Em 1975, no “Novo Dicionário da Língua Portuguesa¹, a palavra “Negro” tinha conotações que espantaria qualquer pessoa de 2019. Foi o que pensei antes de fazer essa busca do termo. Logo em seguida, questionei-me mais a fundo, e agora me pergunto se será que isso é mesmo verdade. Será mesmo que a leitura do que ainda se diz por “negro” em pleno 2019 causaria espanto a qualquer pessoa?

Neusa Santos Souza, em seu impactantemente e ainda atual livro “Tornar-se Negro², diz que “o sujo está associado ao negro: à cor, ao homem e à mulher negros. A linguagem gestual, oral e escrita institucionaliza o sentido depreciativo do significante negro: o ‘Aurélio’, por exemplo – para citar apenas um dos nossos mais conceituados dicionários – vincula ao verbete “negro” os atributos sujo, sujeira, entre dez outros de caráter pejorativo“.

Cabe, então, uma ressalva, que expressa o quanto a obra de Neusa permanece atual em nossa história e psicologia: seu livro foi escrito em abril de 1983 – há mais de 36 anos -, contudo, atualmente, em novembro de 2019, eu refiz uma busca em um outro dicionário online – o Michaelis³ – e obtive o que você pode ver na figura abaixo. É perturbador como “parece” que nada mudou. “Mudaram as estações, nada mudou“. Associações pejorativas e discriminatórias continuam fortemente presentes quando se busca uma significação para o termo negro“.

Negro - Michaelis

Não existe racismo no Brasil“, afirmam os hipócritas em seus corações. Se dizer que negro é algo que “inspira medo ou pavor“, bem como aquilo que “revela crueldade e sordidez” é por si um grito à monstruosa capacidade de pejorar o termo, imagine quando se afirma, por exemplo, que negro é “aquele que vive sujeito a um senhor” ou que negro é uma “pessoa que trabalha muito“, exemplificando isso numa frase ainda mais racista e violenta: “Há um ano trabalha feito um negro“. Todas essas frases são mencionadas em um dicionário online, em pleno 2019.

Considero importante e útil mencionar o que dizem os dicionários online porque, considerando a conectividade e o acesso à informação disponível a muitas pessoas, é geralmente o meio de consulta utilizado. Para trazer outros exemplos, selecionei definições dadas, por exemplo pelo Priberam DicionárioDicio – Dicionário OnLine de Português; mas você também pode consultar outra fonte popular, como a Wikipédia, para saber definições mais pertinentes sobre “negro” enquanto termo, ou “negro” de modo mais abrangente. Entretanto, não deixa de ser útil a verificação de fontes mais específicas, com maiores esclarecimentos pautados em estudos acadêmicos.

Negro - Priberiam Dicionário

Negro - Dicio

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Essas são umas das razões pelas quais devemos cuidar mais do nosso vocabulário que, não raramente, tomamos por vício. Ao dizermos coisas como “mercado negro”, “magia negra”, “grana preta”, etc, estamos de fato reforçando o estereótipo e a semântica da palavra “negro(a)” e “preto(a)” enquanto algo ilegal, prejudicial, clandestino, logo, errado. Mas também cabe pensar que esse movimento difamatório e estereotipificado pode se dar no sentido indireto, ou seja, quando usamos uma palavra que se opõe ao “negro” ou “preto” mas que por isso é tida como também oposta em sentido. Quando falamos em “inveja branca” ou em “arma branca”, por exemplo, estamos dizendo que o ser “branco” é uma qualidade “boa”, ao passo que nos outros exemplos a qualidade oposta é dita como “negra” ou “preta”. Não é o “normal” ouvir ninguém dizendo algo como “a coisa está preta” ao se referir a uma situação maravilhosa; tampouco dizem que “humor negro” é um estado de humor pleno e satisfatório, pelo contrário, essas expressões carregam em si um sentido pejorativo, alarmante e de negação. Pensar e repensar nossos atos é importante, mesmo que os vícios vocabulares sejam tão recorrentes. Não é porque acontece desde muito tempo, ou porque todos e todas dizem, que está correto e que deva ser aceito.
#VocêJáParouParaPensar?

Por essas e outras coisas que tornar-se negro é uma tarefa árdua, por vezes cansativa, porém necessária. Há uma série de fatores que afetam a vida dos negros e das negras. A concordância com o status quo é de longe um grande empecilho. Nossa sociedade é racista! Mas não pode mais continuar assim! #SeremosResistência!

 

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vjppp

 

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTAS:

(1) Ferreira, A. B. H.Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1975.

(2) Neusa Santos Souza. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1983. Pg. 29. [Leia esse livro, ele é importante!]

(3) Link para a definição de “Negro”, segundo o dicionário Michaelis: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/Negro/

OBS: A imagem (na foto: Karol Conka) utilizada para compôr essa publicação foi obtida aqui.