Só queria poder amar com mais suavidade, e que para além de todos os impedimentos sociais (financeiros, geográficos, subjetivos como desgosto pela minha aparência) eu pudesse experimentar uma relação na qual eu não ocupasse nem o lugar de escravo, nem de réu, nem de objeto descartável.

Ali, naquela comunidade fechada, restrita ao amor de um egoísta e eugenista deus branco e de um jesus europeu ridiculamente igualmente embranquecido, quanto mais clara a pele, quanto mais lisos os cabelos e quanto mais doce a brancura, maior a aceitação, o prestígio e a confiabilidade. Mas falar isso dessa maneira pode soar duro demais, então vamos trabalhar a questão de outra maneira.

Ali dentro, a pessoa desejada de verdade, aquela que era dita “para casar e ter uma família; uma pessoa realmente temente a deus” era também aquela de cabelos lisos; se mulher, que tivesse seus cabelos compridos, bem compridos, tal que não eram cortados, e que estavam sempre exibidos como símbolo de obediência divina e de virtude angelical. Mas , pense comigo, quais pessoas daquele meio – e aqui considere a cisnormatividade em toda sua essência – teriam cabelos lisos e compridos senão a mulher branca? É até desnecessário dizer que quanto mais claros os cabelos mais linda se considera a “serva de deus” – as mulheres amarelas e indígenas eram raras naquele meio. Assim, quanto mais uma pessoa exalasse aquela azeda brancura, mais sua luz radioativa se irradiava nas trevas da religião, e mais se dizia que a pessoa era confiável, rara e, portanto, digna de um amor inconteste.

Foi nesse meio que eu cresci. Me desenvolvi numa produção demasiadamente cis-heteronormativa e racista, aprendendo que pessoa linda e desejável era esse perfil mencionado, o branco. Perfil que em geral se relacionava com seus pares estéticos: homens brancos, de cabelos lisos e desejáveis. Se você queria o maior símbolo de sucesso e de sorte no amor, deus teria de te agraciar com essa simbologia viva. O racismo operava suas dinâmica no afeto, na geração, no amor [branco] ao ponto dessa dinâmica social, que nitidamente não se restringe àquela comunidade religiosa, mas que da sociedade nela é espelhada, ser tomada por natural. Apesar disso, amor não era questionado, pois nunca foi realmente o assunto motor que unia as pessoas.

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A religião cristã não se trata de amor, mas de identificação, submissão e servidão e controle.

A bíblia cristã projeta uma imagem de deus que se pretende identificada ou identificável às suas criaturas. Essa imagem supostamente fala de amor; supostamente produz uma entidade sobre-humana que no construto da crença é infalível, que tudo vê, tudo sabe e que está em todo lugar. Está em todo lugar, inclusive na sua mente, no seu coração, na sua consciência. Ele conhece os seus desejos, as suas necessidades e as suas vontades. Tal onisciência chega ao estado de tanto te conhecer que cuida de ti como o único que te conhece de verdade – te conhecendo mais do que você supostamente poderia conhecer de si passa a te dominar pela ausência crítica que te invade. Essa intimidade se entrelaça ao ego do indivíduo, se amarra às suas carências, e num movimento narcisista ela se entranha às INtranhas que rejeita ideias extranhas.

A identificação em deus está para o crente como o curativo está para o membro ferido: é essa a ferida narcísica do humano que se vê totalmente atordoado no não-saber que é tapada pelo curativo da crença em uma entidade fantasmagórica; uma ordem imaginada. Se por um lado se propaga um deus amoroso que tudo faria pelas suas criaturas, por outro lado essa alucinação coletiva construiu espelhos disformes que refletem uma imagem desproporcional, de um amor inexistente. Ainda assim, nunca foi sobre amor, mas sobre se identificar com aquela fantasiosa ideia de cuidado que tanto desejamos, mas que na impossibilidade de sua realização criamos um fantasma interno para chamarmos de deus. Um deus hipotético cuja hipótese não pode ser testada, é o curativo aderente que cobre a ferida necrosada pelo medo cristão.

“Sinto muito” em retomar as palavras duras, mas preciso dizer que, em vez de amoroso, quiçá o ateu Richard Dawkins, em seu livro “Deus um delírio”, esteja certo ao dizer que “o Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo”. Apesar disso, insistem – criticamente ou não – em dizer que enviar seu único filho para ser torturado é um gesto de amor. Se isso não te parece um exemplo violento de até onde chega a representação do narcisismo egoísta e sanguinário de um deus, talvez devamos assumir que você está amando divinamente.

