Quero começar esse texto resgatando um importante trecho de um longo ensaio que escrevi aqui no blog recentemente:

“O amor romântico, esse mesmo pelo qual pessoas “vivem e morrem”; o amor que o ocidentalismo desenvolveu em suas narrativas épicas, aquele amor que deve ser mostrado, buscado, exposto, perseguido com a própria vida e desejado até à morte; o amor cristão, que serve de marcador de um significado mais intenso do que é ser humano; todos esses exemplos de amor, a quem são destinados? Que sujeito corporificado pode ser contemplado por esse jeito de amar? Novamente, como diz bell hooks ao longo de seu texto “Vivendo de Amor”, pessoas negras não têm essa permissividade social para amar. Seu amor é reprimido desde tempos de escravização, em que mostrar seus sentimentos era sinônimo de atentar contra a própria vida. O amor não-branco foi silenciado historicamente.

Até hoje esse silêncio ecoa nos corações negros; muitas pessoas negras não se sentem amadas, não se sentem desejadas e têm dificuldades de mostrar seu amor. O afeto ainda é mantido sob escolta do medo e de outros fatores sociais, como a dor, a insegurança e a pressão pelo [sobre]viver. Na tentativa de demonstrar esse amor reprimido, ressignificamos os nossos afetos em cuidados materiais. Muitas pessoas negras acreditam que prover exclusivamente cuidados materiais é sinônimo de amar; sabemos que, sim, tal ação faz parte do amar, no entanto sabemos também que não é só isso. Acontece que ao longo da vivência, nós, pessoas negras, fomos ensinadas a sobreviver, enquanto o amar foi deixado em segundo plano: ama-se caso dê tempo antes de morrer. E enquanto a morte não chega tenta-se [sobre]viver.

Nesse vai e vem dos afetos sociais, o amor que circula por aí é o amor branco, o amor permitido e aclamado; o amor que pressupõe vida. E pessoas brancas “querem nos amar” e “querem que lhes amemos” da mesma forma. Mas são linguagens diferentes. E se elas não forem compatíveis, ou compatibilizadas, esse amor nunca será real. Será indutivo, impositivo e autoritariamente hierarquizante.

Pessoas negras são, sim, capazes de amar e de viver a sensibilidade afetiva do outro ser; mas não é a partir desse amor branco socialmente codificado para representar ascensão e liberdade. Queremos espaço para poder ser quem somos sem aquele medo histórico de sermos punidos por isso. Queremos a segurança de que somos pessoas amadas e amantes, não objetos e divertimentos. E até entre pessoas racializadas o amor branco tem sido tomado por modelo. Um modelo falho, mas que tem se espalhado no solo fértil do racismo estruturante da nossa sociedade” [clique aqui para ler o texto completo].

Considerando as dinâmicas afetivas que o trecho acima nos convida a repensar, podemos refletir sobre como esse modelo branco de amar espalha suas raízes sobre a não-monogamia. Antes disso, cabe destacar que dentro da ideia de “amor branco” a branquitude se coloca como o modelo social e estético a partir do qual as ações sociais devem acontecer, inclusive nas relações afetivo-sexuais. Desde o padrão de beleza, a escolaridade, a renda, até o estilo de vida, a branquitude busca homogeneizar um maior conjunto de símbolos que histórica e estruturalmente constroem um padrão normativo. Na impossibilidade concreta de haver grupos de fato homogêneos, a branquitude busca construir pontes entre as diferentes vivências e colocar sobre tais pontes pedágios para que todos os sujeitos as atravessem; o preço do pedágio é o valor gasto por se dedicar a imitar o determinado e circunscrito modo de ser e de viver que ela propõe.

Mas o que é branquitude? Bom, para responder resumidamente essa pergunta, trago um trecho do texto de Lia Vainer, a qual diz que

“a branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade. Portanto, para se entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem as estruturas de poder fundamentais, concretas e subjetivas em que as desigualdades raciais se ancoram”.[1] [Grifo meu].

Nesse sentido, todo o constructo da branquitude, quando aplicado às possibilidades de relacionamentos, e nesse contexto os não-monogâmicos, geram grandes distorções e, como não seria diferente, onde tem aspectos de branquitude instituem-se dinâmicas de desigualdades e de dominação. E os discursos mais recorrentes dentro da não-monogamia propagada por pessoas brancas caminham no sentido da liberdade individual, da autonomia emocional e do autocuidado intransferível.

