Carta à humanidade Ocidental do Século XXI
[19.dezembro.2019]
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Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim1, aonde começa a estupidez e aonde termina a coerência. O tudo e o nada. O eu, o nós, o você e o eles.
Eu sou o ódio constitutivo das destruições, o amálgama que une o inútil ao desagradável, o despropósito da criação, a sujeira na história, a injustiça do justiceiro. Sou porque existo; existo porque você me fez, e te faço à medida que continuo a existir – não sou quem você me desenha, mas me desenho dentro de ti com intensidade tal que nossas imagens – criadas uma a semelhança da outra2 – fundem-se num espetáculo reluzente e alucinante de poderes e submissões. Estou para você como a chama está para a mariposa; vivo por você como vive a manada para o leão; como está a luz para as trevas e como é a morte para a vida, somos nós em parceria que é fim.
Milagres mesquinhos foram feitos para mitigar a minha fama. Não conseguiram. Transformou-se a água em vinho3, a cegueira em visão e a paralisia em movimento4. Mas nada disso sou eu. Eu sou aquele que fomenta a guerra, que tinge a terra e os mares de vermelho, que derrama o sangue inocente e o converte na água que me desce pela garganta, na tentativa frustrânea de saciar a minha sede insaciável por violência, rangeres de dentes5 e estalares de açoites. Eu sou a espada que cega, sou o cortar das pernas, sou a dor que gera terror e clamor, o desespero que entorpece em movimento cíclico, a angústia qual nem o sábio suporta6. Por mim clamam os coitados e degenerados; se não estes, que clamem, então, as pedras7.
Eu sou a sua dor quando você não precisa de dor; sou o seu terror quando você está bem; sou o abismo que te convida a olhar para as profundezas da ignorância e ali encontrar a resposta para tudo; um tudo que, novamente, é nada. Eu sou a anti-ciência, o anti-saber, o anti-ser, o anti-anticristo.
Eu ainda sou os chicotes sobre os escravos cujos gritos até hoje ecoam na história do mundo8; sou os grilhões dos que sequestraram com doce e musical violência os negros africanos; sou o que arrancou de suas terras mais de 12 milhões de humanos9 para puro prazer e lucro de meus filhos amados. Sou o prazer de quem espanca; a satisfação de quem pune; os olhos do vigia, as grades da prisão, o tiro nos pretos, o soco nos homossexuais. Bebo as dores e as tristezas dia e noite; eu como de seus pecados e de suas estúpidas lamentações a cada culto de abate – o abate de sua inteligência. A sua desolação é o meu pão de cada dia. O pão nosso de cada dia10te dou hoje, amanhã e depois.
Eu sou, e isso se pode negar?, onipresente, onisciente e onipotente11 – a tríplice da perfeita mediocridade. Sim, sou onipresente; estive inclusive nos navios dos traficantes de humanos, e não quis me pronunciar – deixei-os sofrer a dor da morte para ver se assim eu me alegrava num céu pacato e tedioso, mas foi pouco. Estive no genocídio de Ruanda12; vi cortarem as mãos dos congoleses que não atingiam as cotas diárias de colheitas13; roubei o pão durante a fome de bengala na Índia14; sou a pulga do rato da Europa do século XIV15; assisti de camarote a destruição dos Astecas16; estou ao lado da navalha que mutila as somalianas17, do ácido que queima as faces femininas18, do tronco que empala19 e da guilhotina que desce20; sou a mão que aperta o gatilho. Sou onisciente – logo, sabia de tudo, vi corpo a corpo dos capturados na África sendo lançados ao mar porque estavam infectos, sujos, mortos ou em excesso; ouvi todos os gritos. Todos! Sou onipotente, podia e posso tudo que eu quiser – se tudo vi e de tudo participei, mas também se nada fiz e se nada faço pelas criaturas que sofrem é porque estou ocupado demais em outros negócios, talvez dormindo, mas não apenas isso. Afinal, o que seria de mim se todos os males do mundo [os quais eu mesmo criei e aos quais me dedico de dia e de noite na eternidade] deixassem de existir? Do que eu me alimentaria? Quem clamaria a mim se não existissem pesares, sofrimentos, violência? Nem as pedras clamariam! É preciso constantemente inovar o que me dá prazer!
