Ali está o organismo, horas a fio mirando o espelho…
não sabe se se vê, ou se procura seu desejo;
Narciso se mira ao espelho das lojas,
se busca nos reflexos dos carros,
nas poças d’águas de lágrimas deixadas por outras pessoas tristes e solitárias.
Em geral, Narciso fez fama porque, na Mitologia Branca Grega, ele buscava somente por sua imagem;
ali, ele não queria ver as outras pessoas, tudo precisava ser dele, para ele, sobre ele, com ele;
o outro precisava ser também ele por reflexão para que o interessasse;
mirava a si em todas as coisas,
tudo precisava ser sua imagem e semelhança para ganhar sentido.
Hoje, Narciso não perdeu exatamente suas características basais, as adaptou ao contexto;
mas é verdade que narcisos brancos hegemônicos seguem cada vez mais vidrados no espelho de si para si;
enquanto narcisos dissidentes precisam agora mirar seus relógios,
não podem perder a hora,
não poder perder o emprego,
não podem perder as chaves de suas celas
nem as cordas de suas forcas.
Precisam olhar insistentemente para seus cronogramas,
principalmente aquele em cuja agenda estão marcadas as doses de sedativos;
assim, e por isso, não podem perder ao horário;
se atrasarem a dose, precisam trabalhar ainda mais;
assim como também não podem se esquecer de seus anestésicos;
seria um desastre se por algum segundo esquecessem de tomar de suas anestesias cotidianas;
a dor que deveras sentem, mas que não percebem ou que não entendem,
seria sentida em sua crueza,
doeria até distorcer suas frágeis fortalezas.
Mas Narciso não perdeu seu fascínio pelo espelho.
Seguem mirando os espelhos por onde passam,
a questão é o significado dado ao que é refletido.
Como saber se o que o espelho contemporâneo faz é refletir a imagem de quem olha
ou se seu papel é, na verdade, apresentar uma imagem que convença ser aquilo o reflexo de quem a observa?
Se for assim, quiçá estejam no caminho.
Narcisos buscam reflexos ainda mais irreais em seus espelhos anormais,
cada vez mais querem se ver,
e cada vez menos se enxergam como um ser.
Todavia, há aquele outro Narciso,
aquele pouco falado, pois ele ocupa um lugar de derrota e fracasso no neoliberalismo;
aquele que, segundo a lógica de mercado, deveria ser individualista e querer tudo sobre si;
meio que parecido com o grego, mas um pouco mais descolado;
um sujeito que aprendeu tanto a fingir que virou um poeta calado.
Para o fingimento parecer desejo próprio, a contemporaneidade produziu corpos mais ou menos semelhantes,
embalagem homogêneas de um conteúdo pouco explorado, de verdades distantes;
se são muito parecidas, olhar para uma embalagem é ver-se como num espelho;
espelhos móveis e cansativos, fadados ao cansaço.
Esse tipo de Narciso olha para as pessoas ao seu redor, parecidas entre si numa felicidade mofada,
esperançosos de uma liberdade atada;
sonhadoras num galpão frio e empoeirado chamado vida social;
é ali, nesse vai e vem de formigas alucinadas, cada uma enfileirada, cada uma muito parecida,
cada uma bem disciplinarizada,
é ali que esses Narcisos estranhos supõem o esquema…
Querem que sejam criaturas comunicativas,
o sujeito moderno quer transparência e autoconhecimento,
quer um engajamento das trocas afetivas,
quer conexão e profundidade;
Entretanto, se alguém ousa falar de si,
se por descuido ou por des-esperar-se ousar explorar o conteúdo da embalagem publicamente,
logo gera-se distúrbios no projeto narcisista global;
Pessoais globais dizem sempre que querem você como você é!
Ainda assim não demora muito para notarmos o engodo,
e logo escutamos suas sádicas mentiras:
“Falem tudo de vocês, queremos te ouvir!”
“Sejam empáticos, escutem!”
“Acolham!”
“Abracem”
“Amo!”
“Ame!”
“Amem!”
“Amém!”
“Sejam vocês e se expressem!”, desde que suas expressões não desfaçam a homogeneidade de pessoas sem identidade!
“Digam o que quiserem!”, desde que seja exatamente o que as outras pessoas quiserem ouvir;
“Falem o que sentem!”, desde que não seja pesado ao ponto de derrubar a máscara de cerâmica de uma escuta forçada e “desconstruída”;
“Liberem suas emoções!”, mas não as deixe fluir muito, elas podem se represar nas fronteiras da fantasia ao ponto de não serem contidas e assim romper a barragem; lágrimas de sangue podem escorrer dos olhos de quem se escuta em tuas palavras – é o sangue da própria pessoa para quem você fala, que não podendo atar a própria ferida, e não podendo ser emocional como você foi, sangra sua própria dor e diz que você quem deu a facada.
“Abram todo o seu coração!”, mas façam isso apenas se for para arrancarem de dentro dele o que você considera mais seu!
“Sorriam! Sim, sorriam!” – querem medir seus dentes e ver se eles estão todos de acordo com as normas de um sorriso artificial.
É nessa configuração que se constrói uma sociedade homogênea, mas tão homogênea, que ela própria se torna um organismo, um novo Narciso magnificado, um Narciso associado, que se mira em seus fractais especulares, que se enxergada em cada ângulo; e nenhum deles é satisfatório.
