“Num mundo inundado de informações irrelevantes, clareza é poder”. É com essa frase que Yuval Noah Harari inicia o seu livro “21 lições para o século 21” no objetivo de trazer reflexões sobre o nosso momento contemporâneo, sobretudo em sociedades de matriz Ocidental. Essa frase contém muitas realidades discursivas possíveis, mas a que eu destaco para essa nossa conversa aqui é a de que, sim, clareza é poder. Clareza, clareamento, brancura, embranquecimento, branquitude. Poderes que organizam as sociedades ocidentalizadas. No contexto em que vivemos, de redes sociais funcionando como expressão de um modus operandi constituinte dos discursos, bem como do fluxo intenso de informações que denunciam a sociedade em suas dinâmicas opressoras, o que as pessoas estão buscando? Quais os referenciais e os rumos que muitas pessoas assumem para suas lutas diante de um Cistema racista, sexista, misógino e historicamente opressor em várias instâncias?
Quando lutamos contra o colonialismo,[1] quando enfrentamos opressões históricas fundadas na exploração de corpos e de subjetividades, precisamos nos situar nesse debate de preferência sabendo onde e aonde estamos. Isso sem desconsiderar que as nossas atitudes não são nem onipotentes nem infalíveis; elas não são determinantes de uma mudança nem determinadas pelo contexto; tampouco nossas ações, por mais empenhadas que sejam, nos garantem coisa alguma.
Por outro lado, apesar de toda sua carência de absolutismo e apesar de seus acasos, foram e são as atitudes de combate ao colonialismo que têm auxiliado e mantido a sobrevivência de populações sócio-historicamente colocadas à margem das sociedades. Por essa razão, quando nos posicionamos enquanto quem quer desconstruir e enfrentar esse complexo e plástico Cistema, precisamos reconhecer que nossa luta não é por uma obtenção de uma carteirinha de desconstrução coletada em espaço intelectuais de muita visibilidade; não estamos (ou, penso que não deveríamos estar) perseguindo títulos para provar e aprovar nossas atividades enquanto antirracistas, antimachistas, antissexistas, etc; não se trata de alimentar e massagear o nosso ego enquanto os privilégios nos colocam para ninar no berço do narcisismo; a nossa luta não é apenas por uma identidade descolada do real. Apenas boas intenções, centenas de livros lidos, palavras bonitas e postagens nas redes sociais não são suficientes para combater o colonialismo – é preciso mudarmos o nosso comportamento.
Intelectualismo de alta performance
Quando escrevi o texto “Academicismo Frágil” (2020), os incômodos ali retratados eram especificamente sobre o que se passa dentro dos espaços acadêmicos, principalmente nas Universidades, sobre como essa Escola Discursiva, nos termos de Michel Foucault, produz um saber. Na ocasião, comentei sobre os impasses promovidos pela colonização do saber, mesmo que naquele momento eu não tenha utilizado o termo colonização explicitamente. Apesar disso, não podemos desconsiderar, como ali não desconsiderei, que fatores exógenos ao espaço discursivo acadêmico também modelam e influenciam no próprio academicismo; de igual maneira, o academicismo participa na construção de prática populares que atuam na produção ampla de outros saberes. Sugiro muito a leitura de “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI”, de Ramón Grosfóguel[2]. Mas os incômodos não morreram naquele texto. Mais recentemente, quando escrevo “A Arte da Escrita e o envenenamento pelas normas” (2023), trago uma atualização dessa discussão, dessa vez sim com duras críticas ao modelo colonizador que a norma de uma suposta escrita culta impõe sobre a expressividade de vivências não hegemônicas.
Nesse sentido, tenho percebido cada vez mais a influência de um saber acadêmico, bem como o modo pelo qual o próprio saber academicizado tem se aderido ao imaginário popular dentro da bolha da desconstrução. Essa aderência tem produzido uma espécie de encantamento, de sedução, de alucinação modeladora das práticas sociais – o status do saber tem se sobressaído em relação ao próprio saber e sobre o que ele intrinsecamente propõe e sugere. Dito em outras palavras, muito mais que o próprio conhecimento produzido, com suas reflexões e críticas, muitas pessoas têm buscado pelo que esse conhecimento pode representar enquanto engajamento e legitimidade. Tal conhecimento, e tal conjunto intelectual selecionado a partir de sua visibilidade, do número de suas citações e a partir de sua influência territorial têm se transformado simbolicamente em signos de ostentação do conhecimento em si. É um modo esvaziante de se posicionar politicamente, mas que numa Sociedade do Espetáculo é fundamental para garantir seu lugar efêmero, fanático e hipócrita de “luta”.