Pessoas brancas e de classe média geralmente idealizam e acreditam em relacionamentos nos quais não exista a menor suposição de algum apego emocional muito intenso, ou que seja de dependência emocional, como costumam classificar quando sentimos a falta de alguém e pedimos por mais presença na relação. Se por um lado a dependência emocional pode, sim, atingir níveis complexos e danosos à saúde mental, por outro lado, arrisco o palpite de que todas as pessoas dependem de afetos (que se apresentam na forma de produções emocionais) em menor ou em maior grau.

O ser humano se produz a partir de outro ser humano. E esse processo não é dado, mas se constrói ao longo da multiplicidade da história de vida de cada pessoa. A partir dessa dinâmica de relações nas quais um indivíduo se constrói a partir de outros, supor uma individualização completa é quase como um surto narcisista egocêntrico, característico das atuações genocidas e egocentradas, presentes na história da colonização e da dominação branca. Entre outras possibilidades, a branquitude existe porque ela conta com o dispositivo do pacto narcísico da branquitude[2], no qual existe o fortalecimento de uma estrutura de poder ao passo que seus integrantes defendem num mesmo objetivo: pactuam que se protegerão de tudo que não possua brancura, resguardando seus privilégios historicamente.

Da Liberdade Individual

No que diz respeito ao discurso branco sobre a não-monogamia pautado na liberdade individual, estou me referindo ao ideal de vida que é também patrocinado pelo capitalismo e pelo colonialismo, o qual enxerga o indivíduo como um organismo capaz de conquistar uma autonomia que também lhe dê liberdade. Ser livre é a maior promessa do capitalismo; estar livre passa a ser o sonho de quem se encanta com suas promessas; um sonho que se converte em delírio. A liberdade é aquela luz que confunde a mariposa, fazendo-a achar que se trata de ponto luminoso que brilha no além, mas que a atrai de tal modo que na ilusão de voar orientando-se pela luz ela acaba queimada pelas chamas da lamparina. Como as chamas não se apagam, e como mariposas seguem se [re]produzindo, corpos e mais corpos perecem em suas jornadas buscando por uma liberdade que nunca foi real e que nunca foi sobre viver.

Pensando em contextos mais concretos, quem vive em periferias ou em regiões marginais às cidades, quem se encontra permanentemente em situação de pobreza e que enfrenta as profundezas sociais e psicológicas das inseguranças alimentar[3] e financeira nem sempre [ou raramente] conseguiria a tal liberdade individual, caso ela existisse.

“A insegurança alimentar tem sido considerada como um problema de saúde mundial. Nos Estados Unidos, uma pesquisa envolvendo crianças e famílias de baixa renda, encontrou 30,7% de insegurança alimentar. Na Colômbia, um estudo também conduzido com famílias de baixa renda observou 51,8% de insegurança alimentar. Em estudo realizado envolvendo famílias com crianças de Quebec, no Canadá, e da Jamaica, observaram-se prevalências de insegurança alimentar de 9,0% e 26,0%, respectivamente. No Brasil, a PNAD identificou que 30,2% da população apresentava algum grau de insegurança alimentar. Por meio dos resultados sistematizados no presente trabalho, ressalta-se que a condição das famílias de amostras provenientes de escolas/creches, de serviços de saúde/beneficiários do Programa Bolsa Família e de caracterização em iniquidade social é pior à de outros países e do Brasil. Esses achados são alarmantes e evidenciam que, apesar dos avanços observados na diminuição das desigualdades no Brasil, ainda é grande o contingente de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar, com desigualdades regionais e de outras índoles como de cor/raça, faixa etária, faixa de renda e localização urbano vs. rural, que implicam em importantes desafios”.[4]

Quem é uma pessoa negra ou indígena; quem vive em situação de rua; quem não possui os recursos mínimos que lhe garanta a menor fuga dos problemas sociais (viagens, lazer, divertimento, entretenimento, etc); quem está em alguma, em todas ou em muitas outras dessas condições tem suas possibilidades relacionais dificultadas. Tais condições, juntas ou separadas, atravessam a vida da maioria das pessoas cotidianamente, impactando o modo como cada indivíduo se relaciona, percebe e experimenta o mundo. Como não seria diferente, a saúde mental dessas pessoas fica comprometida, uma vez que o ambiente é “constantemente instável” nos aspectos basais de sobrevivência.