Por isso, eu sou o gás de Auschwitz, o fogo incinerador, o massacre dos 6 milhões de judeus21 – o meu amado povo judeu; sou as cadeias dos gulags soviéticos22; as ditaduras23, os totalitarismos24, os fascismos25, as opressões inesgotáveis. Sou o capitalismo26 que te ilude, te estrangula, te explora e dilacera a sua vivência e consome o seu cérebro, mas que também te convence desse triunfo da humanidade – que prende a placa de “sejam bem-vindes” logo frente ao poço sem fundo chamado liberdade27. E por falar em humanidade, lembre-se de que eu estava em cada estupro de guerra28, desde Nanquim, União Soviética até a invasão na Bósnia. Eu sou o desumano de cada ser humano – ou, como preferem as mentes mais espertas que me desprezam: sou o verdadeiramente humano em cada Homo sapiens. Se vi as mulheres sofrerem, gemerem o desespero da morte e gritarem por socorro quando seus corpos eram brutalmente invadidos e seu psicológico devastado, também não quis me pronunciar – que tenho eu com isso? Livre arbítrio! Agora mesmo enquanto você me lê, uma mulher morre no Brasil, somente por ser mulher – mas a culpa é minha? Quem mandou comer do fruto que eu proibi? Faltava-lhes fé? Eu vi, eu vejo, eu sei, estava lá, estou aqui – estou em toda parte, posso tudo. Você me diz isso todo dia a cada dobrar de joelhos, a cada cruzar de braços diante de uma catedral, a cada ato insano e verdadeiro de reverência, a cada desatino que pede por socorro; você me alimenta mesmo quando com meus dentes [que são seus] arranco a sua carne e bebo do calor de seu sangue; existo porque você existe. Como poderia ser o contrário?
Copérnico, o lunático, tentou tirar a minha criação do centro do universo; Darwin, o herege, ousou dizer que o ser humano não foi invenção minha; Freud, o pervertido, quis iludir a massa dizendo que quem mora em você não sou eu, mas a trindade Id, Ego e Super Ego29. Todos inocentes e tolos. O meu licor é mais atraente. De um lado a ciência e a psicanálise tentam forjar um ser humano, mas de outro a minha ideia de vida e de criação supera tudo, porque é o ópio em si, é aquele que envenena qualquer mente atribulada e aturdida – e a maioria dos humanos são atribulados e aturdidos. Ao menor sinal de medo e de ansiedade clamam pelo inexistente, criam o consolo e inventam um paraíso. Talvez porque a única maneira de fingir um sofrimento que se extingue é criar um mundo onde só ali todos os desencantos são nulos, nem choro e nem pranto30, só alegrias. Com isso, dia após dia, noite após noite, dose após dose, você bebe de mim [que sou você], mente a si a mentira da vida eterna. Tudo isso para fingir uma paz dentro do inferno. Um inferno que é a sua vida, mas que transmutada se torna céu.
Eu te pego no colo, te carrego na areia31, te suponho o carinho, te chamo de meu e de minha. Eu sou o amigo que te apunhala pelas costas, que te seduz para depois te engolir numa só mordida. Sou a luz do peixe abissal, o tigre entre as folhas secas, a cobra no ato do bote. Sou o seu desejo, a sua vingança, a perversão – a sua perversão que ferve em erupção maligna.
Eu sou a eugenia e a segregação vestidas de bondade e de cuidado. Sou o mar que se fecha sobre o exército de Faraó32, que mata sem dó nem piedade, mas por promessa – sou a praga, a peste, a fome, a morte33; Sou o urso que devora quem afronta a calvice de meu pupilo34 – amo uma vingança sem sentido; eu sou a terra que se abre e trucida numa fome divina quem não me adora35; sou as pedras que matam o coletor de lenha ao sábado36 e que apedrejam a mulher adúltera37 [principalmente as mulheres]; sou o fogo que desce do céu e que consome soldados e generais38, queimo prazeirosamente os profetas de Baal39, tudo por puro capricho infantil de morte, desejo de sangue, ânsia de glória, destruição no mais elevado requinte de desprezo e calamidade. Tudo porque não posso provar minha potência se não pelo rebaixamento de meus inimigos.
