“Estar consciente vai além de estar acordado e atento: requer uma sensação interna de um Self no ato de conhecer”.
[António Damásio – 1999]

“A primeira constatação a ser feita ao pensarmos na questão da consciência é a de que, apesar de “todos sabermos como é”, na verdade não sabemos “o que é” a consciência, e nem mesmo podemos afirmar se o “como” de um é igual ao “como” de outro”.
[Maurício Marx e Silva et al. – 2003]

 

A P R E S E N T A Ç Ã O

Este texto tem por principal objetivo levantar questionamentos acerca da consciência e da ideia de consciência que construímos ao longo de nossas vicissitudes. Assim, a grande questão é: somos quem realmente achamos que sempre fomos? Todavia, para responder essa questão é preciso entender algumas ideias sobre identidade e sobre o processo de construção do pensamento. Por essa razão é inevitável a abordagem acerca do que é a consciência – que nesse texto se apoiará no ponto de vista da neurociência.

Após contextualizar uma possível abordagem acerca da consciência, o texto seguira com o propósito de dialogar em relação ao que aqui é chamado de Nomeação Involuntária da Consciência, que, resumidamente, pode ser entendido como o processo de transferência de nossa identidade para uma entidade à qual nomeamos ao longo de nossa vida – seja por razões culturais percebidas ou não. Conceitos como alucinação e religião serão empregados para direcionar a discussão. Por fim, cabe dizer que, para deixar o trabalho mais compreensível, a linguagem adotada aqui será mais informal – no sentido de convidar o leitor e a leitora para o debate.

*  *  *


Os temas abordados a partir daqui, conforme os seus títulos e subtítulos, serão:

PARTE I
Contextualização

PARTE II
Ciência & Existencialismo – apesar de tudo, não somos tão especiais assim

PARTE III
Processos mentais da nomeação da consciência – Construindo uma identidade

  • Especulações filosóficas e psicológicas – perguntas pertinentes
  • Nem sempre o que vemos é o que ‘juramos’ ver – as aparências enganam!
  • Deus, a Cultura e a Consciência – E se…

PARTE IV
O nome da sua consciência é ____________.

PARTE V
Referências


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P A R T E  I

Contextualização

Falar sobre a consciência sempre foi um desafio quase que metafísico. Certamente que no senso comum essa palavra, tão presente no dia a dia, pode representar algum tipo de “forma existencial” que não necessariamente está presa ao corpo, mas que pertence a um outro “plano” da vida. Por outro lado, cientistas têm outra visão a esse respeito, porém, nem por isso as respostas são conclusivas. Dessa forma, é importante se perguntar: o que é a consciência?

Não fique com receios de dizer que não sabe, ou que sabe, mas não consegue explicar. Na verdade, a consciência existe, com algumas imprecisões sobre sua definição científica, mas com muito mais embasamento que um dia se pôde pensar. Em um trabalho acadêmico, publicado ainda em 2003 pela Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, já se havia uma motivação muito grande para continuar no caminho de busca pelo conhecimento acerca desse tão badalado conceito. Nesse sentido, conduz-se ao entendimento, mesmo que de forma introdutória, porém com um bom direcionamento, do que se sabe atualmente sobre esse tema. Todavia é importante destacar que ainda se enfrentam imprecisões conceituais referente às possíveis interpretações semânticas da palavra “consciência”. Pode-se perceber que, a depender do idioma considerado, existem diferentes termos referenciais àquilo que chamamos de consciência. Como destaca Maurício Marx e Silva et al. (2003), nos últimos anos

[…] alguns neurocientistas têm acrescentado insights esclarecedores sobre a questão da consciência. A primeira evidência neurobiológica interessante vem apoiar a distinção que existe na língua inglesa entre wakefulness (estar consciente no sentido de vigília, em oposição ao coma, como em “bater a cabeça e perder a consciência”), conscience (consciência moral, superegoica, como em “ter um peso na consciência”) e consciousness (consciência no sentido da sensação de existir e de estar experienciando um dado momento, que inclui a sensação da passagem do tempo). Infelizmente, na língua portuguesa, os três conceitos podem ser expressos pela palavra consciência, o que contribui para uma indistinção.

Assim, vale a pena dizer que nesta publicação usarei a palavra consciência no sentido de sensação de existir, ou, aludindo à terminologia utilizada pelo neurocientista António Damásio (1996), seu uso se dará no sentido de sensação do que acontece. Mesmo assim, não utilizarei termos técnicos demais, nem terminologias já difundidas no meio acadêmico; antes, lançarei mão de algumas adaptações que fiz [livremente] para facilitar a conversa.

Para um conhecimento mais aprofundado, também é válida a leitura de uma publicação feita recentemente – em junho de 2018 – pela revista Scientific American – chamada What is Consciousness? [O que é Consciência?], escrita por Christof Koch (presidente e diretor científico do Allen Institute for Brain Science, em Seattle). Como aprender nunca é demais, que tal visitar inúmeras publicações que também abordam essa temática do ponto de vista mais acadêmico e científico? Ademais, visitando o endereço virtual tem-se acesso a muitas publicações, feitas por renomados pesquisadores(as) neurocientistas/neurologistas, como Oliver Sacks, Antonio Damásio, Gil B. Carvalho, Norman D. Cook e Harry T. Hunt.

P A R T E  I I

Ciência & Existencialismo – apesar de tudo, não somos tão especiais assim

Tudo bem se esse título causar um certo desconforto em uma primeira leitura. De acordo com o que se propaga pela mídia mundo afora, essa não parece ser a melhor escolha para um subtítulo. Mas não existe outra da qual eu consideraria pertinente nesse contexto. Talvez esse estranhamento ao ler que não somos tão especiais assim esteja diretamente ligado ao fato de que o ser humano parece ter a insaciável necessidade de criar algo que de uma forma ou de outra os torne especiais para algo ou alguém – característica presente desde muito cedo na filogenia do Homo sapiens mostram a nossa necessidade de abstrações (Rossano, 2006).