“Para Debord (1997) vivemos em uma “sociedade do espetáculo”, onde a mercadoria e a aparência se tornaram mais valorizadas no contexto das relações sociais, tornando-se uma forma de relação social em que o ter e o aparentar ser suprem momentaneamente o viver, objetificando e artificializando as experiências, que deixam de ser vividas em sua essência. A imagem que o indivíduo tenta transmitir de si mesmo ou do modo de vida que vive ultrapassa a realidade e torna a imagem, a representação, uma nova realidade ficcional, ou seja, uma realidade construída por ficções. Debord (1997, p.8) diz que “o espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente”. O espetáculo não é apenas um conjunto de imagens postadas ou compartilhadas nas plataformas de mídias sociais, ele está inserido no contexto das relações sociais contemporâneas, mediando as relações entre as pessoas por imagens, narrativas e enquadramentos. E esse espetáculo, essa atuação social, contribui para a criação da realidade coletiva nos dias atuais.”[3]
Trazendo para cá a ideia de sociedade do espetáculo, podemos traçar paralelos de como o termo “desconstrução” tem recebido cada vez mais destaque e tem sido buscado por sua representação de “progresso ético-identitário”. Mas mostra-se como uma busca ainda pautada numa produção espetacular de um modo de ser e de estar na sociedade; uma busca por um conhecimento que também produza em seu interlocutor alguma possibilidade de espetacularizar sua ação midiática. Esse conhecimento, para ser validado pela comunidade que vislumbra apenas uma titulação de desconstrução, precisa ser engajado e engajável – “instagramável” -, deve render likes, deve posicionar na vitrine de “pessoas cultas” quem os compartilha e quem deles fala com empolgação.
Essas são marcas de um intelectualismo de alta performance; não necessariamente (ou não somente) sobre as pessoas intelectuais, mas sobre como elas são apropriadas numa lógica mercadológica do saber, baseada no status social que o intelectualismo emerge.
A busca por esse modelo intelectual cujo intuito é criar o grupo de quem “sabe”, de um lado, e de quem não atingiu essa “iluminação cultural”, de outro – ou seja, o intelectualismo em sua marca fundamental -, é validado pelo tanto que ele é/pode ser notório publicamente, e isso tem guiado pessoas na busca por um saber quase que homogeneizado. “Como assim, você nunca leu Frantz Fanon nem Lélia Gonzáles e quer falar da vivência da pessoa negra?”; “O quê? Você nunca leu ‘Perigo Amarelo’ e quer vir falar comigo sobre minoria modelo?”; “Nunca leu um livro de Nego Bispo e quer militar sobre quilombolas?”; “Vá estudar, não sabe o que é ‘A queda do Céu’ e nunca ouviu falar de Ailton Krenak e está aqui querendo falar de indígenas?”; “Tá bom! Não sabe nem quem foi bell hooks e Sobonfu Somé e que dissertar sobre amor racializado?”
Talvez ao ler o parágrafo acima você até suspire baixinho [ou apenas mentalmente] um “Poxa vida, mas essas são leituras básicas e fundamentais, realmente não tem como entrar nessas discussões sem considerar essas autorias”. E eu te digo que mesmo que sejam leituras super importantes – pois são mesmo – talvez seu pensamento também esteja colonizado em algum sentido, sobretudo no sentido de acreditar que a via que leva ao anticolonialismo tem apenas um caminho possível e válido de ser percorrido. Além disso, talvez você tenha levado a sério demais a ideia de que pessoas ilustres são indispensáveis para saberes revolucionários.
