O que é ser humano?

A.

Não tenho entendido muito bem o que tem se passado comigo e em mim. Isso, não necessariamente por falta de conhecimento. Embora eu não saiba de tudo, ou sequer saiba uma fração significativa do que é o viver, entendo determinados contextos que me cercam e que compõem a história do mundo. De toda forma, confesso que sei bem pouco sobre a história da humanidade. Ainda assim, não seria por profunda ignorância que eu estaria desse jeito, sem entender o que está acontecendo aqui. Mas não bastasse isso, não me é compreensível o sentido que tomam os acontecimentos ao longo do tempo. E, nisso sim, a “culpa” é toda minha. Eu já deveria saber [como o sei] que falta alguma coisa nisso tudo, e sei que é sentido. Não me é segredo o aspecto caótico da existência; a história linear não existe; uma narrativa contínua e que apenas cresce em extensão é algo mítico. A vida, por definição, é caótica, não previsível, incompreensível quanto ao segundo passo – não nos é permitido saber com exatidão que história nos espera depois da curva. Com muita sorte sabe-se onde se pisa no momento em que se pisa. E, novamente, a “culpa” é minha por insistir em tentar entender esse paradoxal novelo que não tem ponta.

Apesar de tudo, a palavra “culpa” é desonesta e por vezes descabida. Mas não achei outra melhor. Dizer-se culpado é pretender encerrar uma constatação; querer dar por conhecida a causa, por entendido o efeito e todo o mais. Isso parece mais uma ilusão. E, reconsiderando o dito, eu não sou necessariamente “culpado”, apenas sou eu – um qualquer entre qualquer um. E, quando digo não entender o que se passa, posso estar apenas “culpando” a minha falta de entendimento. Conforto alienante e não-provisório, pois nada provê.

Entretanto, na verdade, e sendo mais sincero, até entendo o que se passa; mas é como se eu não quisesse entender para, desconhecida a causa, eu não acreditar que a vida, o mundo e a humanidade são por essência esse caos, e que nesse instante cosmológico em que escrevo num cômodo vazio as coisas não vão bem e nem mesmo aparentam que um dia irão – seja isso num mundo ou seja no mundo.

O que busca a humanidade? Sei não. Se, por um lado, não poder prever o futuro e saber que não existe linearidade nem ciclicidade na história me dá uma paradoxal compreensão do que é a existência, por outro lado, isso é também o próprio absurdo percebido. Não à toa, a busca desesperada por uma salvação, a qual coloca um destino na história ainda não construída da vida e que por definição elege e rotula culpados e absolvidos, tem servido de ópio e de veneno assintomático para muita gente. Pensar que existe um plano magno, um gran finale ou, para alguns sapiens mais inclinados ao ópio, algo parecido com um Opus Dei, torna perfeitamente “compreensível” quando se percebe que talvez seja essa uma das maneiras mais utilizadas para negar toda e qualquer noção de caos, de acaso, de viver, de existir e de bom senso.

Nega-se a realidade objetiva, penso eu, para assim poder livremente criar um paralelismo entre o desejado e o inatingível. A negação tem tanto o poder de anular percepções quanto de criar o inexistente. Neste último caso, se nego que a realidade objetiva é real, abro um campo para que tudo quanto eu quiser trazer ao mundo possa existir. Certa vez, li algo de uma autora que dizia de uma personagem cuja vida era medíocre e que se contentava com aquilo que a maioria considerava humilhante; quando falado a respeito de coisas celestes, a autora dizia de sua personagem que “ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam¹. Pois bem, achei válido. Dizer o que é real é uma missão tão difícil quanto o seu contrário. Porém, se acreditamos, ao menos para nós o real ganha sentido e significado.

Atribuir valores a coisas como liberdade, amor, esperança, , destino, povo, nação, irmandade, etc. não passa de uma maneira que tem “funcionado” para unificar e direcionar pessoas, localizar e posicionar corpos dentro um sistema de relações de poder; criar identidades e construir uma ideia fragilmente fortalecida pela repetição, porém considerada muito resistente, de caráter quase perpétuo. Todos esses conceitos humanos parecem dotados de significado e de sentido porque nós, seres ditos sapiens, acreditamos neles. E, porque acreditamos, eles existem. Na “realidade”, penso que tudo isso é de fato historicamente importante na construção do que podemos entender por ser humano, entretanto são dispositivos que mais condicionam que libertam – para quem ainda acredita na liberdade.