Seja por narrativas religiosas, seja for produções cinematográficas em que um único exemplar da espécie humana se arrisca para salvar o planeta da colisão com um meteoro, insistimos em reafirmar uma ideia de supervaloração que concede ao Homo sapiens a persistente ilusão de que não somos animais, ou, quando “humildemente” nos vemos assim, dizemo-nos racionais (Rocha, 2006). Acho que não custa entender que somos animais com propriedades intelectuais nem melhores nem piores que outras espécies, apenas somos diferentes. Mas parece ser justamente dessa extrapolação do senso de superioridade que o animal H. sapiens se tornou humano, ou seja, capaz de existir enquanto indivíduo gregário dotado de subjetividades psíquicas e de uma capacidade extraordinária de imaginar a própria realidade e, a partir disso, tentar modificá-la. Para algumas crenças, inclusive, o poder imaginativo cria uma extensão para além do corpo, que parece monitorar o pensamento humano a partir de outro ponto localizado no espaço externo, mas que se comporta como um potencial observador interno das pulsões humanas [para saber mais, ver Hunt (1996), O’Connell & Dunbar (2005), Premack (1976) e Premack & Premack (1994)].

E é nessa brecha da ideia de existencialismo que entra em cena o que – independentemente do valor semântico – chama-se de consciência. Mas, antes que se cometa o equívoco de se inferir que a consciência não faz parte do nosso corpo, vale lembrar que o ganho científico a partir de pesquisas mais aprofundadas

[…] desprendeu-nos de concepções anteriores elusivas, como as de que a consciência era simplesmente o produto do cérebro todo em funcionamento, eximindo-se de buscar suas especificidades, o que Searle (1997) caracterizou como “resolver um problema através de negar a sua existência”, ou propostas dualistas, que situam a consciência como sempre “algo que está além”, dependente do funcionamento neural, mas não equivalente a este funcionamento mesmo, como criticaram Churchland e Schwartz, entre outros.

[…] Evidências recentes sugerem que tanto a sensação de continuidade da consciência quanto a impressão de que ela preceda a tomada de decisão seriam ilusórias. Também a antiga crença de que a consciência fosse uma função dependente de um funcionamento cortical global tem sido questionada. A evolução da consciência a partir dos mecanismos de homeostase, como um feedback sofisticado dos processos mentais que permite a detecção de erros nas predições realizadas pelo cérebro sobre o Self e o ambiente, com a possibilidade de correções em partes do processo mental sem a necessidade de descartá-lo por inteiro, são exemplos das modernas compreensões sobre este tema, e que têm importantes implicações para a clínica psicoterápica.” [Para saber mais, ver também “What is the consciousness?”]

Não sabemos tanto quanto achamos que sabemos. Essa é a uma suposição que deixo aqui. Provavelmente, por não se entender muito bem a própria construção de pensamentos e nem saber claramente como eles se estabelecem na mente, o ser humano passou a nomeá-los – quando algo ganha um nome e uma simbologia, ele passa a ser passivo de inteligibilidade. Para tanto, constroem-se formas e conceitos que tendem a aproximar o sujeito o máximo possível daquilo que se acredita poder de alguma forma representá-lo. Nesse movimento (talvez frenético) de ideias, e por razões muito questionáveis e amplamente estudadas, criamos nomes inclusive para aquilo que está em nós – como o é com a consciência; mas que, por uma necessidade para a qual levantarei questionamentos, transportamos a ideia de consciência para outras entidades – seja política, social, cultural, ou religiosa – e questionar isso é o principal objetivo desse texto.

A espécie humana dispõe de mecanismos neurológicos que “favorecem”, ou simplesmente permitem, que possamos adquirir novos conhecimentos e habilidades ao longo da vida que não necessariamente estão previamente registrados em nosso material genético. Quem também fala isso é o paleontólogo e biólogo Stephen Jay Gould, autor do livro Ontogeny and Phylogeny [Ontogenia e Filogenia], dizendo, resumidamente em uma frase, que […] o homem é programado para aprender comportamentos, mais do que reagir via um código instintual determinante impresso.

Sendo claro e sem querer ofender, é importante sabermos que o ser humano não é uma unidade “bio-espiritual” em seu sentido mais comum, que é parte “espírito” e parte matéria. Estamos mais próximos metaforicamente de um componente eletrônico sistematizado, com comandos predefinidos, porém modeláveis, que de criaturas criadas para satisfazer desejos de um alguém sobrenatural. Funcionamos como uma maquinaria que se coordena por algoritmos bioquímicos, percebendo e reagindo a estímulos externos e internos, que são traduzidos por diferentes vias fisiológicas. Junto a isso, somos também influenciados pelo meio ambiente ao qual estamos inseridos. Entretanto, caro leitor e cara leitora, não fiquem tristes por saber que não temos nada de especial além da falsa ideia de que somos especiais – ainda que essa “ideia”, ao que sabemos, não ocorre em nenhum outro animal. Acontece que nossa capacidade de superestimação pessoal e grupal às vezes nos compele exageradamente a conceituar a nossa espécie como a mais desenvolvida – o que não é bem visto, pelo menos não na biologia. Em vez desse preciosismo humano, uma boa sugestão é buscarmos compreender o que realmente nos torna humanos e o que nos faz querer ser tão especiais. Compreender que somos apenas animais é muito importante para darmos seguimento aos próximos parágrafos – e não para por aí: essa compreensão os ajudará sobremaneira a enxergar a vida e a humanidade com mais honestidade e precisão, além de muita transparência e imparcialidade. Assim, se quiser saber um pouco mais sobre nossa falsa ideia de superioridade, pode-se iniciar essa jornada nesse tema a partir da leitura do texto Mecanismos de Controle Humano – publicado no Blog Devaneios Filosóficos (Medrado, 2018).