Vale ressaltar que definitivamente não estou dizendo que são autorias de baixa importância, em vez disso estou simbolizando que algumas pessoas se fixam em alguns nomes e os buscam como expoentes de um saber específico. Por exemplo, recentemente, Bárbara Carine postou o seguinte comentário em seu perfil:
“Há algumas semanas, palestrando gratuitamente em uma universidade pública federal, um estudante pediu a palavra na hora dos comentários e fez uma consideração importantíssima: “eu fui na biblioteca pegar o seu livro como ser um educador antirracista, que é tema da palestra, mas não encontrei. Eu só queria ler antes para te ouvir mais embasado”. Fiquei pensando nesse movimento POP de reconhecer intelectuais negras com uma certa abrangência social nas redes sociais como possibilidades dialógicas reais, mas ainda seguindo sem validar nossa intelectualidade presente em nossas produções literárias, como uma literatura não marginal e que deve estar presente em suas bibliotecas e programas de disciplinas”.[4]
Note que estou mencionando um fenômeno ilustrando-o justamente a partir da fala de uma pessoa influente nas redes sociais. E não é à toa. Faço isso para exemplificar que mesmo entre os nichos de intelectuais com uma certa visibilidade nos meios de comunicação existe ainda um espaço entre quem tem uma certa visibilidade e quem é a própria visibilidade. A branquitude, que por séculos tem invisibilizado pessoas intelectuais não brancas, é a mesma que hoje tenta selecionar nomes para os colocarem em estrelismos em suas prateleiras do conhecimento aceitável, vendendo a suposta ideia de uma desconstrução da hegemonia branca, dizendo silenciosamente que “Até leio pessoas negras”.[5] Não estou dizendo que pessoas negras têm seus espaços conquistados porque pessoas brancos gentilmente cederam esses espaços a elas. Também não é o caso de dizer que quero que pessoas brancas parem de ler o que pessoas não brancas escrevem e produzem. Em vez disso, chamo a atenção para não nos colocarmos voluntariamente em uma cilada feita para afunilar conhecimentos.
Pessoas não brancas produzem saberes múltiplos, com diferentes linguagens, expressões, formas e contextos, e não é a branquitude que determina se são saberes válidos. No entanto, a Brancademia tem posicionado os chamados “Clássicos” no hall da fama, no lugar prioritário de ensino e de referência; esses “clássicos” são predominantemente homens, brancos europeus-estadunidenses, pertencentes aos idolatrados centro de referência do conhecimentos, aquelas universidades mais renomadas. Não podemos nos satisfazer com a ideia de que é assim que se produz um conjunto de verdades; tampouco devemos incorporar essa dinâmica ao nosso universo de pessoas não brancas que produzem conhecimento.
Quer ler autorias mais proeminentes? Que as leia! Mas não esqueça que elas partilham um amplo espaço intelectual com pessoas muitas vezes não lidas com tanto afinco; são pessoas tão capazes quanto, mas que não só não foram notadas nas prateleiras das melhores livrarias e universidades. Acima de tudo, que não façamos dessa intelectualidade algo que sustenta um status pelo saber, transformando intelectualidade em intelectualismo.
Que não sejamos pessoas que não estão tão preocupadas em questionar e atuar criticamente assim como estão se esforçando em construir quase que exclusivamente uma imagem positiva de sua identidade. Identidade essa de quem pela manhã consome livros, palavras, ideias e conceitos, mas que pela noite os vomita em seus espaços de construção estética da imagem intelectual; e somente isso.
O intelectualismo de alta performance é aquele grupo eleito como o referencial, mas que, para [muito] além disso, é tomado como medalha, troféu e bandeira de um ativismo baseado no engajamento social e digital. É como se, ao fazer isso, se ao buscar por títulos baseado no consumo de pessoas não brancas intelectuais “ilustres”, rótulos e bandeiras, a pessoa validasse sua carteirinha da desconstrução. Podemos e quiçá precisamos criticar o porquê buscamos pelas autorias que buscamos, e como isso acontece. Podemos valorizar o conhecimento que buscamos para além de meramente querer exibi-los nas nossas redes de interação social. Conhecimento de vitrine não modifica a sociedade, pelo contrário, engendra uma estética de saber que se fixa em si mesma. A questão aqui não é exatamente sobre quem lemos, mas sobre como e porque o fazemos.
Identidade ou racialização política?
À parte a redundância no termo “racialização política”, já que toda racialização é em si política, essa combinação está aqui também para separar estrategicamente a ideia de racialização[6] da ideia de identidade.[7] Se por um lado a identidade perpassa e é perpassada pela ideia de raça/racialidade cabe notar que existe um espaço no qual alguns grupos podem ser tão seduzidos pela brancura de uma Supremacia Branca que na melhor das hipóteses demoram para se notarem enquanto indivíduos não brancos. Pessoas amarelas, em especial, participam do que se entende por [mito da] Minoria Modelo, e isso as coloca num espaço sociopolítico e subjetivo complexo.
A ideia de Minoria Modelo é responsável pela construção de um discurso racial que posiciona pessoas amarelas no lugar de perfeccionismo, trabalho intenso, esforço, meritocracia, sacrifício como símbolo de luta e força; e, como não poderia ser diferente, as coloca num local angustiante, cheio de preconceitos, xenofobia e racismos cotidianos, mas que são mascarados por signos de uma suposta excelência-essencialista.