Eu sou a criança mimada que cansou de seus brinquedos e que num dilúvio40 jogou tudo na banheira cheia de água; destruí Sodoma e Gomorra41 porque o gozo erótico dos humanos me irrita e me inveja; seus prazeres são intensos e eu – o criador Mor – sou privado dessa lascívia animalesca que me seduz ao passo que me causa fúria – Ah! como eu queria ter o gozo humano! Mas, se não posso, vocês também não podem. Sou fogo devorador42, sou a vingança, a atrocidade em tempos de paz – e faço do fogo minha sentença. Se deitam homem com homem ou mulher com mulher: fogo!43 Se mostram seus corpos: fogo! Se inventam posições na cama, no sexo e nos prazeres: fogo! Tudo que eu não consigo praticar e que desejaria fazer ardentemente o faz os humanos – isso me corrói acidamente. Por isso, fogo neles! Fogo em você!
De minha inveja covarde, de meus mais pérfidos segredos descomunais e dos abismos de minha podridão ninguém pode escapar! Meu abismo é seu abismo; sua dor é minha dor; minha raiva e meu ódio mais autênticos também brotam de você. Estou em você e você em mim, numa só carne, num só corpo, numa só imundície. Numa só alucinação. Numa que se junta em bilhões – que me constroem e me fortalecem em cada um. Sou a narrativa do seu pesadelo. Sou a miséria que deu certo, que engana a fome e tapeia a sede. Sou a construção milenar do que há de mais impróprio em cada ser.
Sou o amor fingido e enganador que envia o suposto filho para ser torturado na terra44. Sou o sangue dele, o sofrimento dele, a sua tentação no deserto, as chibatas alvoroçadas em suas costas humanamente desumanizadas, sou as mãos lavadas de Pilatos, o ódio escarnecido que pregavam os cravos; sou o abandono na cruz. Mas tudo isso por… “amor”. Um amor sujo, prepotente, iníquo, atormentado e mentiroso. O meu amor é como a mão que te apedreja enquanto te afaga, é aquele que escarra em sua boca enquanto te beija45.
Sou o favorecimento do corrupto que pede com jeitinho; sou o telefonema que privilegia o ser privilegiado; sou aquele que permite os mais destrutivos acontecimentos. Permiti a morte do inocente num assalto, o estupro na esquina escura, o furto ao pobre, o enriquecimento ao milionário; permito a injustiça e a desigualdade. Permito o emburrecimento coletivo. Afinal, sou a vantagem de ser útil apenas por conveniência de quem me usa. O que eu quero é o que agrada aos povos narcotizados pelo meu aroma – o que não lhes agrada dizem que foi permissão. E, ainda assim, sou o seu modelo de justiça. Dessa maneira lenta e gradual vou avançando nos séculos, contaminando as crianças com a crença em minha amabilidade; destilando o meu veneno nas sinagogas, igrejas e mesquitas – todos bebem de mim que são eles. Todos tão ingênuos que eu poderia repetir a cina mais dez mil vezes; e cairiam como uma presa na armadilha – e ainda dariam glórias e aleluias ao meu nome. Pois quem sou eu se não eles? Quem sou eu senão você? Sou os braços de Shiva, a calma de Buda, a retidão de Confúcio, a degeneração própria do Cristo.
Eu sou a sua consciência aonde não se percebe a consciência. Sou o nome que você dá àquilo que não tem resposta. Sou a resposta mais distante para um fato – ali, aonde nenhuma explicação racional encontra suporte, lá, aonde nenhuma lógica se aplica e nada faz sentido, você escreve o meu nome e diz que fui eu quem fiz e quis assim. Sou a resposta do tolo para coisas inteligentes que são “tolificadas“. Tolos, mas não desprezíveis; alucinados, mas não incapacitados. Apenas são receptáculos cegos de minha bondade usurpadora e cancerígena. Sou a negação do bom senso, e você me bebe diariamente. Sou o que emana de suas entranhas, e que você sequer aceita ser você; sou o seu veneno, a sua ira, o seu ódio de si mesme; sou tudo que você nega e tudo que sua negação produz. De novo: quem sou eu senão… você?