 

P A R T E   I I I

Processos mentais da nomeação da consciência – construindo uma identidade

Depois de falar brevemente sobre a consciência do ponto de vista científico e também sobre a nossa provável insignificância, falarei sobre o nome que damos a tudo isso, mesmo que não os percebamos em um primeiro momento. Mais uma vez levantaremos pontos importantes da constituição humana, com respaldo de argumentações científicas, mas com alguns questionamentos particulares interessantes.

Especulações filosóficas e psicológicas – perguntas pertinentes

Não é porque uma história é bem propagada e aceita que ela se torna necessariamente uma realidade – no mínimo, a realidade pertence primariamente ao seu imaginador. Até onde nós, cientistas, podemos constatar, não existe uma “força maior” que sustente a vida e que controle de forma seletiva e com objetivos bem delineados cada atitude dos seres vivos; tampouco há alguém que guie os nossos passos e os nossos pensamentos que não seja algo que resida em nós mesmos. Daí surge um questionamento: Qual a sua opinião a esse respeito?

Se for conforme citado anteriormente, e a história humana feita nas narrativas fantásticas estiverem equivocadas, eu gostaria de te perguntar:

(a) alguma vez você acreditou que uma voz soprou nos seus ouvidos aquilo que você deveria ou não fazer?;

(b) em algum momento você se sentiu vigiado por alguma entidade, à qual possivelmente você chamou (ou chama) de Deus ou de JesusAlláh, Brahma, Vishnu, Shiva, Odin, Ogum, força maior, etc.?;

(c) você sente constantemente que o seu “eu” interior é uma parte independente do seu corpo, mas que precisa deste para se manifestar? O que é esse tal de “eu“?

(d) quantas vezes você acreditou que por sorte você escolheu a coisa certa a ser feita, mesmo que essa “coisa certa” já houvesse dado errado antes, inúmeras vezes?

(e) quando você pensa em quem você é, qual é a forma que você se enxerga e como, e a partir de quê, você costuma se definir?

(f) sobre essas coisas – entidades, sentimentos e formas -, qual é o nome que você dá a tudo isso?

Expandindo a ideia do que vimos na Parte II, a Ciência tem mostrado que a consciência é uma manifestação de sinais que ocorrem no nosso próprio corpo, e que funciona quase como uma atualização constante dos nossos aprendizados – embora de forma não contínua [como veremos a seguir] (Damásio, 2005). Essa atualização inclui os reparos de tomadas de decisões e memorizações que, ao longo de nossa existência, mostraram-se mais “úteis/adequadas” para o modo de sobrevivência do organismo; e que, muito embora ocorra dentro de um conjunto de algoritmos comum à espécie humana, o mecanismo de atualização funciona como uma combinação muito bem desenvolvida de feedback (ou seja, de retroalimentação), que varia de indivíduo para indivíduo. O conjunto dessas variações acumulada ao longo da vida do sujeito é, às vezes generalizado pelo senso comum como sendo personalidade, gênio, alma, jeito de ser, ou qualquer outra coisa de semelhante valor semântico – mas que em si representa a constituição própria do ser enquanto humano, dotado de uma identidade.

Algo que salta aos olhos é que, seja como quisermos chamar a consciência, ela é modelada desde muito cedo no desenvolvimento humano conforme uma série de eventos e fatores; mas insistimos em acreditar que nossa suposição de liberdade nos confere plena autonomia sobre todas as nossas atitudes – inclusive aquela que nos induz a supor que conhecemos nossa consciência em todas as suas “dimensões”.

Em um sistema que decide tudo por nós, mesmo antes do nosso nascimento, qualquer prenúncio de liberdade é uma fraude. Nascemos programados para aprender coisas; contudo, essas “coisas” são escolhidas primariamente por outras pessoas, que não nós – isso quando não ocorre a partir de algoritmos bioquímicos, que escapam a nossa percepção subjetiva. Além disso, como é característico da espécie humana, utilizamos sempre de uma informação anterior – criada por um outro ser humano – para entendermos o presente e modificarmos ou não o futuro. Todos esses aprendizados já foram nomeados antes, e nos apropriamos disso para prosseguirmos enquanto indivíduos e enquanto sociedade.

Nesse raciocínio, se somos o conjunto de nossas experiências, somos também o conjunto de nomes e conceitos que atribuímos a essas experiências – mesmo que tais atribuições não sejam originalmente nossas. Somente um ser humano bastante desacautelado (ou inconsequente) seria capaz de sequer cogitar a hipótese de que somos totalmente livres e isentos de influências para escolher o que será absorvido ou não pela nossa consciência. Algo mais coerente, ao meu ver, seria tentarmos compreender aquilo que absorvemos e, então, aprendermos a lidar com essas informações e decidirmos se e como as usaremos ou não.

A grande saída encontrada para isso tudo foi a de dar nomes a tudo. “Se não sabemos ou não entendemos alguma manifestação humana, basta que criemos um nome, coloquemo-la em uma caixa e pronto, não precisaremos mais nos preocupar em decifrar seus códigos“. E isso foi feito. Dessa maneira, por que não considerarmos a hipótese de que possa ocorrer uma Nomeação Involuntária da Consciência? Para facilitar o nosso entendimento, vamos pensar na consciência como um conjunto de portais, uns mais acessíveis, outros menos, e outros até desconhecidos.

A nossa sensação de existência – fazendo alusão à proposta teórica de António Damásio – é o que chamarei de consciência manifestada, que corresponde àquilo que podemos sentir sobre nosso próprio pensamento, bem como ao acesso voluntário às nossas memórias de longo prazo (que diz respeito a tudo que, de alguma maneira, podemos nos lembrar). Da mesma forma, temos a consciência não-manifestada – que compreende todo o conjunto de atuações do nosso pensamento e processos mentais aos quais sequer temos acesso ou podem ser percebidos por vias naturais, mas que interage constantemente com a consciência manifestada enviando informações e interligando o fluxo reflexivo e dando acessos periódicos aos diferentes campos da mente e da memória.

