Bom seria se me fosse dada a compreensão que muitas pessoas têm da vida: que ela acontece com propósitos definidos e que cada coisa que acontece assim o é porque deveria ser – ou, numa hipótese mais mesquinha, o é porque alguém quis que assim fosse. Bom seria se houvesse um arquiteto geral que tudo fez, porque assim teríamos a quem reclamar os problemas. Mas esses “bom seria” duram uma fração de segundos e logo se desfazem em ridículos devaneios. Se, por um lado, achar que existe um propósito justificador da vida e dos acontecimentos e que há um criador universal faz do humano um ser aparentemente orientado, por outro, isso não passa de uma mentira infeliz. E creio que seja melhor se decepcionar por saber a realidade das coisas do que estar diariamente imerso numa ilusão profunda que impede qualquer que seja o pensamento crítico. Bom seria, mesmo, se, num tom um tanto quanto otimista, as pessoas pensassem mais nas coisas que dizem, acreditam e fazem e deixassem de arrumar uma válvula de escape para cada problema que surge. Assim, neste texto eu chamarei o conceito de ódio para a nossa conversa. Há quem o veja como vilão, mas fazer isso é também tapar o campo de visão que revela os destroços do Antropoceno.
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Bom seria se o único problema do mundo e da suposta humanidade fosse o ódio. Digo “bom seria” porque assim reduziríamos a crescente destruição a um único sentimento. Logo, poderíamos dedicar mais atenção a esse ponto exclusivo e, quem sabe, haveria esperanças. Mas não faz sentido pensar que seja ele – o ódio – algo responsável por promover toda a destruição que somos capazes de perceber. De igual maneira, penso que o dito amor entra na equação apenas para criar falsas sensações de que existe uma imaterialidade capaz de alinhar o eixo da humanidade, trazendo a ela a coerência e o sentido de existência até agora “entocados em algum canto do universo”. Existe algo muito além do ódio que torna as coisas como elas são: invariavelmente falidas.
Bom seria se certas atitudes que vemos e praticamos diariamente fossem cessadas ou, que seja, reduzidas drasticamente. E bom seria se o que chamam de ódio não fosse na verdade algo muito pior do que é: a banalização do mal. Bilhões de animais são mortos todos os anos para alimentar pessoas que fingem nada saber – ou, o que é pior, de fato não sabem de onde vem o que comem [?]. O sofrimento é tratado como se fosse normalizado, e é, então, diferenciado, selecionado e direcionado. As pessoas ignoram por completo que organismos não-humanos podem sentir dores e “angústias”, e essas mesmas pessoas ainda são capazes de direcionar o que chamam de empatia a determinados grupos animais específicos. Os pets (cães, gatos, aves e peixes ornamentais) merecem todo cuidado possível; recebem tratamento e atenção e ainda ganham um nome e um lugarzinho especial na casa. Nessa mesma residência, dotada de empatia e de amor, come-se alegre e prazerosamente outros animais em todas as refeições. Talvez, não por culpa de ninguém ali; não porque as pessoas seriam horríveis… mas porque o sofrimento e a dor estão banalizados antes mesmo do nosso nascimento; nossos comportamentos repetidos reproduzem e magnificam essa banalização de forma estrondosamente silenciosa, num escândalo que não se ouve talvez porque seja constante demais para ser percebido. Faz-se o que se faz por ignorar por completo o que cada ação de fato significa. Banaliza-se o ato de sofrer e a causa do sofrimento, diariamente. Bom seria se isso não fosse dessa maneira.
Bom seria se houvesse uma atitude consciente de respeito à vida, e se ela acontecesse por e para todos os lados, mas não é nem perto disso que a situação humana se mostra. Pois, até mesmo um olhar desatento é capaz de notar que exploramos também seres humanos tal como fazemos com nossos objetos diários – usamos, usufruímos e, quando eles não mais atendem às nossas expectativas, substituímos um por um, lançando-os no lixo; ou no esquecimento. Alimentamos uma rede global de relações mercadológicas que esgota a energia de outras pessoas, que sustenta um sistema exploratório, somente para possuirmos um tênis de marca, uma roupa de grife, um smartphone da moda e uma comida que carrega um status por consumi-la. Vendemos a nossa vida a troco de moedas e ainda acreditamos estar construindo um futuro honroso. Que honra! Que futuro! Às vezes, e bem raramente, temos consciência de que nos degeneramos para podermos existir; de que nos perdemos em nossas escolhas (quando elas existem) simplesmente para supormos seguir existindo. Mas bom seria se tivéssemos mais tempo de parar para pensar. Quem sabe, assim, enxergaríamos nossa condição estranha e desordenada. Ah! que bom que seria…
Bom seria se as invenções desastrosas da humanidade nem tivessem ocorrido, mas, no caso de suas ocorrências, que tivessem acontecido não por ganância, mas por um “tenebroso descuido” que seria logo evitado a qualquer custo. Mas não! Se aprendemos algo com a potência da tecnologia, por exemplo, foi que ela nos torna cada vez mais poderosos, gananciosos, exploradores, destruidores e igualmente perdidos, desorientados e inconsequentes. As bombas atômicas destruíram desde cidades até a confiança – nesse caso, a confiança vestigial na capacidade de controle do ser humano em relação aos seus anseios e impulsos mais obscuros.
Bom seria se eu não tivesse sequer pensado em escrever essas coisas pelo simples fato delas não serem e/ou não terem sido verdadeiras, necessárias ou de algumas delas estarem acontecendo inclusive neste exato momento.
Bom seria se o único aturdido fosse eu.
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: A imagem utilizada para compôr essa publicação foi obtida aqui.