Texto por: Aline Yuri Hasegawa1
& Andreone Teles Medrado

Quais ombros carregam a fantasia do bom pai, e quem sustenta as boas mães?

Mais um dia dos pais se passou e eu me senti nauseada com as mensagens de gratidão, respeito e amor a pessoas que, em diversos momentos, em contextos diferentes, se ausentaram, se desresponsabilizaram e/ou estiveram, em formatos diversos, menos presentes. Estarmos enredades na comemoração de uma data comercial e reproduzindo essa narrativa em nossas redes sociais explicita, em meu ponto de vista, como a posse do corpo e dos afetos das mulheres é a grande sacada da [re]produção capitalista. 

A fantasia do bom pai é sustentada pelo trabalho invisibilizado de muitas mulheres, que agem recordando-os dos aniversários, das consultas, dos nomes dos amigos, dos contatos da rede de apoio, sustentando uma rede que se pretende familiar, mas que vem do trabalho de costura afetuosa realizada por elas [e só por elas, as pessoas não-pais, em maioria numérica as mães]. Essa fantasia também encontra respaldo, se sustenta e se legitima, a despeito de nossos trabalhos como mulheres-mãe, nas redes familiares, que elogiam os pais por fazerem o mínimo; no mercado de trabalho, que não oferece condições para pais participarem igualmente da vida de seus filhes e que por outro lado também penaliza as mulheres por carregarem essa demanda.

Alguns mecanismos sociais precisam ser extremamente óbvios, ao ponto de serem ignorados. Algumas práticas sócio-históricas precisam ser, reiteradamente, colocadas como estímulo presente, que de tão ali, de tão dentro, de tão naturalizado e de tão valorizado pelo constructo colonial passa a ser tido por no mínimo natural. A naturalização da violência é a violência de natureza imposta sobre corpos diagramados numa sociedade que mede comportamentos e os recorta para caber em seus escopos. Escopos, corpos; descartáveis como copos: eis uma prática de pais, uma prática tal patriarcal; violência de regência, violência de gênero, violação que gera o desigual.

Se considerarmos o desejo e o prazer, fica ainda mais evidente a importância da castração dos desejos das mulheres em torno da família. Como vc poderia almejar algo além de ser uma boa mãe? Como um projeto de vida pode ser mais importante do que o sucesso de sua prole? Como vc, mãe, não está disposta a sacrificar seus sonhos em prol da felicidade de sua própria família?

O projeto não é ambíguo, ele é naturalizadamente perverso; desenha-se uma proposta e faz a gente acreditar que ela acontece ao inverso. Veja, que inverso é esse se tudo culmina para o prometido? Que inversão é essa que mostra justamente a face que foi prometida? Quiçá existe uma fantasia que paira no sonho de quem desde sua infância cresceu acreditando – ou sendo numa indução para que acreditasse – que o desejo “instintivo”, o cuidar e o gerar pertencessem única e exclusivamente à pessoas nomeadas mãe. O selo de “agora sim você é uma pessoa completa” só é pregado em corpos chamados mãe, em subjetividades ditas mães. O patriarcado não é ingênuo. Desde sua fundação, quando na gestação não existe afeto do patris, mas um desejo de manter cativo quem dará seguimento à sua herança, os mecanismos nunca são de aliança. Se algo existe, talvez sejam as trancas de uma gaiola de vidro. Nela se encerra quem quer que seja dotada de doçura, candura, cujos atos são meigos, cujos substantivos diminutivos cumprem sua missão ao ponto de reduzir toda uma complexa subjetividade a um temo maternal, com destino, rota e progresso predefinidos por… eles… os patris… os patriarcais.

“MÃEZINHA”… Perdoem-me vcs, pessoas educadas, polidas e cortesãs. Renego, rechaço e esculhambo essa nomeação. Odeio. Provocação, provação e insulto. Rótulo que esgarça os constrangimentos cotidianos por que passamos, nós, que maternamos em tempos caóticos.