Talvez, o mundo da fantasia e dos contos de fadas façam tanto sucesso nas narrativas humanas pelo simples fato de que vivemos constantemente uma fantasia, mas a chamamos de “realidade” para que o viver seja algo “mais divertido”, ou, pelo menos, mais dotado de significados. Falando de forma didática, podemos pensar que nossa percepção do mundo acontece sempre que nossos sentidos corporais detectam algo que será, então, processado e gerará uma resposta. Isso nos leva a entender que, como diz a primeira frase desse texto, “estar consciente vai além de estar acordado e atento: requer uma sensação interna de um Self no ato de conhecer”. Para além disso, os nossos sentidos atuam o tempo todo; se estamos vivos, estamos respirando, sentindo o meio ambiente e, geralmente, enxergando, ouvindo e escutando; tudo isso é traduzido por regiões encefálicas e distribuído em diversas redes e mapas neuronais que armazenarão e correlacionarão as informações. Entretanto, a maneira como os estímulos e sinais são percebidos e traduzidos em forma de pensamentos pode ser leve ou severamente distorcida. Por vezes, a consciência manifestada é chamada no meio acadêmico de Self autobiográfico ou de consciência autorreflexiva, e sobre ela

[…] neurocientistas como Olds e Deacon argumentam que, nesse modelo, ela […] representa simbolicamente os dados obtidos via percepções, assim tornando-os independentes de sua fonte. Assim se cria uma “cena virtual”. A comparação é feita com uma videocâmera. Se não há memória (ou fita) na câmera, só temos uma imagem fugidia. Se há memória, seja fita ou digital, então a cena pode ser recuperada independente do ambiente que a gerou, ser manipulada, editada. Se por um lado isto aumenta imensamente o que se pode fazer com estes dados, também abre o caminho para as distorções, as defesas, as reconstruções.

Nesse aspecto, como você encara os questionamentos de a a f, feitos anteriormente? Qual mais você acrescentaria à lista? Será que eles têm respostas claras? Se sim, quais seriam? Se não, por quê? Elas serão tangenciadas à medida que prosseguirmos nos próximos parágrafos.

Nem sempre o que vemos é o que ‘juramos’ ver – as aparências [às vezes] enganam!

Suponhamos que, com o passar do tempo, essas informações que são percebidas, realocadas e reinterpretadas temporalmente aconteçam sem que tenhamos a real noção de que estão acontecendo. Isso possivelmente nos levaria a dizer que há algum ponto em que o acesso à consciência não é tão claro; nesse ponto estamos caminhando para a nossa região não-manifestada – e dizer que ela não é manifestada refere-se apenas ao fato de que não a percebemos, ainda assim ela continua atuando (ela simplesmente não se manifesta no plano perceptível do sujeito).

Ainda falando da nossa capacidade de interpretar o mundo, também suspeito de que temos a ilusão de haver apenas uma forma organizacional em nossa mente. Geralmente, isso facilita o processo de nomeação da consciência, uma vez que tendemos erroneamente a acreditar que ela funcione de forma contínua, e em apenas um ponto localizado “no meio da nossa cabeça”; quando, na verdade, mais prudente seria dizer que se trata de um sistema complexamente integrado, baseado em leituras de diferentes áreas do encéfalo, mas que somos mentalmente incapazes de distinguir esse processo, uma vez que ele ocorre em milésimos de segundo – e esse é um intervalo de tempo tão pequeno que automaticamente classificamos o evento como contínuo. De forma mais detalhada, pode-se dizer que

[…] o cérebro se comporta como se tivesse um sistema de escaneamento que recorre todo o córtex cerebral em direção rostro-caudal, enlaçando toda a informação sensorial em intervalos de 12,5 milissegundos. Todo esse processo é discreto, descontínuo e, no entanto, percebemos o mundo externo de maneira unificada, como um continuum no tempo. Isto significa que as imagens se criam uma após a outra tão rápido que as percebemos tal como sucede com uma projeção cinematográfica. Ou seja: os estímulos procedentes de todos os sentidos se enlaçam, não em um lugar no cérebro, já que não existe um observador interno e nem uma tela para projeção, mas, sim, no tempo, que é determinado pela frequência de escaneamento e pelas propriedades elétricas intrínsecas dos neurônios (Gray & Singer, 1999; ver também Cock, 2008).

Por essa característica no mínimo dual da consciência [manifestada e não-manifestada], somada ao fato de que não conseguimos isolar os eventos que ocorrem no cérebro – antes os percebemos de forma continuada -, suspeito de que nós rejeitamos qualquer noção de nossa própria consciência enquanto parte de nós; e, por não conseguirmos compartimentalizá-la, atribuímos a ela um caráter “uno e pessoal”; por fim a chamamos de qualquer outra coisa que seja mais cognoscível. Mas não é descabido entender que as aparências [às vezes] enganam.

Deus, a Cultura e a Consciência – E se…

O ser humano só pode ter alguns “problemas”. Resultante da necessidade de querer explicar tudo que se passa em nós, suspeita-se fortemente de que tenha sido a partir daí que iniciamos todo o misticismo, tão presente em praticamente todas as culturas humanas conhecidas (Rossano, 2006; Bloch, 2008). Nessa perspectiva, e de forma ainda mais incisiva e penetrante, está a ideia de religião e religiosidade – a qual tem ganhado tanta força na humanidade provavelmente pelo fato de ser uma experiência da qual não podemos questionar diretamente enquanto formas de percepção. Não posso provar que você sente ou não sente o que diz sentir, ou que ouve ou não ouve o que diz ouvir; ainda que isso fosse possível, é inconcebível (até o presente momento) dizer com clareza e exatidão aquilo que de fato se passa na mente alheia. Raramente conseguimos relatar um sonho ou um sentimento tal como se passa (ou se passou) em nosso próprio pensamento – o que conseguimos é traduzi-los em códigos interpretáveis; mesmo assim, não podemos garantir que a informação chegará e será processada pelo receptor da maneira que a enviamos. Adicionado a isso está o fato de que a memória pode ser, e geralmente é, alterada/editada ao longo da vida do indivíduo a partir de modificações nas vicissitudes desse (Svoboda et al., 2006).