A ideia de submissão, tão presente na bíblia cristã, constrói no imaginário popular o sentimento, também lenta e gradualmente naturalizado, de que servir é um ato de amor. No entanto, e novamente, não se trata de amor; se trata de [re]produzir corpos docilizados de tal maneira que não se questionem de seus desejos mais internos; que não acessem conscientemente suas excitações mais protusas e abismais; que negligenciem seus quereres mais seus. Submeter-se par servir; servir-se para se submeter: eis a dinâmica que encerra o sujeito desejante numa jaula onde deverá performar o desejo alheio enquanto aos poucos mata por desnutrição suas vontades mais viscerais.

Se tudo isso não é [no mínimo] movido por um discurso de controle, eu me considero desde então incapaz de dissertar sobre as dinâmicas afetivas promovidas no meio religioso. Essas possibilidades de construção afetiva baseadas na dominação psicossocial a partir da crença em uma entidade podem parecer até exageradas, podem inclusive soar estúpidas para quem pela alienação acrítica se supõe conhecer a verdade de tudo. No entanto, meu palpite alucinado é de que essas dinâmicas não se restringem à religião, mas que nela encontram a ressignificação do amor. Ressignificação essa que passa pela [re][des]construção do ato de amar; ela ressignifica o sofrimento remodelando o que se considera amor. A pessoa que cresce num meio religioso, e que se embrenha em suas doutrinas e em seus estatutos se torna tão traumatizada quanto mais de sente confortável nesse meio. Não me lembro de um dia em que fui infeliz ali dentro por mais de duas décadas – até que perto da terceira começam surgir incômodos que me impediram de permanecer no mesmo ponto. Não é sobre ser infeliz nessa existência, mas quiçá sobre não conhecer outros modos existenciais para além das migalhas.

Isso tudo para [re]dizer que não é sobre amor que se fala dentro da igreja. O amor é o veículo estético e motivador de atração; é a ratoeira com alimento, é a arataca coberta por folhas verdes, é o açúcar que engana até embriagar o sujeito que evita o álcool. Usa-se de uma forjada ideia de amor para que todo o discurso de normas seja implementado com ações institucionalizadas pelas repetições, pelos rituais, pela doutrina, pela educação; são discursos adaptados e adaptáveis ao meio para manterem-se em suas normas geradoras. E esse discurso, embora não de fato relacionado ao amor, influencia, quando não manipula, a maneira como construímos nossos afetos.

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Numa sociedade que se organiza a partir do racismo, e que está imersa numa religião fundamentalmente racista, o resultado não seria outro além de uma emersão da Supremacia Branca como marcador do desejo, como significante do belo. É o racismo que não deixa escapar nenhuma instituição que funcione como organizadora de corpos aflitos – o racismo é institucional, logo ele permeia tudo e todes. Não por coincidência, ao longo de muitos anos ele permeou meu modo de significar o afeto – ainda existe o desafio de entender o quanto dessas raízes ainda brotam em lugares que possivelmente eu nem conheça dentro de mim.

Crescer numa família negra-cristã-protestante pode representar crescer num meio racializado mas que não se fala sobre racismo. Ou, se preferir, eu diria que até se fala, mas fala-se usando a linguagem e a gramática racista: corpos que “se submetem” à supremacia de modo quase que docilizado e que num movimento altamente disciplinar faz os sujeitos servirem voluntariamente a um ideal existência que é branco. A grande revelação para as pessoas que por alguma razão tem a áurea oportunidade de se perceberem inseridas no e vitimadas pelo racismo é, em algum ponto de sua história pessoal, notar que estão sendo oprimidas.

Quem tem a chance de abraçar essa oportunidade abraça também um dilema: de um lado, pode-se “ignorar” que existe o racismo, ou que ele não é tão perverso assim, e sucumbir [mais ou menos] ao desejo e aos rituais de embranquecimento, assumindo para si os signos da branquitude e construindo a fantasiosa ideia de pertencimento. Do outro lado do dilema está a conscientização ativa de que se é, e não apenas se está, uma pessoa negra numa sociedade em que impera a supremacia branca, e que nenhum verbete bíblico pode explicar a seletividade de um deus que promove desigualdade baseada, entre outras coisas, na raça.

Embora não sejam determinantes, as dinâmicas de uma comunidade, por exemplo a religiosa, influenciam pela aprendizagem e pela repetição o modo subjetivo e cognitivo pelo qual desenvolvemos nossos afetos, nossos gostos e a partir dos quais orientamos as nossas escolhas.

