senhor, pois, apesar de muito sofrimento, receberam a palavra com alegria que vem do Espírito Santo.”

Tessalonicenses, 1:6

“Suporte comigo os meus sofrimentos, como bom soldado de Cristo Jesus.”

II Timóteo, 2:3

Como se pode observar nas frases acima – todas elas retiradas do Novo Testamento (que marca o Cristianismo) -, o sofrimento não é negado em sua essência. Na verdade, está se trocando um sofrimento por outro, mas na condição de que, reiterando, no sofrimento cristão há uma “justificativa”: sofre-se aqui para ser feliz eternamente num céu imaginativo, um céu criado pela mente humana, mas que, ainda assim, é capaz de desviar o sentimento de desespero e desamparo que poderia existir se nenhuma esperança posterior fosse concebida. Esse sofrimento “consensual” atua na formação de grupo, na potencialização de uma identidade individual e coletiva que diz às criaturas cristãs que elas não estão em desamparo enquanto são atravessadas pelo sofrimento, em vez disso, seu sofrimento ressignificado lhes assegura uma suposta recompensa, a qual atua como uma reforçadora a longo prazo; e que sustenta o ato de sofrer utilizando-se do próprio sofrimento.

O animal humano é atraído pelo brilho da esperança, da possibilidade improvável, do imaginário que promete que as coisas serão necessariamente sem dores e sem sofrimentos. Nisso, e por isso, normaliza-se que existem motivos pelos quais devemos [ou até precisamos] sofrer; normaliza-se que uma tortura seja representada como resiliência (o que é em si uma contradição extraordinária); além disso, se normalizado esse modo de sofrer, ele assume uma simbologia que empresta todo um sentido de vida a quem nela deposita a leitura e o desenrolar de sua vivência. E esse é o modo de sofrer em silêncio, sem uma reação impetuosa, ele é inerte e degenerado, na esperança de que alguém (que jamais o próprio indivíduo) fará intervenções. Em outras palavras, ao assumir que nosso sofrimento é aceitável, nos tornamos facilmente docilizáveis, nos moldamos com facilidade aos comandos de uma entidade docilizadora. Quando disso, não questionamos a necessidade de aceitar esse sofrimento, não nos opomos nem nos pretendemos oponentes. Resistir sem se questionar revela que pode haver um potencial anestésico na normalidade como se sofre no cristianismo, ou, o que também não podemos descartar, esse sofrimento [re]contextualiza aquilo que é entendido como sofrer, fazendo dele uma maneira de se mostrar dentro do rebanho – como se fosse “um povo marcado, povo feliz“.

Estritamente nesse contexto, a normalização [ou seja, a consolidação contínua da normalidade do ato de sofrer] seria aquilo que inventamos e tornamos comum (normal) para disfarçar a nossa percepção de algum sofrimento inevitável ou inerente ao ato de viver, ou pode ser até mesmo o deslocamento e/ou a substituição dele. Fingimos que um determinado modo de existir é normal, e em oposição criamos naturalmente o anormal, criamos um contexto novo, idealizamos um cenário menos complicado/complexo e acreditamos com isso que estamos sofrendo menos com as mudanças [quer sejam elas percebidas/perceptíveis ou não]; quando, na verdade, só estamos sofrendo outro sofrimento.

Ainda assim, teimosamente me pergunto se as pessoas cristãs seguiriam construindo suas subjetividades em torno da simbologia do cristianismo caso elas soubessem [ou se pusessem a saber] de fato o que esse símbolo representa na prática crua. Se lhes fosse dado o direito de questionar a veracidade das promessas bíblicas e, por ventura, percebessem que são tão frágeis quanto fantasiosas, será que permaneceriam ressignificando o sofrimento? Será que sofreriam mais? Sofreriam menos? Será que seguiriam se anestesiando, com doses diárias de renúncia de si, de esvaziamento próprio e com boas injeções de anulação pessoal para uma incorporação numa ordem imaginada coletivamente? Talvez uma das respostas seja até fácil, haja vista que essa anestesia tem funcionado há mais de 2000 anos. Só vale lembrar que funcionar não deve ser tomado por sinônimo de dar certo.

“Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me;”

Mateus, 16:24

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vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.