“Pobreza, períodos de insegurança económica, dificuldades financeiras, um baixo nível de educação, falta de apoio social, a exclusão social, controlo reduzido sobre o trabalho e a vida familiar, acontecimentos de vida críticos, abuso ou negligência infantil, insegurança laboral e desemprego são riscos psicossociais que se acumulam ao longo da vida e que aumentam a probabilidade de uma pessoa ter problemas de saúde mental e morte prematura. Quanto maior a desvantagem social mais frequentes são estes fatores de risco, explicando a maior vulnerabilidade aos problemas de saúde mental”.[5]

A saúde mental não é um componente que pode ser descolado da vida das pessoas quando se fala de relacionamentos afetivos/afetivo-sexuais. Ignorar esses componentes sociais e históricos na hora de se pensar e construir um posicionamento político, tal como pode ser a Não-Monogamia Política, é sinônimo de branquitude. É quando as pautas ignoram, ou simplesmente não dão o devido valor às diversas manifestações socioculturais sobre a vida dos sujeitos, e é quando as construções de teorias partem de dentro dos apartamentos com ar condicionado em condomínios fechados, que surgem as enormes lacunas de interpretação do que seria uma construção afetiva. É muito mais factível uma pessoa ter a suposta liberdade individual quando se possui uma rede assistencial que lhe provê alimentação constante (preparada por outras pessoas), quando se pode escolher o que, se e como estudar e quando o dinheiro lhe permite buscar por outras oportunidades e por suprimentos imediatos de angústias em vez de lidar com elas.

Dito em outras palavras, é mais fácil pensar em liberdade individual quando suas preocupações financeiras não dizem respeito a escolher entre o café da manhã e o jantar. Pessoas que possuem recursos materiais os quais não temem perder na manhã seguinte geralmente têm mais devaneios teóricos quando pensam em não-monogamia. São geralmente essas mesmas pessoas que rejeitam a ideia de morar juntes, de compartilhar uma casa com uma parceria de modo mais fixo e/ou permanente a longo prazo. Quando se pode escolher certas coisas materiais, até mesmo o sentido de coisas imateriais como o amor e o apego emocional pode ser alterado e transformado em um conceito romantizado – mesmo que se negue essa romantização. A propósito, se tivermos uma atenção mínima e um conhecimento basal da história e da geopolítica do Brasil saberemos quais são as pessoas que usufruem de maior conforto e segurança financeira e alimentar – existe uma cor que detém os privilégios, e é a cor branca.

Autonomia Emocional

Prosseguindo nesse percurso teórico que envolve a compreensão das nossas construções subjetivas, e considerando os efeitos da carência/escassez de recursos materiais sobre a psicologia humana, pondero ser sensato assumir que esses fatores afetam as condições emocionais das pessoas. E isso deve ser assumido o quanto antes se quisermos uma análise minimamente honesta. Dar esse passo exige coerência, comprometimento e transparência crítica na racionalização dos afetos e das relações afetivas. Logo, pensar abertamente em autonomia emocional é, antes de tudo, reconhecer que cada pessoa está dentro de um conjunto de possibilidades e que, por isso, nem sempre o discurso da autonomia encontra/encontrará espaço nas diferentes vivências.

Dizer que na não-monogamia as pessoas não deveriam depender emocionalmente de outrem, ou que as pessoas não deveriam priorizar as relações, não é uma falha em si, mas é no mínimo uma clássica premissa branca, portanto, incompleta. Novamente, algumas pessoas podem se encaixar nessas premissas, outras não. E está tudo bem, somos diferentes. Não é coerente propagar uma única visão.

A construção emocional, e a partir dela a construção afetiva, é atravessada por materialidades e possibilidades concretas de existência. Numa sociedade em que existe e que impera um padrão de beleza baseado na brancura, na magreza e na ostentação financeira, o status que essas materialidades possuem configuram um sistema relacional. Pessoas que figuram dentro das expectativas da branquitude e da colonialidade, ou seja, que detém os atributos socioculturais que as tornam desejáveis, estão sempre à frente no quesito afetivo; têm maiores acessos às parcerias e mais possibilidades, pois, isso lhes é dado como um privilégio. E “estar à frente” não quer dizer aqui que são melhores ou que não sofram por afetos frágeis ou tóxicos, quer dizer que na caminhada pela vida essas pessoas enfrentam menos obstáculos de percurso na hora de se construírem e se relacionarem afetivamente se comparadas a grupos em desvantagens e com menor fluidez sociais. Também podemos [e devemos] considerar aspectos que operam dentro da própria branquitude, da qual ela mesma se mutila, como a gordofobia, a misoginia, LGBTfobia e outros males que a colonização dos corpos produz e que também por esses males é ferida.