É uma ideia bastante intrigante, para não dizer estranha, a de que o ser humano tem uma natureza tal que pode construir grupos de milhares de indivíduos simplesmente porque isso “está em seu DNA”; ou, dito em outras palavras, que isso é de sua “natureza humana“. Não sei se seria pretensioso dizer que somos seres esquisitos, e que a partir de certas condições biológicas fomos – num movimento de retroalimentação – sendo selecionados por essas condições ao passo que as selecionávamos. Tudo isso sem propósitos. Se existiu um propósito, ele foi inventado depois que as coisas aconteceram, logo, não são propósitos, mas explicações.

B.

Talvez você ainda não saiba, mas o ser humano surgiu como um animal biologicamente insignificante, mas que lentamente foi deixando esse posto. Ele é um bicho aturdido pelo desconhecido e pela incapacidade de poder conhecer tudo. Não há muito tempo na história do mundo, preocupávamo-nos com a conquista da incerta refeição do dia seguinte enquanto caminhávamos pelas savanas africanas. Por quase setenta mil anos vivemos de forma desinteressada acerca do mundo; não éramos representativos; não ameaçávamos o planeta, já que nem sabíamos que existiam outros locais além do território de nascimento, tampouco para além do céu; éramos animais totalmente insignificantes enquanto espécie. A morte de um Homo sapiens por um leão era tão pertinente e “irrelevante” quanto a de um gnu ou a de uma zebra. Éramos apenas uma parte da teia alimentar. Hoje, somos a própria teia, da qual nada escapa.

Passados milhares de anos, após termos criado a consciência a partir da própria consciência, significamos os nossos valores. O valor biológico, por sua vez, foi o responsável por nos fazer atribuir valores ao que só é possível depois que a consciência é percebida como tal – e o biológico assumiu outro significado.

A história da consciência não pode ser contada de forma convencional. A consciência surgiu devido ao valor biológico, enquanto contribuidora para uma gestão mais eficiente do valor. Mas a consciência não inventou o valor biológico, nem o processo de valorização. Na mente humana, a consciência viria a revelar o valor biológico e permitiu o desenvolvimento de novas formas e meios de o gerir.[O livro da Consciência – António Rosa Damásio]

Rompemos os laços com os outros animais, com o planeta e com qualquer noção de preservação. Não nos separamos do mundo fisicamente, mas fizemos questão de desenhar uma linha conceitual e teórica – portanto imaginária e pragmática – entre humanos não-humanos. Assim, embora animais e embora biologicamente insignificantes, nos posicionamos num lugar que contempla, ao mesmo tempo que despreza, desde o material ao simbólico; que na impossibilidade de ser pleno em realizações destrói realizações alheias para que haja ao menos a ideia de progresso. Certamente que a separação entre o humano e o não-humano é perceptível. Negar isso é negar-se enquanto ser. A atribuição de valores é o que sustenta uma casa na areia do tempo. Separamo-nos de tudo que é dito natural, animal, selvagem e primitivo porque não queremos reconhecer nossa verdadeira faceta existencial. Nada disso deixou de ser e de atuar em cada corpo que vaga por essa Terra – os algoritmos bioquímicos não foram transformados junto com a nossa percepção; todavia, no exercício diário de construir um ser que seja humano, forçamos um encaixe entre o que “prevê o DNA” e que que “impõe” o social. Considera-se que somos biologicamente culturais em certo sentido, mas ainda assim o processo da transformação humana me parece ser descrito de um modo bem incompleto, embora inconteste, e que – salva a sua curiosa e ampla aceitação, não soa óbvio para todo mundo o que seria uma outra alternativa de interpretação. Aqui, o conceito de humano está, por assim dizer, virado ao avesso.