Poderíamos, sem perceber, chamar a nossa consciência de várias coisas? Ainda, você já considerou a possibilidade de estar chamando todo esse processo complexo de apenas um nome? E se tudo o que representa e significa a consciência você estiver chamando, por exemplo, de Deus? [Essa nomeação pode acontecer para vários deuses ou entidades diferentes; usei a palavra Deus simplesmente por ser mais difundida e mais compreensível no Ocidente.] Quando não, essa nomeação pode ser direcionada a inúmeras subjetividades, podendo, inclusive, ser nomeada de “eu”, “alma”, “força maior”, etc. Assim, enfatizando essa a característica da cultura ocidental fortemente arraigada na religião sobretudo cristã, usar o exemplo de “deus” não foi por acaso.

Em aspectos psicológicos, dar um nome específico à nossa consciência pressupõe o aniquilamento da possibilidade de autoconhecimento que poderíamos desenvolver, seja qual for esse nome. Quando dizemos que Deus habita em nós e que ele conhece todo o nosso pensamento e direciona nossas ações, de certa forma não estamos mentindo. Mas, na contramão do que esperaria a maioria dos religiosos, isso não passa de uma camada artificial que reveste aquilo que sabemos (ou poderíamos saber) de nós mesmos. Em alguns casos, para algumas pessoas [senão para a maioria], esse revestimento é tão opaco e tão grosseiro que se passa a acreditar que de fato Deus está na pessoa e que ele a conhece e a governa. Mas, pense, se você retirar o revestimento “Deus” e mantiver somente a consciência, de fato ela estará onde você estiver e, enquanto você existir, ela existirá também. Logo, tudo não passa de uma ilusão nominal. Na pouco improvável existência de deuses, supomos acreditar que eles significam e ressignificam a nossa constituição mental – isso nos dá a sensação de que eles sejam tão reais quanto a chuva que nos molha – afinal, tudo é também uma percepção de estímulos – transduzidos por algoritmos bioquímicos e apresentados como respostas a sinais do mundo puramente físico.

Mas seria demasiado frio considerar tudo isso como um rearranjo molecular, que codifica e descodifica estímulos e respostas. O ser humano tem a capacidade de alucinar, e praticamente todos fazemos isso ao longo de nossa vida. Alucinar poderia ser resumido como a perturbação psicossensorial correspondente à projeção de fenômenos subjetivos no campo objetivo, caracterizados por: (I) qualidade sensorial do fenômeno, (II) espacialidade e (III) crença errônea na existência do estímulo sensorial (Pierón, 1996, p. 20). Ou, dito em outras palavras, alucinação é uma percepção sem objeto (Campos & Coelho Fr, 2002). Ainda segundo Campos e Coelho Jr.,

a teorização metapsicológica de Freud trata da questão da alucinação desde os estudos sobre a histeria, no início da psicanálise. O referencial que se instaura desde então, sendo sistematizado no “Projeto para uma psicologia científica” e retomado no capítulo VII de A interpretação dos sonhos, é o da satisfação alucinatória do desejo, baseado nas noções de vivência de satisfação e prova de realidade. De forma resumida e esquemática, trata-se da revivência de uma situação prazerosa por meio de um investimento pulsional regressivo do sistema Perc.-Cs., burlando a prova de realidade. Esse modelo serviu para a compreensão das alucinações conversivas das histéricas, para o mecanismo onírico e para as alucinações positivas em geral.

O mecanismo da alucinação, portanto, confunde-se com a própria natureza do aparelho psíquico: a busca de vivência de satisfação. Com os desenvolvimentos e reformulações metapsicológicos instaurados a partir da noção de narcisismo, um segundo modelo de alucinação se configura na teorização freudiana. Trata-se do modelo da recusa da realidade, trabalhado em textos como “O fetichismo” e “A negação”. Nesse caso, uma percepção angustiante – cujo protótipo é a descoberta da castração da mãe – não é reconhecida enquanto percepto. Dá-se, então, a recusa ou denegação (verleugnung). Nessa situação o Ego cede ao desejo do Id em detrimento da realidade. É, pois, o protótipo da alucinação negativa.

 

Chamar a consciência de “Deus” é, por assim dizer, uma alucinação; que serve, entre outras coisas, como um conforto ilusório, mas temporário, o qual nos separa momentaneamente daquilo que somos e do que não sabemos que somos. Não há Deus que exista e resista quando um Homo sapiens decide arriscar uma olhada para dentro de si. Dentro de cada pessoa não há lugar físico para um observador atrevido e invasivo – esse lugar e esse posto são puramente imaginários. Se ele parece estar lá, a culpa é parcialmente nossa por permitirmos a sua estadia, e totalmente nossa se, sabendo disso, ainda o registramos em cartório, com direito a nome e sobrenome. Mais uma vez, dar um nome específico à nossa consciência pressupõe o aniquilamento da possibilidade de autoconhecimento que poderíamos desenvolver, seja qual for esse nome.

Assim, relembrando o primeiro tópico desta Parte, se é verdade que a nossa consciência atualiza nossas experiências ao longo do tempo – eliminando possíveis erros de tomadas de decisão – por que não destacar a possibilidade de isso também ser usurpado pela ideia de Cultura, sobretudo a religiosa? E se somos levados a acreditar que os deuses sabem o que é melhor para nós justamente porque acreditamos por nomeação involuntária que eles são a nossa consciência manifestada – a qual de fato funciona como nossa capacidade de conhecimento de tudo que nos cerca, inclusive daquilo que se passa dentro de nós?

Somos livres para ser o que quisermos, desde que acreditemos nisso e não reivindiquemos o nosso direito de escolha” – a isso chamam de livre-arbítrio – algo importante na cultura religiosa. Nascemos destinados a ser crentes em algo, mesmo que não acreditemos profundamente nisso no futuro. Crianças com poucos meses de idade não pedem para serem batizadas, não escolhem participar de missas, tampouco sabem que seus nomes foram escolhidos porque na mitologia um baixinho matou um gigante ou porque uma virgem gerou um bebê; mesmo assim, quando crescem e têm seus filhos, eles repetem os rituais. Questionar essas práticas é algo inconcebível – ao menos para a maioria religiosa.