De toda forma, vale pontuar que pessoas negras e indígenas, imigrantes hostilizados, travestis, pobres, moradoras em situação de rua e/ou em qualquer outra condição social e socioeconômica enfrentam obstáculos afetivos e emocionais a mais que pessoas brancas dentro do padrão, coisas que a branquitude quiçá nunca [re]conhecerá. Nesse processo de construção de si, que cada uma de nós enfrenta ao longo da vida, na somatória de traumas e conquistas, gozos e decepções, desejos realizados ou impossibilitados, cada pessoa adquire uma percepção do que é se relacionar entre outros sujeitos, entre si e com o mundo. É também por essas circunstâncias que cada pessoa passa a se entender como um ser afetivo (ou não).

Definir conceitos para expandir os [e]feitos

Se buscarmos pela definição, veremos que de modo geral, “autonomia” é a

capacidade de autogovernar-se, de dirigir-se por suas próprias leis ou vontade própria; soberania; ou a faculdade própria de algumas instituições quanto à decisão sobre organização e normas de comportamento, sem se dobrar ou ser influenciadas por imposições externas[6].

Nesse sentido, a ausência de influências ou a capacidade de governar-se figuram como conceitos que esbarram na impossibilidade concreta das emoções, que sofrem as ações do mundo ao redor dos indivíduos. Além disso, baseando a observação em outros trabalhos, a minha hipótese é de que o apego emocional que se reflete nas relações afetivo-sexuais está associado a quadros de ansiedade[7] e de estresses gerados por condições sociais precárias ao longo da vida das pessoas (como a falta de um cuidado da infância, ansiedade por falta de recursos como moradia, abrigo, acesso a alimentos nutritivos, bem como a estrutura familiar)[8].

Dentro da psicologia, por exemplo, podemos encontrar que “autonomia” pode ser considerada como

“a capacidade do sujeito decidir e agir por si mesmo, com o pressuposto de que o desenvolvimento e a aquisição desta habilidade sofrem a influência do contexto em que o jovem se desenvolve. Embora existam muitos estudos a respeito deste construto, o conceito de autonomia continua sendo difícil de compreender. Percebe-se que a autonomia é um conceito amplo e pode variar tanto no seu significado (conceito propriamente dito) quanto na sua aplicação (processo desenvolvimental)”[9].

Há também estudos que apontem a autonomia emocional como uma das quatro dimensões “processo de separação psicológica das figuras parentais”, definindo a autonomia emocional como

“autonomia emocional, que é definida como uma relativa liberdade do adolescente ou jovem adulto em relação à necessidade excessiva de aprovação, proximidade e apoio emocional por parte dos pais”[10].

Reichert e Wagner[11] destacam que, semanticamente,

“a palavra ‘autonomia” vem do grego, formada pelo adjetivo autos – que significa “o mesmo”, “ele mesmo” e “por si mesmo” – e pela palavra nomos – que significa “compartilhamento”, “lei do compartilhar”, “instituição”, “uso”, “lei”, “convenção”. Neste sentido, autonomia significa propriamente a competência humana em “dar-se suas próprias leis”[12]. As autoras adicionam que, filosoficamente, autonomia indica a “condição de uma pessoa ser capaz de determinar por ela mesma a lei à qual se submeter. No enfoque da bioética, Segre, Silva e Schranm (2005) consideram uma propriedade constitutiva da pessoa humana, na medida em que o indivíduo escolhe suas normas e valores, faz projetos, toma decisões e age em conseqüência dessas escolhas.

Levando em conta esse conjunto de possíveis definições, penso que uma autonomia emocional, quiçá aquela baseada na possibilidade de gerenciar com mais propriedade as próprias emoções, pode ser facilmente aproximada de uma idealização, uma vez que estamos dentro de uma ambiente que é a sociedade e que dele recebemos influências que operam de diferentes maneiras para cada grupo social (e para o sujeito, individualmente). Assim, pensar na autonomia emocional, ainda que isso seja uma idealização, é algo mais possível conforme se tem mais recursos materiais ou, numa outra perspectiva, é mais factível conforme se tem menos instabilidades emocionais ao longo da vida.

Descolar a vivência subjetiva da vivência objetiva talvez funcione apenas didaticamente, numa palestra ou num texto. Já na vida prática, sinto dizer, isso não acontece. Estamos envoltes por questões ambientais externas (como todos os fatores socioculturais materiais e imateriais) e internas (como pensamentos, emoções, angústias, hormônios e toda a nossa bioquímica animal).