É preciso um exercício muito profundo, duradouro e persistente no tempo para que os afetos de uma pessoa negra sejam insistentemente rejeitados por pessoas brancas e mesmo assim se siga buscando na brancura o sentido de amar e ser amade. Esse foi particularmente o meu caso. Não faço ideia de quantas vezes minhas demonstrações de afeto eram recebidas, devolvidas e desprezadas com a frase “Eu gosto muito de você, a gente se dá muito bem, mas gosto de você somente como amigo”. Não raramente esse dizer vinha acompanhado de um “mas não me leve a mal, não é pessoal, é que também não quero me envolver com ninguém agora, vou focar no trabalho, nos estudos…”. As mesmas pessoas que diziam isso estavam na semana seguinte assumindo uma relação com uma pessoa branca. Mas não é pessoal…

O tempo passou enquanto eu me desenhava nessa dinâmica. Em vez de desistir, curiosamente o desejo pela brancura parecia aumentar. Em vez de perceber que existe uma trama contra afetos racializados, o desejo por encontrar um correspondência no afeto branco parece ser proporcional à rejeição que dessas pessoas recebemos. Talvez isso seja assim porque quando vemos afetos brancos sendo representados em qualquer meio de comunicação ou na vida prática e cotidiana sempre os vemos numa posição de destaque e de valorização; coisa que jamais eu via a respeito de pessoas racializadas na minha infância, adolescência e fase adulta. Sempre gostei da chamada “pessoa mais linda da turma”; sempre me apaixonei pelas “mais crentes e mais belas da igreja”. Todavia, se pela manhã raiava a luz da esperança por correspondência, era “no final da noite” que sempre soprava o vento do “… apenas como amigo”. A pergunta que deve ser feita é “Qual a régua que media a beleza que me atraia? Qual a medida que fazia das pessoas brancas as mais atraentes?”. Ora, hoje sei dessa resposta; e suspeito que você já entendeu. Parte disso é fruto de uma cultura que posiciona o corpo negro fora de afetividades íntimas e genuínas.

Tão forte era/é essa cultura do afeto negro nunca ser posto como um afeto mais íntimo, que inclusive pessoas negras vestem o manto do “eu gosto apenas como amigo”. Tenho a impressão de que algumas pessoas negras passam a ser vistas apenas como aquelas que chamaremos de colegas, “amigas“, conhecidas – mas não de “namoradas“, companheiras, etc. Isso tudo num contexto afetivo monogâmico, mas caio na ilusão de acreditar que só nele. Logo, e aqui falando de mim outra vez, o olhar afetivo mais íntimo, aquele que na monogamia pressupõe olhar para uma pessoa e desejá-la como companheira para uma vida era algo que sempre se voltada para a pessoa branca.

Tanto fiz que “consegui“; me instrumentalizei de uma acervo intelectual, de uma postura “diferenciada” e construí em mim exageros reais e não-exagerados que pelo menos na somatória dos fatores me apresentavam como um sujeito nem tão atraente quanto se pretende a branquitude, mas também nem tão abjeto e descartável como se esperava a estatística também branca. Aprendi a mirar o amor sempre num alvo branco, era ali que eu tinha de acertar. A pessoa negra não habitava esse ideal de amor, ela pertencia ao campo sócio-histórico da castração.

Afetos negros são castrados no imaginário coletivo da supremacia branca. Esse discurso da castração enquanto dispositivo alienante parece atingir a nós pessoas negras em maior ou em menor grau. O corpo negro ocupa pelo menos dois lugares peculiares no imaginário racista: o lugar do fetiche e o da desumanização, às vezes ambos ao mesmo tempo.

Por um lado, o corpo negro é desumanizado de modo tal que o torna até banal; ele é posto como um corpo desprovido de sentimentos, de emoções e de inteligência; é lido como um corpo que não importa e que não tem função outra senão a de servidão dos desejos, das necessidades e da sofisticação supremacista branca; é um corpo considerado incapaz de escolher, um corpo carente ou até isento de emoções e de subjetividade cujas escolhas sempre são atribuídas às fantasias raciais de um povo racista.