Alguns poucos casos se desviam da normatividade e se questionam – quando disso, percebem que nem sabiam o porquê de tamanha repetição. À primeira constatação de que não existem escolhas quando não podemos experimentar suas consequências, o livre arbítrio desmorona como um castelo de cartas perturbado por um vento que entrou pela “janela aberta na hora errada”. Mentiras vestidas de verdade e culturas reluzentes só existem porque acreditamos que ambas foram feitas para nós e nós para elas – como numa permanente alucinação que transforma a percepção de uma realidade e cria outra em seu lugar. Tais mentiras, ou verdades inquestionáveis (vulgo dogma), são inseridas em nossas rotinas tão insistentemente e recebem apoio de gigantes instituições e de pessoas socialmente tão relevantes que rejeitá-las pode soar como um verdadeiro absurdo. Além de aterrorizante, dizer “não!” à religião – e consequentemente a Deus – pode ser considerado um ato desumano; e é por pensar assim que essa ideia se mantém viva e farta, já que não lhe faltam seguidores assustados e genuinamente carentes.

Nesse sentido, não é de se espantar quando ouvimos as pessoas dizerem que “somos ‘assim’ por causa da nossa cultura“. Na verdade, a cultura influencia e muito a forma de vida de seus componentes sapiens; seria uma tremenda injustiça negar esse fato. Porém, não raramente creditamos a ela inclusive quem somos e seremos por toda a vida. Se somos agitados, é a cultura; se italiano come muita massa, é a cultura; se japonês é inteligente, dê graças à cultura; se sou arrogante, é a cultura norte-americana que causa isso; se sou metódico e insistente, é porque tenho “sangue alemão”, portanto, culpa da cultura. A cultura é tão responsabilizada pelos nossos atos e por nossa própria maneira de ser que sem percebermos ela puxa uma cadeira, monta a cama, instala uma geladeira e um fogão e, quando menos esperamos, está morando em nossa mente. Num entranhamento lento e gradual essa cultura encobre o nome “Consciência” e coloca uma placa bem vívida: “Cultura – sob nova direção”. Não preciso dizer que ela tranca a porta que daria acesso a partes importantes da consciência e esconde as chaves sabe-se lá onde – Freud, Jung e Lacan tentaram achar esse caminho.

E se, ao falar de cultura, incluirmos a cultura da ideia de Deus; a cultura dos santos; a cultura do cristão, do islã, do budista, do judeu; a cultura do nacionalismo, do fascismo, da família, ou qualquer outra? Qualquer uma dessas culturas que internalizarmos oferece uma chance potencial de ser o nome dado à nossa consciência. E, como dito algumas vezes nesse texto, esse processo de transmutação da nossa consciência ocorre de maneira geralmente lenta e gradual – isso tende a dificultar tanto o seu mapeamento quanto a sua expurgação. Mas quem não começa não termina.

Não conte a ninguém

Dito tudo isso, para evitar ser chamado ou chamada de herege, não conte a ninguém que boa parte da construção do nosso eu é uma farsa, pautada em diferentes e eficientes mecanismos de controle que buscam com precisão a unificação de grupos sociais e colaboradores, com o mínimo de barulho possível entre seus integrantes. Também não conte a ninguém que somos induzidos a acreditar que existe alguém morando dentro de nós, e que esse alguém na verdade nos vigia e nos controla o tempo todo, punindo-nos e repudiando comportamentos dos quais nem nós sabemos os porquês. Não conte a ninguém que você descobriu a trama; pois ninguém acreditará de boa vontade em suas palavras, a menos que antes haja um incômodo tão insuportável que permanecer no mesmo estado existencial deixe-lhe de ser uma possibilidade.

Não fique triste, mas geralmente as pessoas ouvem não o que dizemos, mas aquilo que se acopla precisamente ao seu receptor. Quem tem receptores para mudanças, receberá as mensagens de mudanças e eventualmente mudará – do contrário, seria o mesmo que tocar o Concerto nº21 para piano – de Mozart para alguém surdo. Ele até perceberá o movimento da orquestra, mas não entenderá o que está sendo tocado. Lembrando que esses receptores podem ou não ser criados ao longo da vida, num processo que envolve diferentes fatores internos e externos – não nascemos prontos. Sobretudo, não conte essas coisas a ninguém porque, assim como eu, você também pode estar alucinando.

 

P A R T E  I V

Considerações Finais – O nome da sua consciência é _____________.

A ausência temporária e/ou permanente da realidade é um pré-requisito para a Nomeação Involuntária da Consciência. Precisamos apenas incorporar os discursos aos quais somos continuamente expostos para que, ao cabo de poucos anos de vida, iniciemos o processo de transição nominal.

A partir do momento que a criança começa a ter noção do espaço ao qual ela pertence, bem como dos mecanismos disponíveis para que ela compreenda e interaja com o mundo, aí se inicia o contato mais efetivo com a consciência manifestada, já que a não-manifestada atua desde que as conexões neurais foram estabelecidas ainda na fase fetal.

No momento em que somos bebês e temos nossa percepção de mundo parcialmente livre de contaminações, ou o mais próximo disso, respondemos aos estímulos de forma mais espontânea. São nos momentos pueris que temos a capacidade de expressar o que realmente se passa em nós, se gostamos de algo ou não, se nos identificamos com certas pessoas ou situações, ou se algo nos faz alegras ou triste – e choramos ou sorrimos sem medo de sermos adjetivados – até porque esses conceitos não são nossos conhecidos. É quando criança que observamos mais o ambiente e, sem nomear muito as coisas, tentamos descobrir tudo que nos cerca – é a fase da curiosidade descontaminada nomeações. Contudo, não é correto dizer que nessa fase o ser humano é desprovido de traços adquiridos. O que há é uma incapacidade do bebê de se situar diante de todas as percepções que o cerca. Conforme ele se torna mais consciente (de ponto de vista de conseguir significar os objetos com os quais se envolve), acontece o processo de atribuições de nomes a tudo que lhe sirva de referencial. Com o tempo, vai-se recebendo as cargas culturais, inclusive as mais danosas, aquelas que nos dizem o que devemos sentir em cada situação, como devemos nos comportar e o que devemos ou não perguntar.