“Os [leste] asiáticos são instrumentalizados pela branquitude para ser o seu habeas corpus racista. Alguns de nós afirmam orgulhosamente esta lógica de desumanização, bradando: “Eles são preguiçosos! Nós trabalhamos duro!”. Este é um dos raros momentos que você vai ver um “japonês” expressar-se politicamente em público.” […] A “minoria modelo” gera uma forma de existir que chamaria de ontologia do pastel de flango. A expressão “pastel de flango”, construída pela branquitude, significa ao mesmo tempo: “você me serve” e “você nunca será um de nós”. Por isso a diferença entre “flango” e “frango” não é apenas uma questão de correção gramatical, mas uma subserviência ao modelo hegemônico de existência”.[8]
As pessoas constituintes desse grupo racial (pessoas que vivem no Brasil e são descendentes ou imigrantes do Leste Asiático) são posicionadas histórica e socialmente na ideia de Triangulação Racial, proposta pela socióloga coreano-estadunidense Claire Jean Kim, discutida na obra de Laura Satoe Ueno[9], na qual pessoas brancas, amarelas e negras não ocupam o mesmo lugar nas relações sociais de poder. Pessoas brancas ocupam o topo de uma cadeia opressora, baseada e mantida no construto de Supremacia Branca, enquanto pessoas negras estão na base. Pessoas amarelas, mais que supor que transitam entre esses dois grupos, ocupam espaços contexto-dependentes, ou seja, embora sejam racializadas, como são as pessoas negras e indígenas, ainda assim são frequentemente lidas como estrangeiras, como aquelas que não estão no seu país, mesmo quando são pessoas brasileiras.
Para além disso, cabe destacar que o mito da Minoria Modelo emprestou um lugar fictício e temporário às pessoas amarelas, no qual apesar de toda ordem de preconceito que enfrentam, ainda recebem algum grau de acolhimento da branquitude (mesmo que perverso e traiçoeiro), mas que lhes permite algumas fluidez social e algum grau de ascensão socioeconômica e de legitimidade distantes do que se observa para pessoas negras e indígenas, por exemplo. Isso porque a branquitude se constrói na sua separação epistêmica, simbólica e prática, uma vez que não se considera racializada – o branco é o modelo, é o universal, o puro e purificado. Acontece que, ao contrário do que se possa supor e até acreditar, pessoas amarelas não são desrracializadas ao ponto de serem brancas, mas também não são percebidas explicitamente (em em geral pouco se percebem) racializadas para se aproximarem das lutas de pessoas negras e indígenas. Mas, sim, pessoas amarelas compõem um grupo racial, elas não são brancas, não são a branquitude, não participam da divisão de bens da Supremacia branca; recebem apenas uma distribuição de lucro dessa “empresa” enquanto se submetem ao racismo pautado na suposta invisibilidade/invisibilização.
E é a partir desses pontos que eu chamo atenção para a luta amarela no antirracismo. E aqui quero apresentar mais questões que afirmações. E trago, para isso, um exemplo real, uma experiência pessoal[10] que já publiquei em minhas redes sociais:
“Estava eu e outra pessoa negra andando na Av. Paulista. Decidimos entrar numa loja de bijuterias chamada Dafyne. Logo que entramos, um homem passou a permanecer parado no mesmo corredor que nós. Íamos para outro corredor, o homem ia também. Começamos a testar as bijus, e ele estava ali. Era desconfortável o quanto e o como ele nos olhava. Eu às vezes o encarava demonstrando o incômodo. Como se adiantasse de algo. Havia ali muitos clientes brancos, inclusive um bem loiro, de olhos azuis, que passava pelo nosso corredor, mexia nas bijuterias, trocava de corredor e andava livremente pela loja. Enquanto isso, aquele primeiro homem continuava nos seguindo. Se a gente se aproximava muito das prateleiras, ele se aproximava de nós. Mas por que o homem só vigiava eu e meu amigue? Por que deixava o branco andar à vontade mas só vigiava a gente? Nem tínhamos pedido por ajuda. Em nenhum momento pedimos por ajuda para que permanecesse ali, mas ele nos seguiu até chegarmos ao caixa. E se posicionou olhando para nós e para a atendente, como se observasse se em algum minuto colocaríamos as bijus no bolso e não pagaríamos (?). Enquanto isso o branco circulava livremente pela loja.
Não sei o quanto (ou se) você considera essa prática uma violência, mas o nome disso é racismo: sermos vigiades porque somos pessoas negras, enquanto várias pessoas brancas ali dentro andavam livremente é produto do racismo. A pessoa que nos vigiava era uma pessoa amarela, e que estava sendo racista conosco. Mas, espere, pessoas amarelas podem ser racistas? Não são racializadas também?
Pois é. Eu defendo a ideia de que sim, pessoas amarelas podem (e em muitos contextos são) racistas com pessoas não brancas. Na leitura social, apesar de todas as agressões e racismos que pessoas amarelas sofrem diariamente, elas ainda ocupam lugares privilegiados socialmente. Como mencionado anteriormente, o livro “O Perigo Amarelo”[11] chama a atenção para o termo “minoria modelo”, que deve ser compreendido tanto na agressão contra pessoas amarelas, mas, penso eu, para o que entendo por “racismo escalonado”. Que é a escalonação do racismo, que tem a branquitude no topo das práticas, e depois pessoas amarelas, cooptadas como acessórios descartáveis da branquitude; acessórios posicionados numa lógica meramente utilitarista de uma Supremacia Branca, mas que mesmo assim, ou justamente por isso, permite alguns privilégios sociais; que sustentam uma espécie de pacto com a branquitude. Um pacto em que, mesmo com violências, abusos e racismos, pessoas amarelas ainda acessam espaços políticos e de fluidez social que são negados insistentemente a pessoas negras e indígenas.
Por isso, aqui, amparado, ou associado, ao conceito de Triangulação Racial, eu uso o termo “Racismo Escalonado” (talvez haja termos melhores e mais recorrentes). Ainda assim, é um termo experimental, pode ser que ele mude, ou que perca o seu sentido aplicável se for percebido que ele não se sustenta em algum momento da minha crítica racial.
Num jogo metafórico de escalonamento – como num zigurate[12] -, pessoas brancas ocupam o ápice da “estrutura”, com práticas e construções historicamente racistas. A branquitude é posta no debate como a produtora e mantenedora do racismo; seja ele contra pessoas negras ou indígenas, seja contra outros grupos raciais, como amarelos e marrons. Mas não apenas as pessoas brancas praticam o racismo no Brasil.
E aqui preciso me fazer repetitiva: refiro-me a “escalonado” porque entendo que no contexto racial existem espaços que pessoas amarelas podem ocupar sem que a raça seja posta como um impeditivo de ascensão, ou que até mesmo no sentido de associação descartável à branquitude seja a raça o fator de engajamento para produzir outros racismos; é o racismo criando camadas racistas, que operam de modos diferentes entre pessoas racializadas. Na estrutura racista, pessoas amarelas usufruem dos “benefícios” do racismo contra pessoas negras e indígenas, não sendo o contrário verdadeiro. E não deixo de perguntar se a luta antirracista amarela é abrangente ou contingente: se ela para no #StopAsianHate ou se ela se amplia.
De igual maneira, existem contextos afetivos em que a pessoa negra não participa como uma figura aceita na comunidade amarela tanto quanto a pessoa branca. Quando Laura Ueno apresenta seu trabalho, eu interpreto que famílias amarelas aceitam mais os relacionamentos inter-raciais com pessoas brancas que com pessoas negras; temos aqui uma pista do quanto o racismo invade principalmente os afetos.
Nessa pirâmide social dinâmica e que se [re]organiza ao longo do tempo, após as pessoas brancas estão as pessoas amarelas na cadeia opressiva. Estas, fechando-se em grande parte em sua cultura originária, mantêm sua tradição e suas histórias ao custo de negarem a presença de grupos racializados que não sejam amarelos e que [às vezes] não sejam pessoas brancas. E não é apenas nisso que está a questão. A questão é que, numa dinâmica racista que movimenta o Brasil ao longo da história, essas mesmas pessoas racializadas sofrem o racismo proveniente de pessoas brancas, mas ainda se posicionam num lugar social em que é possível ser racista, por exemplo, com pessoas negras e indígenas. Embranquecimento amarelo? Quando pessoas amarelas se dizem antirracistas, o que elas buscam enfrentar? Que tipo de racismo querem combater? Somente o racismo contra pessoas amarelas, sobretudo o racismo contra descendentes de japoneses? A busca é por um antirracismo em si, ou se busca construir uma defesa da identidade racial amarela, e não importa o que se passa ao longo do cenário político racista do país que elas coabitam? Por isso abro esse tópico com um subtítulo que pergunta se se trata de uma identidade ou se estamos realmente falando de uma racialização política.
Pode ser fruto da minha bolha, mas ao que tenho percebido, o debate amarelo que inclui um antirracismo mais generalizado tem sido mais recente. E eu arriscaria dizer que é algo a partir do final da segunda metade do século XX, com mais proeminência na última década.
A luta não pode ser apenas por um “antirracismo amarelo”; precisa ser pelo antirracismo inteiro. O debate não pode se prender aos degraus da pirâmide, tem que abalar a pirâmide inteira. Antirracismo pela metade é racismo parcelado. E, como vai dizer a antropóloga Lais Miwa Higa, “é difícil falar que é racismo quando as pessoas ainda não nos percebem como racializadas”.[13] No mesmo link que contém essa fala de Lais, você pode ler o seguinte:
“‘Nos últimos tempos, teve todo um cuidado de entender o que é raça no Brasil’, comenta Lais. Segundo a pesquisadora, há um movimento entre os coletivos asiáticos de não se fechar somente entre a comunidade asiática e enfatizar a solidariedade antirracista com outros movimentos. ‘Essa discussão, estando nas redes, permite que se tire da invisibilidade esse tipo de discriminação que tem raízes históricas, mais de 100 anos no Brasil, por exemplo’.”
Essa discussão em torno de pessoas amarelas, mesmo sendo feita por mim, uma pessoa negra, não desqualifica o debate. Pelo contrário, penso que ela está aqui justamente para que pensemos nas plurais estratégias do racismo à brasileira. Esse racismo cria grupos acessórios para potencializar, distribuir e reorganizar o colonialismo a partir das próprias pessoas capturadas pela colonização. Assim como existe o pacto narcísico branco, existem outros pactos que se fazem necessários na economia racial, que movimento o mercado político da raça e que de diferentes maneiras asseguram à Supremacia Branca o seu lugar na monarquia racial. Assim, quando a raça é ressignificada como uma categoria não apenas política, mas identitária, emergindo em termos ressignificados em negritude e até amarelitude, ela passa a se incorporar na identificação orgulhosa de um povo que quer ser notado em suas singularidades sem perder o acesso a direitos humanos. A armadilha está, como espero ter pontuado, quando essa centralização na identidade desconsidera todo o aparelho racista que se entremeia e organiza uma sociedade baseando-se no discurso racista.
Assim, não adianta a pessoa amarela se posicionar diante do antirracismo que clama apenas por representatividade social amarela. Embora isso seja fundamental, e não se pode negar, sabemos que a luta vai além disso. Por que não se somar aos movimentos negros e indígenas para ampliar a política de combate antocolonial? Por que não se associar aos questionamentos históricos contra a cisgeneridade, uma vez que a colonização se dá também a partir do gênero? Eu digo que a raça vem primeiro, mas isso está absurdamente longe de dizer que por vir primeiro ela vem sozinha. Não existe debate anticolonial legítimo se não houver um questionamento e uma recusa profunda à ideia de gênero que a colonização construiu. Isso revela que uma luta que se fecha apenas em um aspecto pode se tornar uma armadilha. Armadilha da qual a própria Direita tem tentado se instrumentalizar, usando o termo identitarismo para reduzir as lutas complexas e históricas a um quesito único de identidade.
Novamente, a luta antirracista, bem como outras lutas anticoloniais, não pode ser uma busca alienada por uma carteirinha da desconstrução. Buscar por essa “carteirinha”, mantendo-a meramente como um crachá de legitimidade e de identificação é declarar apoio ao estado atual das coisas, é usar o elemento étnico apenas para fluir melhor na sociedade do espetáculo, mas que por trás da cena apenas se mantém em seu conforto e em seu estado de comodidade – é ser racista. Para além da raça, para além de pessoas amarelas, para além do óbvio, precisamos entender que a luta é contra o colonialismo, e isso se faz no conjunto dos grupos mirados pela colonização.

“Eu e nós”, mas nem todes
Considerando o que foi dito até aqui, quando não nos damos conta da dimensão da colonização e de seus impactos nos diferentes grupos sociais corremos o risco de assumir uma falsa colaboração. Até supomos haver uma interação entre o sujeito e o grupo (entre “eu” e “nós”), esquecendo inclusive que nem todes pertencem a esse “nós”. Não é preciso abrir mão da singularidade de cada grupo social para que estes se unam contra o colonialismo, desconstruindo essa dinâmica discursiva da opressão. O mecanismo de homogeneização é bem central no colonialismo; no qual as diferenças não representam possibilidades, mas uma ameaça. Universalizar, nessa lógica colonial, é reduzir todes ao “nós” ou ao “eles”, nada pode existir que não seja narcísico, centrada nas necessidades e nas representações imagéticas e simbólicas do grupo supremacista. E é esse detalhe que deve participar de nossas atuações críticas e das práticas quando olhamos para nossa suposta ideia de desconstrução.
Se nosso ativismo e nossos posicionamentos políticos desconsideram a transfobia, o capacitismo, o preconceito e discriminação contra pessoas neurodivergentes; se não nos atentamos aos modos possíveis de vivermos nossas afetividades e nossas redes afetivas; estamos colaborando com o “projeto colonial”. Não somos capazes de dar conta de tudo, nem temos o tempo todo para isso, todavia não precisamos fechar nossos horizontes para o cenário que se apresenta diante de nós.
O corpo como marca do Cistema Colonial – um prenúncio da minha filosofia[14]
Este é apenas um anúncio rápido de um projeto filosófico que pode demorar de chegar, mas que o deixo aqui como um registro importante, originalmente escrito em 2020, mas elaborado muito antes, e até agora. Esse posicionamento filosófico tem sido teorizado há pelo menos 5 anos, mas pode ser que sejam necessários mais alguns anos até que ele ganhe forma e seja de fato proposto. Apesar disso, não tenho dúvidas de que o meu Blog já deixou muitas pontas expostas sobre essa ideia – resta-me tecer pano suficiente para ampará-la. Mas aqui vai, como sugere o título, apenas um prenúncio.
O produto mais cobiçado pelas várias Humanidades é o corpo. Não existe sequer uma sociedade humana na qual o corpo – seja ele qual e como for – não seja um objeto comercial e comercializável. O corpo, seja animal, vegetal ou outro, é – e sempre será enquanto houver humanidade – a fonte ou o receptor de mecanismos sociopolíticos e socioculturais. Todos os corpos são, para além de indivíduos, pessoas e sujeitos, objetos políticos; e não há corpos fora do Cistema, bem como não há Cistemas sem corpos. No dia que essa dinâmica mudar, no momento em que os corpos forem retirados do Cistema, mudará, então, toda a nossa noção já imaginada e imaginável do que é humanidade – quiçá ela deixe de existir ou, no mínimo, seja radicalmente reinventada.
Uma desconstrução construída[15]
Não se sabe bem se desde hoje ou desde sempre, mas não é um segredo o desencanto contínuo de alguns seres audaciosos, a busca por desprender-se do senso comum e vigente e o desamarrar-se da suposta alienação que prende aos seus grilhões os pensamentos mais simples e os desejos mais animalizados. Busca-se, então, de uma maneira disruptiva ou num artesanato mais sutil e delicado desfazer-se de si mesme à medida que se descobre o invólucro ao qual se esteve em submissão. Toda possibilidade de mudança é uma ameaça à estabilidade: se ela não prevê uma alteração completa do estado atual pode, ao menos, suscitar uma alteração dos parâmetros já conhecidos – esse mudar em si mesme costuma trazer à superfície os monstros do “e se?”, do novo, do ameaçador.
Ainda assim, ser alguém desconstruído é hoje quase que um título objetivado. E nesse ritual de desfazer-se para se refazer, renega-se o existir na estrutura antiga e reinicia-se numa busca pelo diferente, diferenciado. Pode até ser uma desconstrução.
Acontece que, por vezes, dado o desconhecimento do futuro e a previsão que falha pelo excesso de ingenuidade, toma-se por desconstruído todo um protocolo social que se encerra numa armadilha antiga e bem treinada. O ser em transformação supõe deixar o seu velho eu, e tal como uma serpente que acaba de trocar de pele – mas que está sensível, com a visão turva e com os movimentos comprometidos -, sujeita-se ao ambiente que o cerca; torna-se vítima de si e das outras cobras; refém de uma ideia fugidia, enevoada e perturbadora. Nesse lapso de direção, nesse ambiente que se mostra ainda mais caótico e voluptuoso, a desconstrução é então usurpada, toma-se bronze por ouro, ópio por água; embriaga-se na sensação de que realmente a mudança caminha naquela direção contrária à anterior, quando na verdade o bote foi certeiro e o engano realizado com precisão.
Nesse momento, começa-se a repetir nebulosamente o que dita o conjunto; faz-se da desconstrução uma espécie de religião: quem não a segue à risca e sem duvidar é herege, sem perdão; torna-se um novo animal, que agora a um novo cabresto obedece quem diz o que é certo e errado, obedece-se a quem condena a partir de suas visões tudo o que dela escapa ou a ela adverte. Essa pseudo-desconstrução aliena tal como a outra, mas talvez com o diferencial de ser vendida e comprada como a melhor, a verdadeiramente eficiente, a única capaz de encaminhar o ser à dignidade. É uma desconstrução viciada e viciante, enganosa e delirante, que na oferta de liberdade te prende ao dever e ao exemplo. Pense por um momento! Quais as construções sociais que te modelam hoje? Qual delas você pode escolher e rejeitar livremente? Melhor: você pode mesmo escolher e/ou rejeitar alguma? Essa desconstrução por vezes te consome dos pés à cabeça? “O que consome a sua mente controla a sua vida”. Mas uma desconstrução metrificada, protocolada e pautada numa moralidade não passa, creio eu, de uma desconstrução construída.
“Considerações Finais”
Que desconstrução você está buscando e por quê?
A sua desconstrução é para construir somente identidades ou [também] políticas de transformação social (independente do tamanho da sua abrangência)?
Sua imersão nos grupos de discussão anticolonial alimentam o debate ou alimentam o seu ego?
Você é uma pessoa aliada e imbricada nas causas anticoloniais ou você é só mais uma pessoa com a síndrome do salvacionismo?
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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Capa: a imagem usada para compor a capa desse texto foi obtida aqui.
NOTAS & REFERÊNCIAS
[1] Efrem Filho, R.. (2013). Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial, Anne McClintock. Cadernos Pagu, (40), 377–385. https://doi.org/10.1590/S0104-83332013000100014
[2] Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas:: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade E Estado, 31(1), 25–49. https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/view/6078I
[3] Rodrigo Ward. (2020). A sociedade do espetáculo na contemporaneidade. https://noticias.unb.br/artigos-main/4484-a-sociedade-do-espetaculo-na-contemporaneidade; ver também: DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[4] Ler o Post em: https://www.instagram.com/p/CwTIpehJ6Yz/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==
[5] Um exemplo é o professor do Instituto de Psicologia, Christian Dunker, que após falas racistas e obviamente desrespeitosas com a população negra usa do álibi de “ler e estudar” pensadores e pensadoras negras, citando inclusive que lê e utiliza Djamila Ribeiro em seus cursos. Ver aqui: https://www.youtube.com/live/oGxKZF_sVXk?si=9F9AEGSLCyaGzpgi&t=4827
[6] Raça: novas perspectivas antropológicas. (2008). 2ª Ed. Organizador(a): Orlando Araújo Pinho, Livio Sansone. <https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/8749/1/_RAC%CC%A7A_2ed_RI.pdf_.pdf>
[7] Você pode saber mais aqui: WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. 14. ed. Petrópolis – Rj: Editora Vozes, 2014. p. 7-20. Ver links dos textos em: https://bds.unb.br/handle/123456789/1065
[8] Henrique Yagui Takahashi (2020). Sorriso amarelo ou os tamagotchis da branquitude e a luta antirracista. https://diplomatique.org.br/sorriso-amarelo-ou-os-tamagotchis-da-branquitude-e-a-luta-antirracista/
[9] Ueno, L. S. (2020). Amores (des)racializados: um estudo psicossocial dos casamentos de “amarelos” com negros e brancos em São Paulo. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. doi:10.11606/T.47.2020.tde-05112020-194908. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-05112020-194908/pt-br.php
[10] Ver aqui: https://www.instagram.com/p/Cn8K51iunKZ/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==
[11] Takeuchi, M. Y. (2004). O perigo amarelo: imagens do mito, realidade do preconceito (1920-1945) (Dissertação (Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo.
[12] Ver exemplo aqui: https://lh5.googleusercontent.com/IK1cHi_feEBBtAsLuy25GsrSLaRVRfbzHoXA1sjgEWlCv0Gj8AyBaJEVyyc8H0-6hYZKQdWBXvTAWAP7Bv101phrFnProWo5asidjVW2HAAjy5xpHD61P4sCGDmvw9S4u-2jWojK
[13] “HIGA, Laís Miwa”. (2021). População de origem asiática é vítima de violência e preconceito na
pandemia.
<https://jornal.usp.br/atualidades/populacao-de-origem-asiatica-e-vitima-de-violencia-e-preconc
eito-na-pandemia/>
[14] Medrado, Andreone Teles. (2020). Um prenúncio da minha filosofia. https://devaneiosfilosoficos.com/2020/12/08/um-prenuncio-da-minha-filosofia/
[15] Escrito originalmente em 2020: Medrado, Andreone Teles (2020). Aforismo #05 – desconstrução construída. https://devaneiosfilosoficos.com/2020/01/14/aforismo-05-desconstrucao-construida/