Por outro lado, num processo que se assemelha à desumanização, mas que vai por outra via talvez paralela e aproximada, está a fetichização do corpo negro. Se ele não é afetivamente sexualizado ao ponto de ser posicionado numa relação afetiva íntima dentro do construto de amor, ele é convertido, então, pelo imaginário racista como um corpo genitalizado; um corpo exageradamente erótico, um objeto de realização de prazeres sexuais que deve ser tão dotado genitalmente quanto infalível em performance. Ou seja, não é o caso de perceber a pessoa negra por traz da cena, tampouco de atribuir-lhe um nome e uma identidade; nada disso importa para a pessoa racista. Importa, sim, que este corpo reúna os signos eróticos de fogozidade, de selvageria, de potência sexual. Depois de atingido o clímax e após finalizado o orgasmo branco-fetichista, o corpo negro retorna para as sombras do desejo branco, volta a habitar o porão do afeto do qual a branquitude nunca quis que saiam – serão notados quando as chamas da branquitude se ascenderem e e sua luz identificar o corpo negro; se reinicia todo o ciclo de usos e abusos fetichistas. É uma sensação de angustia notar e assumir que esse sentimento me invadiu o corpo, a mente e o afeto quando eu me percebi uma pessoa racializada; confiar tornou-se, embora necessário, um desafio e pesadelo. As coisas vão piorando quando com essa conscientização vou percebendo como construo a minha sexualidade. Me sentir um corpo fetichizado e desejado por uma aparência que não considera a minha subjetividade foi também me sentir escravizade pela segunda vez na história da humanidade; se a fantasia de uma reencarnação existisse na prática, ali eu estaria [re]encarnando no corpo de meus ancestrais trazidos para esse campo de concentração.

Mais agressivo ainda foi descobrir tudo isso estando casade com uma pessoa que abrigava em si o paradoxo do afeto interracial: amar aquela pessoa que querendo ou não estende a bandeira do racismo somente por ser branca. Engana-se quem acredita que por estar numa relação de afetos íntimos e profundos com uma pessoa branca me protegeria ou me asseguraria que o racismo não tivesse espaço ali. Quando vivemos uma relação interracial, a família, as amizades e os costumes brancos veem juntos. Para suportar essa violência, por vezes tentamos fantasiosamente superar a noção de racismo no relacionamento, mas somos duplamente lembradas: ora pela branquitude, que se revela nos micro e macro comportamentos racistas, ora pelas pessoas negras (e de outras racializações), que se voltam para nós em tom acusatório, supondo que somos pessoas negligentes e dotadas de estupidez por estarmos com pessoas brancas. Que inferno! Nunca temos nossos afetos habitando o campo da do válido. Muito pelo contrário, é um afeto construído à base da invalidação, à base do exercício de apagamento, seja de um apagamento de si para si, seja do apagamento de um discurso social que te apaga, mas nunca posto no campo do real, válido, possível de ser habitado com paz.

Busca-se domesticar o afeto negro dentro das exigências de uma supremacia branca, e isso é tão mais intenso quanto mais distanciada é a pessoa negra de sua história. O meio onde cresci era repleto de racismo; como consequência, aprendi a não gostar de ser uma pessoa negra. Criei estratégias de rejeitar a mim tanto quanto eu poderia. Ter seguido caminhos acadêmicos e intelectuais favoreceu em muito no distanciamento de uma negritude que me pertencia, mas que eu a negava; isso criou uma proximidade silenciosa com a branquitude, com seus objetos de desejo e com suas maneiras de construir o amor. Foi ali, naquele meio que também é racialmente excludente, que conheci as pessoas que aprendi a desejar construir relações íntimas-sexuais (pessoas brancas) e as pessoas com as quais tive “só amizade” e parceria profissional (pessoas negras).

Hoje se tornou rápido e tecnologicamente prático chamar as pessoas negras que se relacionam com pessoas brancas de palmiteiras. Ignora-se todo um construto longo e insistente na produção do desejo e da domesticação dos afetos racializados. Mas fazem isso sem o menor cuidado, sem a menor dose de empatia. Parece haver um sabor sádico, produzido na sensação de ver o sofrimento alheio exposto, querem ver a ferida sangrando para que alimentem seus desejos pelo constrangimento e pela degradação emocional alheia. Além disso, mentes encarceradas nas celas da branquitude podem levar tempo para saírem desse espaço mofado e sem luz natural, pode levar tempo para recuperarem o tônus muscular que as fará se movimentar em outros modos de amar. Mas línguas apressadas preferem dizer aquilo que decoraram nos quarteis instagramáveis e baratos da militância por likes; nessa lógica o objetivo não é refletir a respeito de uma prática ou de um fenômeno social, mas sim repetir aprendizados de uma escola de adestramento que produz satisfação em alimentar discursos vazios e banalizados.

É quando de fato me percebo nesse ambiente social que periga a minha paz, que é a relação interracial com a pessoa branca [mas aparentemente não apenas ela], que me percebo numa dúvida: o racismo diminuiu minha atração afetivo-sexual por pessoas brancas, ou seria o caso de ter aumentado consideravelmente os meus receios por elas? Ou até uma combinação dessas duas possibilidades com muitas outras?

Minha experiência subjetiva e particular (mas que se confirma em vários relatos que chegam até mim) é de que, caso você tenha desenvolvido uma consciência crítica na relação interracial, você estará constantemente em estado de vigilância: nunca se sabe quando a pessoa branca será de fato branca, nunca se sabe quando ela usará de seus privilégios para oprimir o outro corpo pela raça, para agir com um silêncio branco pautado em migalhas afetivas, ou quando apenas te substituirá por um corpo branco. Estar nesse lugar é traumático tanto quanto é triste; pois de todo lado os olhares de julgamento bombardeiam a minha cabeça com percepções que criam narrativas capazes de produzir as maiores inseguranças afetivas que se pode imaginar.

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Quantos afetos e quantos amores o racismo te impediu de viver? Quantos sentimentos foram experimentados sob constante atrito emocional porque o racismo emprestava sempre o tom de invalidação de seus desejos? Quantas vezes ao longo de nossas vidas o racismo nos fez categorizar afetos entre desejáveis e indesejáveis? Quantas vezes aceitamos o mínimo de uma pessoa por acreditar que nosso afeto é volátil, e que se alguém dentro dos padrões de desejo social nos quer, então, isso representava um vitória? E quantas vezes sequer percebemos que estão invalidando nossas escolhas e nossos desejos afetivos puramente por racismo?

Quando essas e muitas outras perguntas até mais importante são desconsideradas, as pessoas parecem assumir em alta voz que hoje eu sou incapaz de escolher me relacionar com alguém que represente para mim um afeto real, alguém com que eu quero de fato estar. Se a pessoa com quem me relaciono for negra, a pessoas negras batem palma. Mas se ela é branca, batem o chicote. Se for uma pessoa amarela, a duplicidade dos ataques persistem, pois as pessoas amarelas tanto quanto as não-amarelas dizem que é fetiche, dizem que é uma escolha baseada em racismo, que estamos apenas querendo o corpo amarelo para realizar uma fantasia; enquanto pessoas negras seguem considerando como um desvio de conduta. Querem arrancar da nossa garganta o grito do “É fetiche!!!”, querem encontrar em nós essa afirmação; e por vezes encontram, pois ao colocar isso na nossa garganta encontram o que procuram.

Quando a percepção das dificuldades de uma relação interracial com a pessoa branca produz desconfortos tais que praticamente me vejo na impossibilidade de querer algo mais íntimo-sexual com alguém branco, o olhar e o desejo se volta às pessoas racializadas. E, novamente, esses desejos estão de certa maneira atuando no meio em que habitamos. Sejam nos aplicativos de relacionamento, seja nos espaços geográficos de moradia (e o quanto se trafega por esses espaços) ou seja no espaço de atuação profissional – no meu caso a Universidade e o meio virtual -, ali meu desejo poderá se conectar com pessoas distintas e assim construir laços. Romper com as ataduras socioculturais que constroem os afetos numa lógica restritiva é um movimento sensível, que exige reflexão, mas que pode muitas vezes ser acompanhado por sofrimentos e intensas ressignificações. Não é tão básico quanto talvez imaginam.

Atualmente meus relacionamentos afetivo-sexuais têm sido construídos com pessoas negras e/ou amarelas. No entanto, se um dia eu achei que isso me tiraria do foco da vigilância afetiva e da inquisição do modos de amar, hoje não tenho dúvidas de que não passou de uma esperança alucinada. Novamente, se me relaciono predominantemente com pessoas negras, é como se a leitura racista dissesse que finalmente estou fazendo aquilo que me cabe enquanto prática natural e determinada, e que eu deveria sempre ter feito dessa forma. Toda a noção de escolha e de desejabilidade é descartada se o sujeito amante é negro; ele deve se orientar somente ao afeto negro, ao par negro, pois o “natural” é que não se misturem – essa é a sensação do que andam afirmando por aí. No entanto, se me interesso por qualquer que seja a outra pessoa não-negra estou sendo alienade, fetichista e até racista, por mais bizarra que seja esta última denominação.

No caso de me relacionar com pessoas amarelas, os dizeres não são os mesmos que nas relações com pessoas brancas ou negras. É um misto: ora os olhares de estranhamento varrem nossos corpos, questionando duas racializações diferentes que se encontram numa relação, ora elegem uma dessas partes como aquele que está sendo a predadora. Obviamente que não é a parte amarela a tida como predadora. No construto de uma minoria modelo, pessoas amarelas são posicionadas no lugar de perfeição. São desumanizadas do direito ao erro; espera-se delas sempre uma postura de subserviência e de protagonismo de uma conduta exemplar, dócil, disciplinada e inteligente. São pessoas que sofrem do racismo no Brasil, que sofrem preconceito e que também são objetificadas no lugar de uma hipersexualização. No entanto, ainda assim me parece razoável supor que o preconceito amarelo, que se fantasia de minoria modelo, direcione uma compreensão para a suspeita de que, numa relação interracial entre uma pessoa negra e amarela, a parte amarela será a posicionada no lugar simbólico de autoridade, enquanto a negra no ponto de questionamento: “o que essa pessoa amarela faz com essa pessoa negra?”, “O que essa pessoa negra tem de itneressante para que seja escolhida?” . Ambas as partes são alvos de uma noção de incompatibilidade entre o querer e o escolher. Mas me pergunto porque a parte negra é sempre a suspeita de um fetiche do corpo alheio? Há várias possibilidades, mas pense você, se quiser.

* * *

Se você lembra do começo deste texto, é verdade que ao longo da construção do meu gosto por pessoas, ou seja, falando especificamente da minha atração sexual, eu desenvolvi uma orientação ao cabelo e à pele. Aprendi a gostar de corpos que possuíam cabelos lisos e pele clara. E, para contextualizar de outra maneira, insiro aqui a informação de que sempre gostei de desenhar; e que entre esses desenhos haviam muitos rostos de pessoas que eu nunca nem vi na vida, mas que existiam somente na minha imaginação. Meus desenhos na adolescência e pós adolescência revelam uma marcada ausência de pessoas negras. Quando não desenhava pessoas brancas com seus cabelos lisos e olhos claros, eu desenhava rostos sem face, mas ainda com cabelos lisos. Posteriormente, mas ainda nesse período, começo a desejar pessoas amarelas, e desenho somente aquelas com cabelos lisos.

Seria da ordem de uma grande ingenuidade acreditar que esses direcionamentos para esse tipo de gosto não foram influenciados por uma construção social que posiciona o afeto negro como castrado, mas que aos outros confere o estatus de desejabilidade e dignos de representação. Até mesmo pessoas amarelas, que sem dúvidas enfrentam processos de sexualização desproporcional e de racismo, são posicionadas num lugar de desejabilidade superior ao das pessoas negras.

Apesar de atualmente isso acontecer, é algo muito recente na minha história afetiva me relacionar com pessoas amarelas. Apesar da assimetria social produzida pelo racismo, durante a maior parte da minha vida afetiva pessoas amarelas sempre me trataram com um tipo muito marcado de racismo. Pessoas brancas até fingiam uma falsa correspondência aos meus flertes, mas somente até a página dois. Pessoas amarelas sempre foram bastante avessas a qualquer suposição de flerte, mesmo quando sequer eu tentava um flerte com pessoas amarelas. Lembro-me que no ensino médio, a Karina (uma moça amarela bastante enturmada na sala) sentou na mesa atrás da minha cadeira e posicionou suas mão sobre os meus ombros. Quando olho para trás e para cima com um olhar de espanto, ela logo diz “Calma! Você não achou que eu ia querer namora uma pessoa igual a você, né?”. As demais pessoas amarelas que fui conhecendo eram bastante fechadas às possibilidades afetivas com pessoas negras, mas não raramente namoravam pessoas brancas. Longe de generalizar comportamentos, quero apenas relatar experiências de âmbito pessoal, que vivi ao longo da vida; mas se você quiser compreender o que digo a partir de um olhar mais acadêmico e sistematizado, deixo aqui o convite para você ler o trabalho de Laura Satoe Ueno.

Perto do que já foi no passado, hoje tenho uma noção bastante desenvolvida dessa construção social do meu gosto, e essa noção mudou à medida que eu me politizei e questionei as maneiras de amar às quais me submeti e fui submetide a viver. Hoje, a pele negra e o cabelo crespo me atraem tanto quanto era com a pele branca e com o cabelo liso. Mas, reiterando, essa passagem não foi linear como algumas mentes apressadas tendem a concluir. Não se dorme com uma produção social do gosto e se acorda com outra. É um processo de desconstrução e de transformação de dentro para fora, de fora para dentro; precisa-se [re]estruturar a própria percepção do desejo. É um desconhecer-se para se [re]conhecer.

Nesse processo de redução do interesse pelo corpo branco (ou de aumento pelos receios do contato com eles), mesmo quando ainda me relacionava com pessoas brancas, eu fui me abrindo para o não-branco. Concomitantemente, foi também me associando a movimentos de politização racial, entre eles obviamente o movimento negro, mas também o amarelo. Nesses movimentos eu construí e construo laços, contatos, conversas e desejos. A pessoas amarelas que conheci foram aquelas que se criticavam acerca do patriarcado e do racismo, muitas delas sentiam um certo distanciamento de seus gostos em relação a pessoas brancas (principalmente o homem cis branco), algumas evitavam até pessoas amarelas (sobretudo evitavam homens cis-hétero). Logo, eram pessoas que, dentro dos espaços que frequentavam, construíam mais vínculos afetivos sexuais com pessoas negras. As pessoas negras, por sua vez, nem sempre estavam abertas a relacionamentos não monogâmicos (que é o tipo de relacionamento que vivo), logo, construir relações com pessoas negras [nos meios que eu costumava/costumo frequentar] não era/não é sempre a coisa mais corriqueira. Adicionemos a isso o fato de que os ambientes que predominantemente frequentei e frequento ainda são, em grande medida, embranquecidos.

Nada disso serve para dizer que o fato de eu não me relacionar com pessoas negras em comparação com outras raças/etnias é da ordem do impedimento social exclusivamente. Mas sim para destacar que o processo de desconstrução da minha afetividade e atratividade está em andamento. Não é algo dado nem estabelecido como estável e imutável. E justamente isso que machuca quando pessoas me acusam de ter um “gosto racista” [?] por me relacionar com mais pessoas não-negras que negras; e, no contexto atual, numericamente com mais com pessoas amarelas.

Novamente, ao questionar o corpo negro a partir do fetichismo e do racismo, e somente isso, e somente o negro, acontece a invalidação de um desejo, de um contexto e de muitas experiências. Sem dizer que quando se levantam as acusações elas sempre sugerem que, no meu caso, sou incapaz de pensar sobre meus afetos hoje em dia. Além disso, fica implícita a noção de que a outra pessoa também não possui autonomia; como se houvesse um processo forçado em que uma parte lança o predatismo e a outra é por ele capturada, sem qualquer poder de escolha. No entanto, se for num aplicativo de relacionamento, o Match depende das duas partes para acontecer, ninguém é obrigade a aceitar; se for numa rede social, as partes se conversam, surge o interesse e se relacionam; se for no presencial-cotidiano, o mesmo se passa: pessoas podem pensar sobre suas escolhas também, acredite! Ser racializada não faz da pessoa um corpo insensível incapaz de sentir suas emoções.

No imaginário supremacista branco, que sem dúvidas também permeia o ideal social de pessoas não-brancas, coloca -sea pessoa branca como algo tão idealizado e tão desejável, que apesar de termos como palmitagem, não dizem que a pessoa negra tem fetiche na branca. Pois nessa lógica o branco é posto como a norma, como o universal, todo e qualquer desejo é validado como desejo, como interesse genuíno por algo que deve ser invariavelmente interessante. Embora seja a branquitude que fetichiza, que constrói o desejo descartável. Mas porque quando essa lógica se aplica à casais interraciais racializados (ex.: pessoas negras com pessoas amarelas) a parte negra é aquela que fetichiza? Existe uma reflexão no espelho da branquitude? Ou de fato isso acontece?

O que quero dizer, por fim, mas sem concluir coisa alguma, é que as acusações alívio de um auto-ódio parece ter mais importância que a compreensão das dinâmicas afetivas sociais e individuais. Discursos intimidadores e recheados de constrangimentos parecem predominar quando se questiona a racialidade e a interracilidade das relações. É desgastante, mesmo não estando em uma relação com uma pessoa branca, ter de manter-se em estado contínuo de vigilância.

Certa vez, por postar mais de um storie no Instagram em que eu estava com pessoas amarelas, uma pessoa amarela me perguntou “O que está acontecendo, você está fazendo parte de alguma comunidade nikkei?”. Coisa que nunca me questionaram quando sou a única pessoa negra entre outras pessoas brancas. São falas e apontamentos que indireta (e às vezes diretamente) estão dizendo que ali não é o meu lugar, que pessoas negras devem permanecer na senzala, ou na Casa Grande servindo à branquitude; mas que, num português mais polido, dizem isso de outra forma, sugerem que nossas atrações devam ser predominante por pessoas negras, pois, se não é, tem algo errado.

Curiosamente, pasmem, nesses meios digitais mais politizados pessoas amarelas se interessam por mim. Você acredita que não raramente elas que vem puxar assunto comigo? Pois é, mas se eu topo uma conversa, ou se a gente desenvolve uma interação mais íntima, ainda assim sou eu a pessoa que estou fetichizando aquele corpo? Ou que, no mínimo, estou baseando minhas escolha num gosto racista? Eu deveria, então, sempre me impedir de vivenciar esses afetos que aparecem? Eu deveria, novamente, me cobrir de receios, desta vez receios das acusações, e assim evitar qualquer interação de cunho afetivo-sexual com pessoas não-negras, nesse caso amarelas? Nisso temos novamente as pessoas querendo nos ensinar a amar, querendo validar ou invalidar nossos sentimentos. Novamente, querem posicionar o afeto negro na lógica racial de que ele é sempre o selvagem, desumanizado e inconsequente, que não escolheu por si o afeto, mas que foi movido por instintos. Acontece que, ainda que fosse sem perceber, aplicam essa mesma lógica a si mesmes quando são pessoas também racializadas.

Soa-me agressivo ser sempre a pessoa que deve racionalizar se posso sentir o desejo que sinto; é violento eu exigir de mim mesme que devo sempre pensar se posso postar uma, duas ou três fotos com diferentes pessoas amarelas ou não negras nas redes sociais porque se faço isso estou me infiltrando na colônia. Se a pessoa amarela opta por não se relacionar com pessoas brancas nem amarelas, mas somente com pessoas negras, por exemplo, ela está fazendo uma escolha autônoma; se a pessoa negra tem mais de uma relação com pessoas amarelas, é o racismo modelando o gosto, é uma falha nos critérios de atração. Não sei, me parece que algo não está muito coerente nisso tudo. Quem pode escolher? Eu não posso? Preciso da aprovação novamente? Devo assumir um limite numérico de uma pessoa racializada por vez, do contrário meu gosto estará imitando um padrão que resulta em seleção racista?

As relações que tive e que tenho com pessoas negras são relações muito saudáveis, algumas delas são muito especiais para mim. Não haver o peso da inquisição racial já auxilia na fluidez das relações. E não dou ênfase a elas nesse texto porque ainda não é totalmente esse o foco aqui – uma outra escrita trará essa dimensão do meu afeto. Além disso, penso que, de fato, afrocentar os afetos não é nem nunca será por si uma garantia de estabilidade emocional da relação, ao menos não na minha perspectiva. No entanto, no contexto deste escrito, não haver o peso de uma série de julgamentos e de invalidações permite que eu possa viver outras camadas da relação que em outros casos são interditadas pelos receios de monitoramento e contabilidade das relações por terceiros, bem como pelo ato de desmentir e invalidar aquilo que eu sinto.

Considerando minha vivência pessoal numa sociedade racista, eu compreendo, do meu lugar social, o que é ser uma pessoa racializada em relação interracial. O medo de estar na posição de utilidade descartável, o sentimento de ser apenas um usufruto passageiro e excitante e o sentimento de estar sempre em risco de uma substituição são exemplos dos turbilhões emocionais que podem passar no pensamento e afetar os sentimento de quem compartilha desse lugar afetivo-social nas relações interraciais. Eu logo empatizo quando esse sentimento participa nas percepções de pessoas negras mas também, por exemplo, de pessoas amarelas com as quais me relaciono. Não seria eu a pessoa violenta que desmentiria o que alguém está ou não está sentindo. No entanto, também não acho descabido que se deva pensar com mais delicadeza a respeito de como comunicar seus sentimentos, incômodos e inseguranças quando se está frente a frente conversando com quem gostamos, num ato que deveria se de acolhimento e busca de compreensão. Apertar o pescoço de alguém e ao memso tempo esperar que algo seja dito com nitidez é só uma demonstração de que as palavras são o que menos importam. Se entramos em contato com pessoas fragilizadas por um cultura racista, para que seremos ainda mais duras com elas? Quem está preparade para comunicar e para ouvir a vulnerabilidade das pessoas com as quais se relacionam?

Certos estados de vigília constante e de automutilação subjetiva são bastante agressivos e profundamente cansativos. Eu só não queria ter de continuar a viver meus afetos à base do receio, um receio que é criado a partir do outro e que, sim, me afeta. Só queria poder amar com mais suavidade, e que para além de todos os impedimentos psicossociais (financeiros, geográficos, subjetivos como desgosto pela minha aparência) eu pudesse experimentar uma relação na qual eu não ocupasse nem o lugar de escravo, nem de réu, nem de objeto descartável nem objeto mudo e apático. Parem de querer dizer o que eu posso sentir e de querer determinar o modo como esperam que eu sinta meus sentimentos! Não obrigo ninguém a ficar, mas, se ficarem, que ao menos me respeitem.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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