Querer avaliar esses componentes individualmente e por agrupamentos isolados é um trabalho teórico, mas que não pode ser levado dessa forma na prática, onde as materialidades se chocam produzindo a vida. Compreender que o discurso de uma autonomia emocional como sendo o caminho para uma relação não-monogâmica é limitado faz parte da análise [ou seria interessante se fizesse].

Reconheço que pode, sim, haver pessoas que se identificam com esse pressuposto da autonomia emocional, e suspeito que essas pessoas estejam dentro do grupo daquelas que retém mais recursos econômicos e que possuem maior fluidez social. Socialmente falando, esse grupo, novamente, tem cor e classe [você deve saber quais]. Mas resumir a vivências e as narrativas não-monogâmicas a esse modus operandi é desconsiderar toda uma gama de possibilidades de construções afetivas que não se encaixam nessa autonomia por diversos fatores.

E falando de uma das perspectivas que me atravessam, as dificuldades afetivas enfrentadas por pessoas negras, que constantemente têm seus afetos questionados por si próprias e por isso colocados numa posição de constante vigilância, mostram a necessidade de repensarmos nossas falas. Uma vez que a sociedade aprendeu que afeto desejável é o branco, enquanto o afeto negro, o indígena e outros afetos subalternizados são menos valorizado revela que, para se manter numa lógica única (MonoLógica), precisa-se também construir uma história única. O que só é possível se as bolhas sociais forem fortalecidas cada vez mais. E como suponho, bolhas são espaços subjetivos de segregação intencional ou não, mas que refletem as condições sociais de um povo ao mesmo tempo que as retroalimentam. Repensar tais questões é buscar romper essas bolhas.

Autocuidado Intransferível

Seguindo o percurso das discussões aqui propostas, chegamos a um terceiro ponto muito abordado pela não-monogamia pautada que considero ser na dinâmica da branquitude. E sobre ele, o Autocuidado intransferível, a branquitude diz que devemos construir nossas próprias redes de afetos e de apoio[13] e que não devemos esperar que nossas parcerias afetivo-sexuais supram nossas necessidades de cuidado, mas que, antes, devemos nós ter o autocuidado. Ou seja, reforça-se o olhar que foca na produção individual do sujeito.

Repito uma coisa importante: o sistema capitalista tem vários tentáculos, e um deles é a autoajuda. Além disso, existe a necessidade exagerada de motivação. Motivação essa que visa construir subjetividades programadas socialmente para produzirem e lucrarem o tempo todo[14]. Produz-se dados, serviços, conteúdo de entretenimento, lucro, capital, anestésicos, etc. Mas esse sistema produz também pessoas doentes, que de tanto olharem para tudo o tempo todo deixam de olhar para si. Esse adoecimento não é casual, sua manutenção é um evento inevitável.

“Trata-se com drogas todo tipo de baixo-astral, toda dúvida, todo pensamento frio e cinza. Afinal, pessoas tristes não produzem, não gastam, não compram e não viajam; a menos que você as faça incapazes de perceberem suas tristezas; ou seja, a menos que as anestesie de si mesmas. Humanos tristes e insatisfeitos (e não os tristes e iludidos) questionam a existência de Deus e acabam percebendo a mentira, duvidam do Estado, interrogam as ordens e não se contentam com a primeira resposta. Mas aí vem mais remédios, mais felicidade comercializável, mais promessas de um lugar incrível e de uma vida maravilhosa; mais amor e liberdades imaginadas”[15].

Vale chamar a atenção para a noção de que o prefixo “Auto” tem ganhado cada vez mais espaço na nossa maneira ocidentalizada contemporânea de funcionar e de viver. Palavras como “autocuidado”, “autoconhecimento”, “autoanálise”, “autoaceitação”, “autossuficiência”, entre muitas outras, são cada vez mais colocadas como construções ideais as quais os sujeitos devem perseguir se desejarem uma “vida que vale a pena ser vivida”. Pessoas cada vez mais buscam padrões de autossuficiência e de desempenho, o que podem resultar em crises de ansiedade e de depressão[16] [17] e, a depender da intensidade, em casos de suicídios[18].

“A coação de desempenho força-o [o sujeito narcísico de desempenho] a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação. Vive constantemente num sentimento de carência e de culpa. E visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir. Sofre um colapso psíquico, que se chama de burnout (esgotamento). O sujeito de desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem (pp. 85-86; grifo meu)[19].