Caos climático, pandemia, novas formas de governança, dissolução das categorias estruturantes – o Estado burguês continua se divertindo às nossas custas. E vocês, que se esquecem das crianças, que se esquecem do lazer, que se esquecem do tempo passando gostoso, enclausuram as mães dentro de caixas rígidas: mulheres, boas mulheres, cuidadoras, essenciais para o futuro da humanidade, minha heroína, meu tudo

Maternagem, termo que contrasta com a ideia de “maternidade” e “mãe”, explicita não somente nossa diversidade – marca fundamental da experiência humana -, mas também e necessária revisão de nossa representação coletiva e, com isso, dos sonhos individuais que nos impulsionam para além da das amarras do cotidiano de sobrecarga e sobrevivência.

Amigas e conhecidas lembram-se aterrorizadas do pós-parto, do puerpério. Trememos com as memórias. A sensação de não saber navegar na nova maré que se apresentava – nosso corpo sem a barriga que há meses nos acompanhou, crescendo paulatinamente; um seio que doía e se transformava; todas as outras transformações corporais abruptas; cheiro de leite azedo, gordura e suor em todos os poros, nos cabelos, lençóis…; um bebê dependente de cuidados integrais… e o isolamento trazia para a maioria de nós a sensação de desintegração.

Um mundo sem referências, sem apoio, sem acolhimento. Sozinhas com um bebê que não se comunica conosco, que só chora pelo nosso peito, que rasga, que trinca, incha, espirra, inflama. no meu caso, o crepúsculo e o prenúncio da noite parecia anunciar, diariamente, a minha própria morte. Chorava todos os dias no fim de tarde; tinha medo do escuro, da solidão de saber de mais uma noite em claro… sem descanso, sem apoio… cansada e sem saber o que fazer.

Eu precisava manter aquele bebê vivo, mas me sentia meio morta. Recentemente, me falaram que Vênus, a estrela Dalva, aquele ponto de luz que surge nos fins de tarde, ao pôr do sol e às vezes junto com a lua, é o planeta que nos convoca nossos desejos. Como, e o quê, seria possível desejar se eu não estava me sentindo presente nesse mundo? Acho que chorava também pela certeza de que todas as noites, pela condição em que me encontrava, me via vazia de desejo; o prazer passava longe.

Dirão vcs, “mas, Aline, e o prazer de ter gerado uma vida?”

Essas e outras ponderações frustram nossa capacidade de olhar com distanciamento a experiência da maternagem no contexto em que vivemos; reforçam a ideia de que somos fortes, prontas pra tudo isso, e que nascemos para tal. “Precisamos nos acostumar à violência do desamparo e estarmos satisfeitas, já que nossas mães e avós fizeram da mesma maneira”… será?

Conversei durante algum tempo com mulheres que maternaram em contextos muito diversos do meu: mulheres que estiveram cercadas de um tipo de comunidade que não se esqueceu dos cuidados como ferramenta de atravessamento coletivo de jornadas da vida. Elas ouviram meus relatos e estranharam minha sensação de abandono e isolamento. Relataram que em nenhum outro momento de suas vidas se viram mais cercadas de cuidado, amor e afeto. “A experiência de cuidar integralmente de um bebê”, me diziam, “era responsabilidade da comunidade e a mãe, as mães, se cuidavam entre si”.

O patriarcado se organiza em torno da autoridade do pai ou de uma determinada figura masculina sobre a sua família. A figura desse homem é o centro de gravidade da vida familiar, controlando os recursos de todos os envolvidos nessa rede. É ele a figura masculina de referência, quem dita as regras cotidianas. Ele ocupa o espaço de conselheiro, administrador e gerente das vidas sob seu comando. Não necessariamente provê economicamente a unidade doméstica e familiar, mas sua autoridade se assenta também na proteção que sua presença confere perante os ataques externos – nesse sentido, outros machos são potenciais ameaçadores da ordem do lar e são competidores. Ainda que sua ação interna ao grupo possa ser predatória, violenta ou agressiva, ela é aceita e legitimada justamente pelo perigo ainda maior que os demais homens desconhecidos representam. 