Quem ainda não se homogeneizou se tornou, ou em breve se tornará, um Narciso rechaçado, posto no limbo, expulso das entranhas, uma criatura abjeta e estranha.
Esses, obsoletos corpos em degeneração, expurgados por não serem capazes de se adequar tão rapidamente,
ainda assim tentam o encaixe;
se viram de lado,
recortam suas bordas,
dão um polimento em suas vidraças,
usam uma moldura atraente, quem sabe assim pareçam gente.
Então, como única forma de [sobre]vivência,
continuam sendo narcísicos,
mas em suas celas frias e vazias.
Um a um, corpo a corpo, fragmento a fragmento.
Sabe-se que não pode falar o que sente,
se falar chamarão a clínica para um reparo no espelho;
Não se pode vacilar;
se por um segundo esquecer a trama e se abrir para falar de si,
logo será acionado o esquadrão da suspeita.
A última vez que Narciso se comportou como embalagem aberta o levaram para uma autoclave para desinfeção;
limparam sua mente e coração até que de si se esquecesse. Ele morreu em sua própria casa, na câmara de gás.
É angustiante não pode abrir a boca para falar de si sem temer que te mirem com desconforto;
é patético dizer eu te amo para a mesma pessoa que quer te transformar num homogêneo corpo pacato e apático;
é irritante ter de conviver num espaço em que suas maiores questões são postas como inflamáveis;
para não dizer inconvenientes, inauditas e inconversáveis.
“Pode falar tudo que você quiser!”, desde que seja tudo como querem ouvir;
Isso é atordoante, é dilacerador, fere a ferida aberta a cada dia;
é o fígado sendo comido de dia enquanto se regenera pela noite;
é a fragilidade constante de uma vida que deve passar sempre no oculto da existência;
é a miséria de uma vida que nunca pôde ser vivida, e que nunca será.
Como falar de morrer num mundo onde os mortos só pensam em viver suas necroses?
Como falar de tristeza num ambiente social em que todas aquelas almas cinzentas e exauridas de identidade fingem uma felicidade a base de opioides e mutilações?
Como você é capaz de simplesmente dizer “cansei” num cemitério que as covas se abriram e os zumbis caminham sem destino, mas obstinados a nunca parar?
Às vezes, o único desejo é desistir;
desistir de ser, de estar, de querer e de se movimentar;
mas você não pode mais;
nem desistir te é permitido!
É preciso ir pra frente, pra frente, pra frente;
pra frente do fim;
te condenam a não poder desistir,
mas não aceitam se você quiser existir.
E aqui entra aquele Narciso!
Ele circula na sociedade,
faz milhões de coisas que precisam ser feitas;
ele ama o amor cínico de bell hooks,
se vende de inteligente e de articulador,
mas ninguém, ninguém desconfia de sua dor,
pois ele aprendeu a fingir.
“Finge tão completamente
Que chega a fingir que é ‘esperança’
A dor que deveras sente”
Todos os dias ele não vê a hora de descer as escadas que o leva ao porão que ainda ninguém mereceu conhecer,
quando está ali, puxa fora o pano que cobre seu espelho de dois metros;
mira-o de cima abaixo,
acredita que ali se vê, que ali se enxerga;
se posiciona na cadeira em frente ao espelho,
puxa o móvel quadrado para perto de si,
pega os lenços, pois a essa hora suas lágrimas já escorrem.
Uma a uma caem as lágrimas contidas e escondidas no dia a dia;
uma a uma as seca, mesmo quando não precisa secá-las,
mas faz isso pois aprendeu que se esquecer de enxugá-las e sair às pressas de seu porão para cumprir demandas e alguém notar a umidade do rosto logo dirão que precisa de reparos: autoclave.
Seu desejo pelo estar é tão nulo quanto sua esperança de poder ser longe do seu espelho.
é insuportável ser essa pessoa;
é atormentador viver em sua cabeça dia após dia;
é um verdadeiro desconforto se olhar todo os dias para ao espelho e saber que só ali, mesmo que por um curto intervalo de tempo, pode ser quem se é: um Narciso desejante de ouvidos que escutam;
seu espelho é necessário só porque se ele deixar de imitar o grande espelho social será posto à readequação;
então mira seu espelho na solidão, quando na verdade só queria uma sincera conversação.
Quantas vezes mais Narciso suportará ter de se esconder para aparecer?
Quanto tempo mais aguenta nesse ritual de precisar se abrigar no porão para ouvir seu coração?
Para quem ainda não sucumbiu ao humanismo sedativo, o autoamor neoliberal não é o ideal;
nos entendemos, em maior ou menor grau, no coletivo, fugir disso é atentar contra si.
Além de hipócrita, é adoecedor pressupor o isolamento pleno – nunca estivemos sós; nunca fomos sós;
o que ilude a gente autocentrada pode ser a habilidade que algumas pessoas têm em transformar em fantasma humanos que fazem a roda girar.
Uma a uma caem as lágrimas detidas no dia a dia;
uma a uma ele as liberta,
uma a uma as seca, mesmo quando não precisa secá-las…
E Narciso está novamente ali, horas a fio mirando o espelho;
não sabe se se vê, ou se procura seu desejo…
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: a imagem usada para compor a capa deste texto foi obtida aqui.