Com isso retomamos a discussão de que o sujeito é um sujeito em movimento, em contato, numa rede. Assim, colocar o prefixo “auto” em tamanha evidência revela ao menos duas análises. Uma delas, talvez a mais perceptível, é que nessa via de pensamento a noção o aspecto grupal do ser humano é relativizado e reduzido, quando não é desconsiderado em sua ação. Aqui, ao supervalorizar o individual e sua “potência independente”, constrói-se a ideia tão propagada no capitalismo estadunidense, que se apropria e ressignifica a frase “Yes, we can” (Sim, nós podemos!), fazendo dela o mantra que se propõe estender-se sobre todas as habilidades do sujeito[20].

Ou seja, pretende-se responsabilizar o indivíduo por suas escolhas e pelas consequências delas, bem como os responsabiliza por seus fracassos. O que convoca a segunda análise, que é um direcionamento de todos os fracassos e das frustrações também para o indivíduo; coisas que às vezes são inevitáveis na vida, mas que aqui são magnificadas, pois o sujeito se vê como unicamente causador de tudo que lhe acontece. Nesse aspecto, termos como “autossabotagem”, “autoculpa”, “autovexação”[21] e “autopunição” ganham novos sentidos. Em vez de revelarem contextos e mecanismos psicológicos passam, então, a ser usados como castigos, os quais devem ser evitados a qualquer custo. Ou seja, se você se autorresponsabiliza você também corre o risco de se autopunir caso fracasse; e para evitar isso você deve ser autossuficiente. O ciclo está instaurado.

Esses mesmos aspectos participam de outras dinâmicas quando se fala de relacionamento e autocuidado. Numa idealização romântica do cuidado pessoal não é raro nos vermos em contextos que aprendemos a não pedir por ajuda nem por apoio emocional. Em vez disso, passamos a querer resolver nossas dificuldades de uma maneira independente, livre e autônoma. Nessa dinâmica, a premissa é que não se deve transferir o cuidado pessoal. Não para qualquer sujeito.

Como um braço aceitável do sujeito que quer se cuidar, na contemporaneidade surge a Terapia Psicológica Profissional como um suposto lugar simbólico-concreto no qual algumas pessoas pedem [ou podem pedir por] ajuda e se abrem para falar de suas vulnerabilidades. No entanto, além de sabermos que essa terapia não está acessível para todas as pessoas das mais variadas esferas sociais e econômicas e que nem todas as pessoas precisam dela, poderíamos considerar que terapia não cura aquilo que é produzido e mantido pela estrutura[22]. Assim, se a supervalorização do autocuidado não é o caminho que acolhe a maioria das pessoas, que pessoas as nossas propostas de construção afetiva podem alcançar? Novamente, se considerarmos somente as pessoas que têm mais acesso material a essa terapia, por exemplo, estaremos caindo num cenário limitante.

Ainda, considerando a saúde mental como um aspecto fundamental na construção de afetos saudáveis (como já vimos) e pensando nos contextos sociais, fica a pergunta: que tipo de pessoas a branquitude considera que pode viver não-monogamicamente?

Para refletir e [Re]pensar possibilidades

“De modo algum [a monogamia] foi fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha em comum, já que os casamentos, antes como agora, permaneceram atos de conveniência. Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos legítimos para herdar os bens deles.”[23]

Que a monogamia é um formato construído a partir da colonização, sendo portanto um formato exploratório que constrói afetos de cativeiro, não me restam dúvidas.  E isso me leva a concluir que esse formato, por essência de suas dinâmicas, não deveria ser imposto nem desejado/aceitável em nenhum contexto e para nenhuma pessoa. No entanto, rejeitar esse formato ao mesmo tempo que se busca selecionar as características que acolhem apenas uma pequena parcela da sociedade e considerar isso como um modelo saudável de não-monogamia também me parece incoerente.

Depois de tudo que foi exposto, você considera que a não-monogamia que a branquitude prega realmente inclui outras experiências de vida? Você concorda que a branquitude prega esse tipo de monogamia que analiso aqui?

Pensando ainda mais: ao se adotar esse modelo de não-monogamia da branquitude, pessoas em situação de rua, pessoas periféricas, moradoras de comunidades, retirantes, moradores de regiões de extrema pobreza, comunidades fechadas, etc, podem ser não-monogâmica se as três dimensões aqui trabalhadas forem suas bases (a saber: Liberdade Individual, Autonomia Emocional e Autocuidado Intransferível)?