Eu sou o ser humano transportado para fora do corpo. Sou a alma humana. Sou a sua esperança ontem, hoje e amanhã. Eu sou todos os humanos que me pronunciam. Morrendo todos que me creem também morrerei eu. Sou a liberdade, a felicidade, a paz, a verdade e o amor – sou o ouro dos tolos.
Sou o consolo de quem se acha um ser precioso demais ao ponto de, num cosmo praticamente infinito, acreditar todos os dias que eu estou olhando e cuidando de cada uma de suas vaidades, de cada solo em que seus pés tocam. Nesse pálido ponto azul eu sou o consolo de que tudo ficará bem; sou o amparo diante da morte, do choro e da perda. Sou a ilusão de que tudo é passageiro, mas que no amanhã reside a recompensa dos rancorosos e a danação dos revoltados. Sou o seu desejo de morte quando não se pode matar; sou a sua homofobia quando ela não pode ser revelada; o seu racismo quando não se quer se comprometer; sou o tiro e a violência da polícia quando você é quem queria atirar e maltratar. Sou o nome dado ao desejo que arde em seu peito, mas que por temor mentiroso você não pode fazer nada, mas que se pudesse…! Eu sou parte da humanização46!
Sou você que não se sabendo sujeito se assujeita.
Eu sou a sua essência – sou a sua consciência47.
Assinado: Deus.
[O seu amado Deus]
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Andreone T. Medrado
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Testamento assegurado por DeusREFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
(1) Apocalipse, 1:8.
(2) Gênesis, 1:26.
(3) João, 2:9.
(4) Mateus, 21:14.
(5) Mateus, 8:12.
(6) Eclesiastes, 7:7.
(7) Lucas, 19:40.
(8) Leia sobre esse tema nas referências A, B, C e D.
(9) Thornton, John (1998). Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400 –1800. 2nd ed. New York: Cambridge University Press. ISBN 978-0-521-62217-2.
(10) Mateus, 6:11.
(11) Salmos, 139.
(12) Entenda o genocídio de Ruanda de 1994: 800 mil mortes em cem dias.
(13) Como a Bélgica decepou mãos, braços e matou mais de 15 milhões na África.
(14) Fome de 1943 em Bengala – Índia.
(15) La Peste Negra (1346-1353): La historia completa.
(16) A história vista de baixo: a visão Asteca da conquista Espanhola.
(17) Mutilação genital feminina : uma revisão integrativa, pg. 15.
(18) A sociedade de rostos. Mulheres sem rosto como indício de novo humanismo nas redes sociais.
(19) Compêndio de Instrumentos de Tortura e Execução na Idade Média Européia.
(20) Hilary Mantel. A sombra da Guilhotina.
(21) Laurence Rees, 2018. O Holocausto.
(22) Bruce O’Neill, 2012. Of camps, gulags and extraordinary renditions: Infrastructural violence in Romania.
(23) Carlos Fico; Marieta M. Ferreira; Maria P. Araújo e Samantha V. Quadrat (Orgs.). 2008. Ditadura e Democracia na América Latina.
(24) Hannah Arendt. As origens do Totalitarismo.
(25) Madeleine Albright, 2018. Fascismo – Um Alerta.
(26) Thomas Piketty, 2014. O Capital no século XXI.
(27) Uma estranha ideia de liberdade, 2019.
(28) Estupros de Guerra.
(29) Andrei Martins, 2019. As feridas narcísicas: Copérnico, Darwin e Freud.
(30) Apocalipse, 21:4.
(31) Poema “Pegadas na Areia“.
(32) Êxodo, 14.
(33) Êxodo, 7-11.
(34) II Reis, 2:23-24
(35) Números, 16:32.
(36) Números, 15:32-36.
(37) Levítico, 20.
(38) II Reis, 1:10.
(39) I Reis, 18.
(40) Gênesis, 7.
(41) Gênesis, 19.
(42) Hebreus, 12:29.
(43) Levítico, 20:13.
(44) João, 19.
(45) Augusto dos Anjos. Versos Íntimos. IN: In: REIS, Zenir Campos. Augusto dos Anjos: poesia e prosa. São Paulo: Ática, 1977. p.129-130 (adaptado).
(46) Um ensaio sobre a humanização, 2019.
(47) Qual o nome da sua consciência?, 2018.
NOTA: A imagem utilizada para compôr essa publicação foi obtida aqui.
Maranata !!!!
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