Veja bem! É aceito dizer que ser humano é ter amor ao próximo; ser capaz de empatizar – sentir-se no lugar alheio, sofrer a dor de outrem, estar onde nunca se conseguiria, mas imaginar-se nessa condição. Ser humano, além disso, poderia guardar similaridades como o cuidado, com a atenção; crescer, enquanto humano, é tornar-se cada vez mais sensível, mais sábio, mais atento ao mundo e ao que cerca cada indivíduo. Enfim, dizer-se humano é, na melhor e mais otimista das hipóteses, dizer-se melhorado – seja em relação a toda a natureza, seja em relação a um outro humano não tão humano. Ao passo que ser desumano é ser em tudo oposto ao que foi dito aqui. Ser humano é idealizar uma existência sem sentido para que possa, então, sentir que se existe.

C.

Ora, ser humano, nessa abordagem, é também uma concepção romântica. Ou seja, reiterando, é algo idealizado – construído socialmente; é um processo transformador e transformativo; algo modificador, que altera a “crueza biológica” e constrói sobre e sob uma massa celular movida por algoritmos bioquímicos um ser que deva estar preparado para o convívio com outros seres igual e potencialmente humanos. Todavia, se isso tudo é ser humano, o processo pelo qual esse fenômeno acontece – a humanização – é, por definição, outro construto social e, portanto, socializante. Para além do exposto, ela não é apenas “outro” construto social, mas é o principal de todos.

Assim, seria o ser humano construído socioculturalmente a partir de um momento não muito bem conhecido, mas ousadamente pressuposto e, portanto, não tão desconhecido assim. Somos o fruto do nosso saber sobre outros saberes; das nossas concepções sobre uma verdade – a nossa verdade sobre outras verdades. Produzimos a nós mesmo na medida em que produzimos um mundo.

Não há muito tempo que li um escrito para o qual ainda não encontrei uma maneira de negá-lo; até porque não vejo a menor necessidade ou interesse – senão a possibilidade – de fazer tal coisa:

Na medida, porém, em que as coisas giram sobre si mesmas, reclamando para seu devir não mais que o princípio de sua inteligibilidade e abandonando o espaço da representação, o homem, por seu turno, entra, e pela primeira vez, no campo do saber ocidental. Estranhamente, o homem — cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a mais velha busca desde Sócrates — não é, sem dúvida, nada mais que uma certa brecha na ordem das coisas, uma configuração, em todo o caso, desenhada pela disposição nova que ele assumiu recentemente no saber. Daí nasceram todas as quimeras dos novos humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia”, entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem. Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber, e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova. […]*
[…] O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. 
Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do pensamento clássico — então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia.**²

Por isso que, desmentindo ou pervertendo a ordem como são postas as coisas e distorcendo o sentido pelo qual se diz que somos humanos, prefiro o contrassenso, o contraintuitivo, por mais intuitivo que o seja para mim. Penso, portanto, que tornar-se humano é por contextualização desanimalizar-se, mas de um de modo forçado e reforçado – porém não imperiosamente planejado; é ausentar-se daquele protótipo que deixou as savanas africanas há cerca de 70 mil anos; é crer-se especial por algumas razões que foram construídas lenta e gradualmente no tempo. Tornar-se humano diz respeito a compreender-se dono do mundo – cuja posse é por si e em si forjada, definida e defendida sob baixas de vidas, elevações de glórias e na criação de identidades. Na insatisfação coletivamente narcisista de deixar o animalismo de lado a duras penas, tornar-se humano pode ser dito também como o ato de desumanizar não apenas um grupo local, mas todos quanto possíveis para que estes se reumanizem nos moldes dos humanos “mais perfeitos“.

D.

A partir de uma visão mais realista”, a humanização é uma ação. É um fazer violento tanto quanto se supõe ideal. Acreditar que se tornar humano é por essência subir os degraus de um pódio é também assumir-se violento nessa mesma violência. Somos transformados socioculturalmente de maneiras que divergem ao longo do tempo; somos caracterizados por atitudes, símbolos, crenças e por imaginações. Cada grupamento humano se distingue em essência (essa também construída) pela suas abstrações coletivas; um povo só é um povo quando a maior parte de seus integrantes estão cientes e também alimentam determinada criação imaginada, a qual é aceita pelo coletivo em ato de conjuração cega. E, embora seja importante que a maioria “acredite que algo existe” para que se dê a existência, é importante que os que dizem não acreditar também não gerem a descrença.

Por um lado, a suposta existência de deuses independe do meu ateísmo; se eu morrer hoje, apenas eu morro – enquanto os deuses seguem vivos e existentes – pois alguém seguirá acreditando neles, e por eles viverão e morrerão. Por outro lado, hipoteticamente, se um vírus acometesse toda a humanidade e apenas aqueles indivíduos que apresentassem baixa imunidade ao questionamento profundo e a-dogmático fosse vitimizado pela alta virulência, morrendo assim todos o que então creem em deuses, aí sim, todos os deuses morreriam e deixariam de existir. A condição de uma crença é a própria capacidade do ato de crer. Se o ser humano pode inventar deuses, também isso pode significar que deuses deixarão de existir quando seus criadores morrerem. Por assim dizer, a humanização criou deuses, deuses criados para servirem de ferramenta para os animais humanizados, jamais o contrário. Foi assim ao longo da história. Os Maias, Incas, Astecas, Egípcios, Assírios, etc., deixaram de existir enquanto entidades feitoras de grandiosidades, porque deixaram de ter sentido ou porque seus criadores e mantenedores da criação morreram – foram substituídos; seus fiéis morreram; e, ao morrerem, os mataram. Ninguém mais acreditou em certos deuses e, por não mais acreditarem, eles não mais existem.

Nesse mesmo fio de Ariadne, ao acreditarmos que nossa humanização é pacífica e “natural” ela será então naturalizada e pacifista. Não entender o que se passa em mim é quase que um elogio à loucura, ou um alento ao desespero. Dizer que compreendo tudo, sim, poderia soar como uma afirmação estranha e cabulosa. Não faz muito sentido pensar que nos tornamos humanos de forma premeditada, e eu sei disso. De fato, nem pretendo dizer o contrário. Também é menos compreensível supor uma atribuição de valores que faça sentido nesta análise, neste ensaio. Logo, abster-se de dizer se é bom ou ruim ser humano facilita ao menos o debate e os devaneios. Perceber-se em humanização, ou seja, em alterações de estados; entender-se em domesticação, em processos de adestramento e circunscrito em um círculo sem borda – digo, em conceitos e imaginações – pode servir aqui de ponto de observação de si sobre si e de si sobre o mundo. Não obstante, nada disso serve de muita coisa se o objetivo é ter um objetivo. Pelo contrário, quanto mais se analisa o conjunto dito humano, mais tende a ser o desencanto pelo que é dito enquanto humanizado.

E.

A humanização não guarda nenhum sinônimo com a “civilização”. Esta é uma doença crônica que surge a partir daquela. Contudo, ambas não são gêmeas – sequer são irmãs. Esse processo que nos faz crer que estamos nos afastando do animal que sempre fomos é contínuo no sentido de a transformação ser lenta e constante. Entretanto, ele é descontínuo por não apresentar nem uma linearidade nem uma direção. Ele acontece à medida que se chocam as realidades possíveis e se criam aí outras realidades. A humanização se dá no encontro de Homo sapiens que fazem acordos ou que impõem contratos; o imprevisível cria a necessidade; a necessidade cria contextos; os contextos criados se chocam na terrível materialidade, produzem acasos que, por sua vez, geram mais contextos. A cada contato pode haver uma ressignificação. O animal deixa de se perceber animal e é dito, lentamente, humano. Um animal humanizado, mas sempre animal.

F.

Foi assim que, a partir de processos mentais elaborados, que sapiens casualmente começaram uma rede de cooperação que hoje se estende por todo o planeta. Ontem, animais insignificantes e indiferenciáveis. Hoje, detentores de tecnologias que transformam o mundo. Nenhum bando de caçadores-coletores jamais poderia imaginar que de 35 membros em cooperação por grupo suas redes poderiam alcançar milhões e até bilhões espalhados por todo o globo terrestre que sequer precisam saber qual o cheiro um do outro para poder cooperar. A presença física hoje tem [aparentemente] pouca importância.

Se olhar, sentir e tocar o outro sapiens era a única maneira de garantir que este ou aquele existia, hoje isso parece não importar muito. A conexão virtual transformou até mesmo a percepção daquilo que é ser um ser humano. Amamos e odiamos alguém que nunca tocamos e que talvez nunca iremos tocar. Criamos laços que dependem de nada mais que um login a partir de uma senha. Desenvolvemos estruturas cada vez mais sofisticadas e interativas, capazes de uma comunicação instantânea; se em tempos remotos o contato com agentes distantes esperava por dias ou pela próxima estação de caça, hoje alguns segundos podem ser, inclusive, uma eternidade caso a resposta não chegue logo.

A grande questão é que a história do Homo sapiens compreende cerca de 300 mil anos de evolução, e nossa evolução foi marcada pelo contato físico e pelo reconhecimento íntimo e pessoal enquanto necessidade de grupo em praticamente todo esse tempo. Muito recentemente nesse percurso inventamos as redes sociais virtuais, num universo totalmente inesperado, movidos por dados, bits, que não nos deu tempo para uma adaptação que nos permitisse conviver biologicamente bem com essas inovações. Perdemos inclusive a noção de quem somos – se é que esta já foi sólida algum dia.

Transtornos comportamentais, crises existenciais, carência afetiva e uma crescente onda de depressão e de ansiedade sobressaem como a ponta de um iceberg nesse fenômeno de completo despreparo do ser humano em se entender com suas próprias criações. Antes mesmo que a sociedade ocidental se adaptasse ao uso de uma tecnologia como o e-mail e o SMS chegaram as plataformas de contato chamadas de redes sociais, como MSN e Orkut;  mas que foram substituídas e demolidas pelo atual WhatsApp e pelo Facebook. Em cada canto do planeta uma modificação substitui a outra de uma forma mais ou menos intensa. E à medida que o mundo se torna mais conectado e globalizado ele também parece encolher em alcance comunicativo. É como se nos aproximássemos cada vez mais um dos outros, mas com muros invisíveis. Nos aproximamos rompendo as barreiras continentais ao passo que criamos outros obstáculos de percepção do outro humano… tornamo-nos mais conectados; e isso deveria diminuir as diferenças. Entretanto, acontece justamente o contrário. Tornamo-nos mais xenofóbicos, racistas, etnocêntricos e conservadores.

G.

Humanizamo-nos também quando dizemos que somos especiais – pois ser especial só faz sentido se for em relação a algo ou a alguém. Nesse caso, somos especiais em relação a algum grupo humanoide que guarda mais traços daquilo que consideramos mais animal que humano.

Para não cometer injustiças, vale dizer que o ser humano foi capaz de realizações notáveis ao longo da história. Mesmo assim, poucas são as que realmente nos dão orgulho; e que, num olhar frio, deveria nos fazer repensar certas atitudes. A humanização trouxe benefícios que não se podem mensurar no campo da interação. Há pouco menos de 1000 anos, um aborígene da Tasmânia não poderia supor a existência de moradores da atual ilha inglesa – não imaginavam que existiam outros animais humanizados. Até que os ingleses encontraram o esconderijo natural dos moradores dessa ilha ao sudeste da Austrália e decidiram que a humanização ali em curso não era tão boa quanto a do norte do planeta, e resolveram impor uma forma humanizante mais “pura”, ou “ideal”. Nesse sentido, será que estabelecer comunicações foi assim produtivo? Possivelmente sim, mas certamente que não para ambas as partes. O tempo passou, e hoje é possível que ambos os ilhados nem se lembrem desses eventos de colonização com tanto peso quanto à época que ocorreram, sendo possível até mesmo um morador da Tasmânia trocar mensagens apaixonadas com um da Inglaterra. A humanização tem o poder, inclusive, de comunicar, alterar e apagar modos e costumes. O primeiro costume apagado foi o de não haver costumes.

H.

O estado vigente da humanização é tal que ninguém pensa nela como se fosse uma condição que atravessou e que atravessa a nossa história; que cria uma história sobre a história e que modifica o senso de pertencer à própria história. Por muito tempo modificamos o espaço geográfico para nos adequarmos a ele, mas isso durou pouco. Hoje é esse espaço que precisa se adequar ao que nós acreditamos buscar. Se, antes, as estações do ano determinavam quando e onde cresceriam os alimentos, hoje, escolhemos o que rende mais, artificializamos os meios de produção, exploramos os animais humanos e não-humanos e tudo se dá pela relação custo-benefício.

Se, antes, a seleção natural era a responsável por selecionar características “adaptadas” à reprodução e à sobrevivência, hoje, somos nós que criamos diferenças vivas e as ressignificamos enquanto literais objetos de valor. Se o Canis lupus evoluiu para ser um produto mais adaptado de sua espécie ao meio ambiente que pertencia, hoje criamos cães puramente modificados para dizer que temos uma raça garantidamente exótica e que esta vale muito mais que qualquer outra. Deformamos o crânio de um cão até este parecer uma planície – pouco importa se haverá dificuldade de alimentação e de respiração; não é colocado em questão o problema cardíaco potencializado pelo cruzamento doentio que alegra somente aos seres humanizados. A humanização sustenta-se também no status, e ter um animal que nós o incapacitamos está tudo bem, desde que isso nos dê algum tipo de destaque e gere em nosso âmago um sentimento de “segregação invejável“.

Criamos também tipos-humanos aclamados ideais. Construímos estereótipos, marcamos perfis que devem ser imitados, excluímos violentamente os fora do padrão e seguimos acreditando que estamos dentro de uma normalidade. Ser humano não basta, é preciso ser um humano especial e gerar humanos igualmente especiais. Vale tudo para isso, inclusive a escolha do embrião mais desejável que existe: cor dos olhos (azuis), da pele (branca), do cabelo (loiro) e o sexo (masculino)… é como se houvesse um acordo tácito no qual raras (para não dizer nenhuma) criatura humana fosse capaz de não adorar e brilhar os olhos diante de um bebê humano com essas características. Esse fenótipo, tão banal quanto qualquer outro, tão insignificante em si quanto os demais, é hoje um símbolo de status, de sucesso e de desejo. Não à toa; não por acaso; jamais por ser natural; mas porque a humanização inclui também o ato de se auto-eleger significante mesmo quando atributos são biologicamente insignificantes sobretudo no século XXI.

humanização não cabe nessas linhas. Ela extrapola minha capacidade de dizer sobre seu significado. Mas ela está aí, em toda parte. Em mim, em você, e todos e em todas; estamos atravessados por uma humanização. Se eu sei de sua existência para além da biológica; se atribuo sentido à minha vida e à de quantos mais sei existir; se consigo odiar, amar, crer na liberdade, no futuro e no passado; se um humano se comunica, de qualquer que seja a maneira, com outro ser humano; se escrevo este texto e você o lê; então, estamos em processo de humanização.

I.

Há alguns milhares de anos saímos das savanas africanas para todo o mundo; criamos canais sob o oceano e destruímos rios e mares; lascamos pedras e produzimos espadas; dominamos o fogo para nos proteger de animais, do frio e para cozinharmos nosso alimento, mas também incendiamos cidades inteiras para ampliar nossa dominação territorial e nos destacar enquanto grupo. Criamos canoas para nossa diáspora mais despretensiosa entre ilhas vizinhas, inventamos barcos e navios, mas também criamos foguetes e naves espaciais e chegamos até a lua. Dominamos as bactérias e proporcionamos o surgimento das superbactérias; saímos da vida de caçadores-coletores nômades descompromissados para um estado séssil e para sermos escravos de nosso próprio desejo; dominamos a agricultura, mas destruímos o ecossistema; criamos vacinas para salvar a população e inventamos fornalhas e câmaras de gás para incinerar e asfixiar membros de nossa espécie por puro capricho.

Dominamos o átomo, criamos computadores, microscópios, chips, celulares, redes de transmissão instantânea e transcontinentais, geramos energia para cidades, Estados e países; mas nesse percurso também inventamos a bomba atômica e destruímos duas cidades só porque seus representantes não aceitaram o acordo que um determinado grupo humano esperava que aceitassem.

Hoje não brigamos apenas por coisas palpáveis; é pelos dados que nossas guerras, agora sem fogo e sem bombas, travam-se no cenário global. Criamos condições para a produção em larga escala de alimentos; criamos a fome e a diminuímos quanto a escala global; mas hoje matamos mais pessoas pela ingestão excessiva de alimentos que pela privação desses. Mas são os dados virtuais que realmente interessam e que podem saciar a fome – ou trazê-la novamente como um cenário possível.

Por um tempo, predominantemente domesticamos animais para o serviço de campo e os substituímos por humanos preparados que construíam cidades. Hoje os dados virtuais ameaçam os empregos físicos dos coitados; somos nossas próprias vítimas. A inteligência artificial nos conhece melhor do que nós somos capazes de fazer. Inventamos coisas que funcionam melhor que nós quando o assunto é conectar e integrar informações e prover soluções rápidas. Entregarmos nossa confiança a um GPS, a um aplicativo de encontros, e a um medidor de parâmetros bioquímicos. Estaríamos em um novo processo de humanização, o qual ultrapassa a nossa percepção de humanidade? Qual será o próximo passo?

Independentemente do que tenha acontecido; livre de qualquer ideia do que seja a humanização, ela jamais conseguiu fazer do Homo sapiens um animal satisfeito. E talvez compense arriscar que a insatisfação seja o combustível de toda humanização. No dia que a satisfação for atingida – considerando utópica a realização dessa utopia – creio que também o processo (ou esse processo) de nos humanizarmos chegará ao fim, e seremos desfeitos, desmanchados, desvanecidos, “como, na orla do mar, um rosto de areia”. E, quem sabe, inicie-se um processo que talvez mereça mais o nome de cyberificação que de humanização. Pior que tudo isso, somos animais humanizados que nunca soubemos para onde queríamos ir – e permanecemos perdidos e sem bússolas; ainda não temos certeza do que acontecerá no segundo seguinte da história – pautamo-nos em previsões que apesar de guardar alguma chance de estarem certas, permanecem pouco otimistas e não muito confiáveis. Um acontecimento pode mudar tudo. Não fomos capazes de prever o Nazismo, e quando ele ocorreu, não fomos capazes de eliminá-lo imediatamente – se é que havia esse desejo ou objetivo. Planejamos cidades e impérios, mas nunca teríamos sido capazes de imaginar um mundo virtual tal como o que hoje se mostra. A internet nunca foi um plano, mas alterou todos os planos desde que ela foi criada.

Uma constatação é proeminente: não sabemos o que queremos! Somos seres em desamparo que se ilude em se amparar sabe-se lá em que. Somos animais insatisfeitos, inseguros, confusos e aturdidos. O nosso senso de responsabilidade está desde sempre desajustado e inutilizado por nossa própria falta de direcionamento. Somos irresponsáveis com praticamente tudo. Não respeitamos o meio ambiente, os recursos naturais, os espaços de cada indivíduo nem o que estes supostamente possam desejar. Tratamos os animais não-humanos como objetos cuja função é a de nos servir como fonte de realização de prazeres. Não sei ao certo se damos o devido valor ao sofrimento de qualquer que seja o ser vivo. Somos medíocres, mesquinhos, insaciáveis,  inteligentes, corajosos, criativos, despretensiosos, unidos, segregados e inconsequentes. Contudo não aceitamos todos esses rótulos – rejeitamos cada dos quais nos irritam com um argumento que se constrói e se destrói a cada era, a cada período histórico. Adoramos deuses mais por desejarmos ser iguais a eles do que pelo que eles realmente possam significar. Na incapacidade de uma realização de nossos desejos no momento, desejamos a imortalidade e a eternidade – desejamos nós mesmos nos tornar deuses. Nossa insatisfação é crônica e preocupante; e, assim como disse Yuval N. Harari, “existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?³

 * * *

Se por um lado eu comecei o texto dizendo que não entendo muito bem o que se passa comigo e em mim, por outro, talvez seja este o momento apropriado para admitir que muito provavelmente eu sofro dos efeitos colaterais de uma humanização, e dos quais nenhum humano pode escapar vivo. Apesar de tudo isso, permanece a pergunta que nunca encontrou uma resposta no consenso de Homo sapiens: o que é ser humano?

* * *

 

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
Escrito em setembro de 2019.


NOTAS 

(¹) Clarice Lispector. A Hora da estrelaEditora Rocco, 1ª edição, 1998. Pg. 40.

(²) Michel Foucault. As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas (lançado em 1966). Martins Fontes, São paulo, 2000 [(*) página XIX, do prefácio; (**) página 536].

(³) Yuval Noah Harari. Sapiens – uma breve história da humanidade. Ed. L&PM. 27ª edição. 2017. Pp. 428.

(As imagens utilizadas para compor a capa dessa publicação foram obtidas aqui: crânio de Homo sapiens; astronauta)