Na contramão da tendência capitalista e ocidentalizada, o autocuidado e o autoamor podem ser repensados como uma maneira de se cuidar dentro dos espaços grupais. Permitir-se fracassar sem se martirizar por isso e saber que não podemos dar conta de tudo é um passo. Ademais, considerar que podemos pedir ajuda e que não precisamos esperar atingir nosso limite físico-psicológico de esgotamento para isso pode evitar inúmeros quadros de adoecimentos psicológicos. O corpo todo reage a seus impactos; doenças de vários tipos resultam de um “autocuidado intransferível”, que se potencializam a partir da noção de autonomia emocional; tudo isso porque se compra a ideia de liberdade individual.

Precisamos, progressivamente, orientar as pessoas ao nosso redor ( e a nós mesmes) de que estamos envolvides num tecido social, o prefixo “auto” faz sentido sim, mas não como um isolamento do restante, e sim como uma pontuação de a quem se direciona o cuidado naquela ocasião. Autocuidar-se é perceber-se  na sociedade, e saber que podemos falhar, e que certamente falharemos, mas que estamos envoltes por outras vivências que podem nos inspirar, acolher e ensinar. Isso desperta o nosso olhar para populações que, não por escolha pessoal, não têm sequer acesso a uma rede de apoio e de afetos. O que nos faz perceber que estamos muito longe de existir saudavelmente dentro dessa “autocentralização” individual.

A não-monogamia na qual acredito é Social. Ela leva em conta os diferentes contextos de construção e experienciação dos afetos dentro da sociedade. Não-monogamia não é aqui colocada como oposição à monogamia. Em vez disso, ela figura como uma alternativa plural e potente que se afasta das lógicas monogâmicas e de toda a sua construção sociohistórica que produz uma estrutura conceitual-material sobre a qual se sustentam práticas de colonização.

Se não-monogamia é uma alternativa plural, funcionando como um termo guarda chuva para relacionamentos afetivos que não se enquadram na produção monogâmica, então penso que existem muitas possibilidades de construirmos as nossas relações. Protocolar um modo, sustentar um modelo ou classificar uma dinâmica não é outra coisa senão construir um novo regimento, um novo grupo de “tipo de relacionamento”; e toda construção de grupo exige, por consequência, a criação de no mínimo mais um. Quando essa construção é pautada nas escolhas de um grupo hegemônico que detém privilégios tais que desconsideram a cor da pele e a classe social estamos diante de uma não-monogamia da branquitude.

Com isso, minha sugestão mais sincera é que um caminho saudável na construção de relações não-monogâmicas saudáveis e descolonizadas pode ser aquele que parte do reconhecimento dos nossos limites, dos nossos desejos, das nossas vontades e necessidades, mas que também observa criticamente – sempre que possível – como cada uma dessas esferas são construídas em nossas vidas. Não há um protocolo não-monogâmico. Uma pessoa não é menos não-monogâmica porque deixa de fazer aquilo que funciona otimamente para outras pessoas mas que para ela não é satisfatório. Relacionamento saudável é aquele em que as pessoas possuem o direito de pensar e vivenciar seus corpos com algum grau de vontade própria, se quem seus prazeres estejam condicionados às pessoas envolvidas na relação. Se por um lado o meio social exerce pressões e influências sobre nossas escolhas e possibilidades, por outro lado quando isso acontece dentro da relação de modo unilateral pode ser porque aí existe dominação e restrição de afetos saudáveis, logo, colonização afetiva.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTAS & REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] “Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana”; por Lia Vainer Schucman: https://www.scielo.br/j/psoc/a/ZFbbkSv735mbMC5HHCsG3sF/?lang=pt

[2] “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”, por Maria Aparecida Silva Bento (2002); disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001310352

[3] “Insegurança alimentar no Brasil segundo diferentes cenários sociodemográficos”, por Bezerra, Olinda e Pedroza: https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.19952015

[4] Ver nota 3.

[5] “A saúde mental e a crise económica”; por Manuela Silva, Graça Cardoso, Benedetto Saraceno e José Caldas de Almeida – no Livro “TERRITÓRIO E SAÚDE MENTAL EM TEMPOS DE CRISE”: https://www.researchgate.net/profile/Paula-Santana/publication/287216582_Territorio_e_Saude_Mental_em_Tempos_de_Crise/links/5674483708ae0ad265ba76a3/Territorio-e-Saude-Mental-em-Tempos-de-Crise.pdf#page=61

[6] Definição segundo o Dicionário Online Michaelis; disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?id=EMnj

[7] (1) pg. Generalized anxiety disorder: connections with self-reported attachment (2009) – Behavior Therapy, v. 40, n.1, p.23.38, mar.