Há quem ainda diga que “o homem é o lobo do homem”; mas duvido que seja necessário muito esforço para entender que o homem (o homem cis, diga-se) é o lobo do não-homem. O homem tem ódio daquilo que não reflete sua imagem no espelho narcisista; odeia ao ponto de tirar a vida que está à sua frente. Odeia as mulheres, as bichas, as travestis, as não bináries… odeia. A violência não é o solo sobre o qual cresce o patriarcalismo, ela também não é onde suas raízes se fortalecem; a violência é o próprio patriarcado; o solo quiçá seja tudo que o nutre, mesmo que a contra gosto. E o mecanismo que ele tem usado é o medo, a coerção, a ditadura, a castração… O patriarcalismo é colonial, imperial e suas ações; predatório, extrativista, utilitarista… e isso é tão óbvio que muitas vezes é naturalizado num local que de tanto se ver não se enxerga mais.

A imaginação e reforço cotidiano das violências e explorações patriarcais imprime medo, insegurança e constrangimentos à performance plena e às possibilidades de fruir a vida de todes enredados nessa trama – inclusive os homens. A memória das agressões e o perigo delas mantém o patriarcado operando.

E a pergunta retorna: quais ombros carregam a fantasia do bom pai, e quem sustenta as boas mães? Esses pais, negligentes em suas ações, amparados pelo pacto narcísico patriarcal que, mesmo após violências e abandonos, basta um novo mês de agosto para que panos quentes sejam passados. Ora, o patriarcado é capitalista em sua dinâmica: lucro, exploração, mão de obra a extorquir, produtividade a perseguir. Esse Cistema patriarcal clama por disciplinarização de corpos docilizados. Eles domesticam os afetos para que seus projetos sejam executados. O grito de uma mãe que se nota na gaiola de vidro; que se percebe na trama e que se perturba em reconhecer-se gente ao espelho é para os patris um desespero.. 

Nesse plano, a monogamia assume a dupla função de manter as mulheres presas às redes domésticas, pois, prioriza relações familiares que reforçam os laços patriarcais, e castram seus desejos e prazeres, mantendo-as enredadas em projetos de vida que tem a família como centro e fio condutor das ações. Não podem desejar viver projetos que concorram com sua atenção aos filhes e maridos. Daí que surge, pra nós, pessoas que semeamos sonhos nas barrigas, no chão e nas imaginações, a vontade de experimentar novas formas de se relacionar que não castrem nossos desejos; mas que justamente potencializem nossa capacidade de tecer redes de afeto e solidariedade para conseguirmos fertilizar o mundo, acolhendo as crianças e as mães.

O que mais poderia ameaçar um Cistema perverso, movido por sedação de seu povo se esse mesmo povo recobrasse a consciência e a sedação não mais o controlasse? O Cistema afetivo patriarcal se vê constantemente ameaçado quando corpos subjugados e “condenados a um único modo de amar percebem que o afeto, e com ele toda a sua fluidez, se dá na pluralidade, no abrir caminhos, na ruptura do pacto amoroso unidirecional, nas alianças voluntárias, nos desejos vivíveis.

A não monogamia, nesse sentido, é muito mais sobre repensar os formatos e evitar as castrações do que sobre putaria ou piranhagem – pratiquemos! -, mas acho que a discussão é sobre honestidade nos afetos; é olhar para dentro e refletir sobre nossos desejos e vontades e trazer isso pra fora em formatos de relações amadurecidas, consistentes, de parceria e co-responsabilidade. É sobre manter as portas abertas e ainda assim nos sentirmos segures de que não seremos abandonades porque sabemos que o desejo da outra pessoa é caminhar ao nosso lado.

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Aline Yuri Hasegawa
& Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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Capa: a imagem usada para compor a capa desse texto foi obtida aqui.


Mãe, pesquisadora e produtora. Jogadora do União Lapa, time de futebol misto de Várzea, militante d’A Craco Resiste, aluna de Capuera da Escola Flor da Aroeira. Integrante do Wede’rã Lab e do LABTTS/DPCT/UNICAMP. [Foto: Aline Y. Hasegawa]