Ao longo do nosso desenvolvimento pessoal, são criadas identidades variadas que têm por função encobrir qualquer noção de nós, e silenciar ou transfigurar a consciência manifestada – ao menos na teoria. Como é impossível silenciá-la na prática, é necessária a nomeação da consciência, que uma vez sendo nós, passa a se chamar por qualquer outro nome. No exemplo em que ela é chamada de Deus, passamos a atribuir todas as nossas percepções internas a Deus, achando ilusoriamente que nossos mais profundos comportamentos psíquicos são fruto da vontade divina, quando na verdade somos nós mesmos atuando, porém com nomes distintos.

Não reconhecer que a nossa consciência tem outro nome é relevante para o Sistema Social Humano, porém danoso para o indivíduo; e “funciona” apenas enquanto durar a mentira – ou a sensação de realidade construída no coletivo. Suspeito de que a ansiedade, a depressão, a carência excessiva de identidade e a necessidade de reafirmação constante de si mesmo são consequência da falta de interação com sua própria consciência manifestada. Se por um lado, seja parte dos mecanismos de alienação da massa manter o maior número de pessoas sob um único regime, por outro, suas consequências são percebidas quando avaliamos o indivíduo em particular. Seguir crente à ideia de Deus ou de qualquer outra religião favorece a coesão grupal humana na medida em que estes se percebem sob a mesma identidade e pertencentes ao mesmo arranjo social. Já uma análise mais ampliada da questão sugere que a única maneira de haver essa unificação identitária maciça é suprimindo aquilo que cada indivíduo pensa de si mesmo – eliminando o máximo possível de individualidade. Quando dizemos que Deus é uma entidade e incutimos essa ideia no meio social, estamos, na verdade, transformando um conceito em uma parte significativa da existência humana.

De fato, uma maneira potencial de Deus atuar é se o seu portador crer que isso acontece dessa forma. Para otimizar a incorporação do evento “Deus”, o medo foi amplamente divulgado e aplicado em todas as esferas da vida humana. Veja bem, se a cada primeira ação do indivíduo ele é logo repreendido com uma negação do tipo “Deus não se agrada disso“, a tendência é de que sua consciência não manifestada passe a avaliar essas ações como um processo que resulta em um trauma, muito pequeno do ponto de vista perceptual, mas com consequências ulteriores. Esse micro-trauma é interpretado e avaliado pelas variações bioquímicas do organismo e armazenado como um dado negativo. Uma vez armazenado como um fato negativo (ou experiência negativa), o ressurgimento dessa ação – cometida pelo indivíduo ou por um agente externo – resultará na sinalização da consciência não-manifestada para a manifestada. Se a consciência manifestada é aquela pela qual percebemos a nós e ao mundo e a que nos proporciona o “sentimento de existência”, logo interpretaremos a mensagem como algo a ser rejeitado. Isso não significa que o motor da ação negativada seja efetivamente ruim, mas que apenas foi interpretado dessa forma no momento em que foi armazenado.

Exemplificando, nesse mesmo raciocínio, se eu sou um homem bissexual (ou seja, sinto-me atraído sexualmente por homens e por mulheres), porém estou inserido em uma comunidade que reprime religiosamente a união entre corpos do mesmo sexo, será inevitável que num primeiro momento da sinalização de uma atração sexual por outro homem essa informação será recebida e negativada. Isso, porque a base de dados utilizada para julgar essa informação já foi preenchida por uma chave-mestra que rejeita que dois homens se relacionem; mas enquanto a percepção corporal da ação ocorre na consciência não-manifestada, seu acesso enquanto memória acessível se dá pela consciência manifestada: ao mesmo tempo que o organismo sente-se sexualmente atraído dado que é natural de sua constituição, essa excitação é interpretada e armazenada como um problema a ser combatido; isso ocorre em consequência das respostas neurofisiológicas que o organismos apresentou ao ser advertido quando a atração se manifestou – essa resposta pode ser na forma bioquímica e neuronal, provocando emoções como medo, vergonha, nojo ou qualquer outra que, como se sabe, é participante direta no processo cognitivo e de aprendizagem (Damásio, 1996). E somos também aprendizados.

Em caso de ressurgência (que é também incontrolável), a tendência é de que a consciência não-manifestada rejeite tanto o comportamento bissexual quanto a ideia de se sentir atraído pelo sexo oposto – tudo isso porque a partir da consciência manifestada assumimos que nossa identidade funcionará a partir de outro nome – e, automaticamente, a partir de códigos e regras que compõem esse nome. Isso certamente serve de base para explicar porque tantas pessoas são homofóbicas, bem como a forma como esse assunto é tratado em diferentes mídias virtuais. Você já parou para pensar que a ardente rejeição à comunidade LGBTQ+, por exemplo, pode ser fruto de uma resposta inconsciente oriunda de um comportamento introspectivo e inacessível desencadeado por uma resposta primária que, uma vez armazenada e não reparada, faz o próprio indivíduo combater a si mesmo, porém a partir da figura de um agente externo? Esse agente externo – seja Deus, a família, a sociedade – funcionam como agentes nomeados involuntariamente por nós que passam a rejeitar características que são nossas. A orientação e a identidade sexual são biodisponibilidades que não estão à escolha do indivíduo; ou seja, não se escolhe ser heterossexual, homossexual, bissexual ou transexual; mas pode acontecer de passarmos a rejeitar essas características inalienáveis a partir de processos de assimilação e conceituação dos eventos materiais aos quais o nosso corpo está exposto.

Dessa forma, ao nomearmos a nossa consciência, trazemos junto ao nome todos os conceitos e paradigmas que o sustentam. Quando nomeamos a nossa consciência de “Deus”, por exemplo, aceitamos todas as suas marcas. Dizer que “Deus é (a) onisciente, (b) onipresente e (c) onipotente” faz todo sentido quando “Deus” passa a ser o nome da nossa consciência – e o mesmo vale para qualquer outro substantivo -:

(a) se é a partir da consciência manifestada que eu tenho toda a noção de existência de mim e do mundo, e mesmo assim a chamo de “Deus”, então a condição de onisciência está confirmada – haja vista que só quem geralmente pode saber com maior precisão aquilo que se passa em minha mente manifestada sou eu – todo o resto saberá fragmentos ou distorções das minhas próprias distorções;

(b) onde quer que eu esteja, há uma enorme assertividade em dizer que a minha consciência estará comigo. Logo, se “Deus” é o nome da minha consciência, ele estará presente em todos os lugares em que eu estiver: condição de onipresença confirmada. Considerando o sentido de consciência adotado no texto, de que ela é não somente a soma dos processos mentais, mas também o constante funcionamento de atualização de parâmetros fisiológicos e neurobiológicos, nossa consciência existe enquanto e onde existirmos;

(c) por fim, se toda a minha noção de poder parte também daquilo que consigo processar pela minha própria manifestação da consciência, a constatação mais imediata é de que ela pode tudo aquilo que consigo imaginar poder. Lembrando que a noção de poder é relativa ao que pratica o poder bem como às suas necessidades de potência. Mas, se mais uma vez a minha consciência se chama “Deus”, ela pode tudo que eu acreditar ser possível. Dessa forma, só resta dizer que a noção de onipotência foi também confirmada.

Nesse sentido de percepção de uma ideia e crença de que ela é verdadeira, a célebre frase de René Descartes – penso, logo existo – nunca fez tanto sentido quanto se inserida no contexto dessa publicação. Porém, mesmo ela apresenta falhas conceituais, uma vez que não basta pensar e ter a percepção de si mesmo para que tenha consciência e, portanto, exista; a consciência não-manifestada é um portal ao qual não temos acesso direto. O que acontece quando não pensamos – e, de acordo com a frase, não existimos – é que o não pensar apenas nos suprime a “sensação de existência”, não a existência propriamente dita. Por essa razão, sugiro que nesse contexto a frase ficaria mais completa se fosse escrita como “penso, logo percebo que existo“.

Se você for capaz, pense de que formas a sua ideia de “percepção da vida interior e exterior” foi transmutada ao longo do tempo. Sem demagogias, sugiro que você não interprete a palavra “capaz” como uma ofensa ou afronta; ela está aqui puramente como um desafio ao seu pensamento – ser capaz de responder a todas as perguntas é o “sonho” de muitos, mas poucos são os que aceitam questionar as bases que lhes confere paz e conforto, mesmo que estas sejam pautadas na fantasia. Você já parou para pensar

(I) em quantos nomes a sua consciência já assumiu? Qual é o atual?

(II) se você, quando pensa em si enquanto indivíduo, consegue se imaginar sem a construção de conceitos socioculturais e/ou religiosos?

(III) se você já conseguiu avaliar uma situação inédita sem precisar recorrer a nenhuma nomenclatura previamente criada por outros humanos? Isso porventura seria possível?

(IV) se, em algum momento de lucidez e de tranquilidade, você – caso creia em deus (ou em deuses) – já cogitou a hipótese de experimentar um período sem essa crença para confirmar o que realmente ele significa em sua vida, sem que isso te mergulhe em um profundo medo de ser amaldiçoado(a)?

(V) que, se a resposta à questão imediatamente anterior fosse “Não!”, como você pode dizer que a crença em Deus é real e não um fruto da sua imaginação, adquirida lenta e gradualmente? E, quanto a ser real, o que é ou não real na vida? Se você experimentar viver sem a força gravitacional, será uma tentativa em vão, pois ela não depende de você para atuar; se você tentar viver desconsiderando a translação da Terra ao redor do Sol, nada mudará – esse movimento não depende sequer da sua existência humana para ocorrer. Mas e se você decidir viver sem a ideia de que há uma entidade supra-humana, que falta faria? Já imaginou se essa ideia for aquele cobertor que cobriu a sua consciência e te fez acreditar que no lugar dela se manifestar está a manifestação divina? Dificilmente, se você acredita em Deus, você aceitará o desafio de testar a sua não-existência. E por essa razão, ele será “eterno” na sua mente, e “nunca te abandonará”. Ele é a sua consciência, mas com outro nome e com outros códigos, silenciosamente ou não, mas violentamente imposto sobre a sua conduta.

Qualquer mecanismo de usurpação pode servir de nome para a sua consciência. Desde a ideia de Nacionalismo e Cultura até grandes conceitos como Religiosidade e Deus, bem como de inúmeras possibilidades intermediárias, são potenciais agentes de nomeação involuntária da consciência. Ademais, todos eles têm em comum a capacidade de, uma vez adotados como nome, alterar a nossa percepção da realidade e nos induzir a crer que não sentimos exatamente o que sentimos, mas o que supostamente deveria ser sentido conforme cada exigência específica. Quando travestimos nossa consciência, invisibilizamos a nossa noção de identidade, de pertencimento e de autonomia; por isso que grandes usurpadores precisam ser constantemente injetados em nossos hábitos e costumes para que não haja brechas para um pensamento crítico. A consciência é um componente físico, gerado por algoritmos bioquímicos; já a ideia de consciência pode ser imaginada e, como tal, às vezes pode servir ao gosto do freguês. Fiquemos atentos!

Para finalizar o texto – mas não essa discussão -, eu gostaria de saber a sua resposta acerca da sua consciência caso você fosse convidada ou convidado para preencher esta lacuna: O nome da sua consciência é ______________________. A resposta é sua, para você.

 


 

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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