[8] “Eventos estressores na infância e apego adulto”, por Rachel Coelho Ripardo Teixeira; disponível em: https://pospsi.ufba.br › sites › files › rachel_ripardo

[9] “Considerações sobre a autonomia na contemporaneidade”, por Claudete Bonatto Reichert e; Adriana Wagner; disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/10867/8544 – ISSN 1808-4281.

[10] Hoffman, J. A. (1984). Psychological separation of late adolescents for their parents. Journal of Counselling Psychology, 31, 170-178. Citado em: ver nota 9, página 144.

[11] Ver nota 09.

[12] Ver: SEGRE, M.; SILVA, F. L.; SCHRAMM, F. R. O contexto histórico, semântico e filosófico do princípio de autonomia. Portal do Médico, 2005. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/321#:~:text=Schramm-,Resumo,s%C3%A9culo%2C%20vem%20sofrendo%20constantes%20reformula%C3%A7%C3%B5es.

[13] Ver sobre esse conceito em: “Rede de Afetos & Rede de Apoio”, por Andreone Teles Medrado; disponível em: https://www.instagram.com/p/Ca0ySQGrJij/?utm_source=ig_web_copy_link

[14] “Capitalismo, Afetos & Não-Monogamia”, por Andreone Teles Medrado; disponível em: https://www.instagram.com/p/CbOdit5ubJp/?utm_source=ig_web_copy_link

[15] “Devaneios filosóficos sobre a Clínica dos Corpos”, por Andreone Teles Medrado, 2020: https://devaneiosfilosoficos.com/2020/12/06/devaneios-filosoficos-sobre-a-clinica-dos-corpos/

[16] “Sociedade do Cansaço”, por Elton Corbanezi (2017): https://www.scielo.br/j/ts/a/6vbqVgYtLDWCCSsvszXZVVp/?format=html

[17] “O comportamento suicida no Brasil e no mundo”, por Avimar Junior; Revista Brasileira de Psicologia, 02(01), Salvador, Bahia, 2015: https://www.academia.edu/download/67167750/O_comportamento_suicida_no_Brasil_e_no_m20210505-25986-1c95nr8.pdf

[18] “Aspectos psicológicos acerca do suicídio e o fenômeno da pandemia”, por Thalita Lacerda Nobre (2021): http://dx.doi.org/10.29327/241013.2.2-4

[19] “Sociedade do Cansaço”, livro de Byung-Chul Han. Giachini, Enio Paulo. 2. 2017. Vozes, Petrópolis: 128.

[20] Se ao menos essa frase fosse entendida na primeira pessoa do plural (“nós”) até faria sentido pensar em seus desdobramentos dentro do coletivismo. Todavia, embora diga-se “nós”, a chamada é para o indivíduo, que no conjunto forma o “nós”, porém que atuam em suas individualidades.

[21] Vi esse termo uma vez no “WONG – Manual Clínico de Enfermagem Pediátrica” (https://books.google.com.br/books?id=1jumO_srU6UC&pg=PT224&dq=autovexa%C3%A7%C3%A3o&hl=pt-BR&newbks=1&newbks_redir=1&sa=X&ved=2ahUKEwia_NOtyrX3AhUyvJUCHQV7DMsQ6AF6BAgCEAI). Todavia, aqui eu defino autovexação como a ação do indivíduo tomar para si o sentimento de vexame, envergonhando-se de suas próprias ações caso elas não produzam a realização de suas expectativas ou das expectativas alheias geradas sobre si.

[22] “Terapia não cura aquilo que é produzido e mantido pela estrutura”, por Andreone Teles Medrado: https://www.instagram.com/p/CPlY0yctolu/?utm_source=ig_web_copy_link

[23] “A Origem da Família, da Propriedade e do Estado”, por Friedrich Engels, Lisboa: Editora Presença, s/d (página 85); citado em: “Exploração, pobreza e humilhação na prosa de Carlos de Oliveira e Sophia de Mello Breyner Andresen”. 2021. 280f. Tese (Doutoramento em Literatura Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2021 – Autora: Nathália Macri Nahas; disponível em:https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-24092021-165159/en.php

NOTA: a imagem utilizada para compor a capa desse post foi obtida aqui: