Texto por: Yarlenis Mestre Malfrán1
& Andreone Teles Medrado

Nada da branquitude me surpreende mais… E já é preciso dizer que esse texto não pretende ser uma generalização; embora de tão aplicável que pode ser é quase uma verossimilhança de comportamentos. Assim, só com mais um adendo, que seja dito que esse texto parte de uma experiência concreta que me lembra (I) o quanto pessoas brancas se incomodam com mulheres negras sendo donas das suas escolhas, sobretudo quando não estão a serviço da branquitude, e (II) o quanto pessoas brancas (e o gênero se dilui nessa prática em vários contextos) acham que migalhas afetivas é tudo que a pessoa negra merece, deduzindo que é justamente – e até somente – isso que algumas pessoas negras podem esperar e aceitar em relacionamento A branquitude, a partir de seus mecanismos de centralização num pacto em que pessoas branca ajudam-se mutuamente, constrói em suas fantasias coloniais o sujeito afetivo negro, que em sua concepção imperialista é um objeto afetivo-abjeto, que está ali para nos servir na mesma medida que o rechassamos enquanto subjetividades dignas de afetos e amores dedicados.

Imaginem por um momento a situação de estar em uma relação não mono com um homem branco, cis e pai de uma criança. Nesse contexto acontece um término recheado de várias atitudes toscas de várias as partes – “toscas” para se dizer o mínimo a respeito da cena. Acontecem também “desabafos” (de todas as partes) e eles são usados na praça pública das redes sociais. O resultado de um desses desabafos revela uma figura nem tão caricata para ser desacreditada, mas nem tão real para ser materializável: um homem sai condecorado como “pai da pátria, coitado e oprimido”, só para minimizar as vezes que, de fato, ele destrata e oferece migalhas afetivas às suas companheiras. Eu entendo isso como uma forma de instrumentalização dessa parentalidade que, não por coincidência, é branca.

Como assim? Bom, vamos novamente ao campo imaginativo! Imaginem estar vivendo um relacionamento não mono e existir a possibilidade de compartilhar a moradia com esse suposto parceiro e sua filha, e os adultos envolvidos nessa relação optarem por ter quartos separados. Cabe dizer que a escolha foi construída em comum acordo com esse parceiro, portanto, trata-se de uma decisão construída de forma conjunta, de modo que, quando a criança estiver na casa, ela compartilharia o quarto com o pai. Vocês encontram algum problema nessa configuração? Isso soa agressivo? Parece ofender o bem-estar de alguém?

Pois bem, agora, novamente, imaginem que isso é visto pela mãe da criança – que não participa do contexto afetivo entre essa pessoa em questão e o pai da criança – como uma falta de consideração com as necessidades da filha pois, na perspectiva dela, um quarto inteiro deveria ser disponibilizado para a criança – e somente para ela.

como essa decisão foi exposta deliberadamente em uma rede social, com milhares de seguidores, o que se observou nas pontuações feitas por essa mãe, foi que ela frisou que a companheira do pai (que não é a mãe da criança), não estaria sendo solidária, destacando, ainda a posição de suposta vítima do pai (o mesmo que concordou e até propôs esse acordo que foi mencionado no começo). Pode ser interessante expandir essas ideias neste texto. Tá bem, vamos lá.

Obviamente essa decisão de cada um manter quartos separados poderia ser renegociada; ela não é nem certa nem errada a princípio. O ponto que pode suscitar uma reflexão é: a quem se julga em praça pública da não monogamia? A quem serve esse tipo de exposição? Qual é o palco em que brilha a branquitude e qual o cadafalso que pune corpos não brancos? É não monogamia ou é brancogamia? Ao final, a discussão sobre parentalidade parece emergir nessa cena toda para disputar uma estratégia de poder que precariza os cuidados com as infâncias, ou ela é, em vez disso, um instrumento de cerceamento e de chantagem das parcerias que não são mães/pais? Se a parentalidade (que não é inócua nem isenta de marcadores sociais) é usada como estratégia de cerceamento, não será que, no fundo, essas pessoas querem preservar sua unidade familiar nuclear? Mais: quando a parentalidade, e quiçá a maternidade a ela associada nesse processo como uma entidade comunicada, atua não na promoção de uma igualdade de cuidados, ampliando a rede afetiva e inserindo a criança nos vínculos não monogâmicos, que função ela assume?

Certamente penso que, nos vínculos que se criam entre pessoas que praticam a não monogamia, é um imperativo discernir com um sentido ético quando se trata de uma real incompreensão sobre necessidades da criança e quando se trata da parentalidade usada como instrumento moral contra terceiras pessoas. Inclusive precisamos discernir quando a delimitação disso que chamamos “necessidades da criança” é pensada sob os parâmetros de quem detém privilégios de raça à classe. Que parâmetros são utilizados quando uma não monogamia se depara com classes diferentes? O que se faz quando a materialidade das coisas confrontam hábitos e costumes baseados em privilégios, mas que estes não encontram eco em outras realidades possíveis. Assim como nem todas as pessoas são brancas, é necessário dizer o óbvio: nem todas as pessoas são de classe média. Os privilégios não são universais; por isso se chamam privilégios.

Assim, eu me pergunto que tipo de pessoa é a que considera que o fato da criança não ter um quarto próprio é, a priori, um sinônimo de condições inapropriadas de vida? E ainda mais, quem é que diante de um acordo construído em conjunto, escolhe deliberadamente demonizar a mulher? A mulher negra posta no jogo da branquitude como o estorvo. Não estou romantizando a falta de espaços nas moradias (uma situação comum para milhares de crianças brasileiras que não são brancas nem ricas, e decorrente da desigualdade social em que vivemos). Em vez disso, estou me referindo ao fato de acontecer um julgamento em praça pública – rotulado como falta de soliedariedade – por um acordo construído com um homem/pai cis branco onde apenas uma das partes – a mulher, negra – recebe as críticas públicas por essa escolha. 

Já dizia Lélia Gonzalez o quanto mulheres negras são tratadas como infants. Por isso não me surpreende que a opção por um quarto independente (que além de ser fundamental para a configuração desse relacionamento específico e construída em consenso com o pai da criança), seja julgada por uma pessoa branca externa ao contexto desse afeto em particular, com vastos recursos financeiros, como mimimi e falta de solidariedade. A consciência de classe da gata… Imaginem que inclusive o pai chegou a considerar outros aluguéis com apenas um quarto. 

Francamente é impressionante o fato de algumas pessoas acharem que absolutamente tudo  é sobre elas e para prejudicá-las. A mesma pessoa que, a partir dessa contingência específica, se sente no direito de julgar a afetividade de terceiras sob o prisma dela ser uma “busca pelo príncipe encantado”; uma pessoa que, enquanto branca, não deve fazer a mínima ideia do que é preterimento afetivo de mulheres negras. Mas essa é outra camada da treta….

[Pausa para colocar outras camadas desse contexto:] Imaginem, agora, uma ocasião em que a mãe dessa criança pede para o pai sair da casa dela, pois eles estavam se separando. Porém, por conta de uns trabalhos que ela estava fazendo em casa, precisava que o pai estivesse no lar a partir das 08h da manhã para ele cuidar da criança. Diante dessa contingência, a outra companheira – a dita “pouco solidária” – oferece a sua própria casa para ele morar durante algum tempo e conseguir se deslocar com mais facilidade e, assim, cuidar da filha de ambos. O principal objetivo desse movimento é contribuir para que aquela mãe tenha o suporte necessário para ela fazer seu trabalho. Ou seja, olhos descolonizados verão que existe solidariedade; contudo o que me parece é que, por mais que pessoas negras façam em prol de uma solidariedade, isso nunca é suficiente para pessoas brancas … .você tem que se doar, abdicar total e absolutamente da sua autonomia o tempo todo, como único atestado de merecimento de respeito. Não por acaso, e absolutamente longe de ser uma coincidência com a história racial do Ocidente, a branquitude ainda posiciona pessoas negras no lugar de escravas, serviçais afetivas, doadoras de atos de serviços e objetos descartáveis. Mas como usar esses termos “não pega bem”, elegem outros, ou apenas não nomeia explicitamente, mas fazem isso sem jamais abandonar o comportamento regente das relações entre “casas grandes e senzalas”.

Quando pessoas que têm filhes se relacionam de forma não monogâmica, várias questões entram em cena para as parcerias que compõem esses vínculos; dentre elas a coletivização do cuidado das crianças e a compreensão de que as demandas da criança é um assunto prioritário. Inclusive, isso deveria ser pautado além desses vínculos, disputando a necessidade do Estado disponibilizar cuidados públicos para as crianças. Sem dúvidas esses princípios são fundamentais para que tais vínculos tenham a solidariedade como principal fundamento. 

Portanto,  a dimensão que observo aqui nesse contexto narrativo é o que podemos chamar de instrumentalização da parentalidade; dinâmica utilizada para impor julgamentos morais às demandas afetivas e de autonomia a parceiras/es que não são mães/pais dessas crianças e se relacionam com um pai/mãe. A parentalidade é usada, então, para distorcer fatos e naturalizar as migalhas afetivas; enfim, para impor uma lógica de meritocracia afetiva. Rotular essas parceiras como “inconsequentes, egoístas,” são algumas das formas que tenho visto diante da necessidade de estabelecer negociações perante os conflitos que aparecem. Curiosamente, ou não, esses tipos de julgamentos morais são usados para blindar os homens contra qualquer crítica sobre a forma em que tratam as suas parceiras que não são as mães. Digo isso porque o preterimento e as atitudes explícitas de descarte afetivo por parte do parceiro são questões que entram em cena quando se dispensam esses rótulos às companheiras que sofrem os efeitos desses jogos emocionais. A pessoa faz a performance de apaixonado que nem o MC Cabelinho e depois disso vem o descarte, com algumas tentativas de reaproximação com a criatura – uma reaproximação psicologicamente movida por comportamentos de migalhas afetivas seguidos de ghosting, ambas práticas frequentes em relações inter-raciais com pessoas brancas que vestem o manto da desconstrução, mas que na ação prática e cotidiana praticam o racismo afetivo

Obviamente que a parentalidade envolve as urgências dela (exatamente as mesmas que existem quando se escolhe construir uma relação com outras companheiras que não são mães). Por outro lado, a não hierarquização de relações não mono significa que cada uma terá um lugar diferente. Certamente concordo com que cada relação tem sua própria singularidade; isso é diferente a se contentar com migalhas. Há um texto que traz logo no título esse questionamento – Pode existir Hierarquia e Prioridades nas relações Não-Monogâmicas? – e que pode ser um ponto de partida crítica para pensarmos o que chamamos de hierarquias e como elas fazem parte das relações, sejam monogâmicas ou não monogâmicas.  

Logo, minha reflexão é: por que tomar a condição parental como uma cartilha moral para classificar em praça pública a pessoas ruins versus boazinhas, distorcendo esse debate tão importante? Novamente, eu chamo de instrumentalização da parentalidade pois essa condição costuma ser usada, a priori, como um parâmetro de superioridade moral que tornaria inválida qualquer demanda afetiva ou por autonomia das parceiras que não são mães. Junto a isso, está o pacto narcísico da branquitude, que nas relações afetivas interraciais ainda assim favorece a parte branca quando pessoas brancas se solidarizam entre si contra uma pessoa negra. Igualmente, o patriarcado, fundado no racismo afetivo, assina o pacto narcísico branco quando mulheres brancas prontamente se disponibilizam em favor do homem branco, protegendo-o acima de tudo. Essa condição tem servido para homens brancos e cisgênero se blindarem (ou serem ainda mais blindados) de críticas quando eles practicam o descarte afetivo, o preterimento e a falta de cuidado com as questões que envolvem essa outra relação que se estabelece em paralelo. Não estamos falando aqui dos milhares de mães solo que lutam pelo básico no Brasil, estamos falando de gente branca, privilegiada que instrumentalizam a parentalidade para que apenas as suas demandas sejam legítimas e legitimadas. Assim fica fácil reservar o lugar de insensíveis e vilãs às parceiras do pai. 

Que seja repetido: não me surpreendo em nada que se trate de gente branca e cis, com privilégios gritantes, fazendo esse movimento de tomar a parentalidade como uma arma para silenciar, desqualificar, falar em nome de terceiras pessoas no seio de relações não monogâmicas. Menos espantoso é notar que mulheres cis brancas pactuam nesse movimento, sustentando o pacto narcísico branco, no qual, na discussão de gênero, a mulher branca se alia ao homem branco na manutenção patriarcal. Todavia, não é porque uma situação ou atitude deixa de espantar que ela deixa também de ferir. Pessoas que ousam cobrar que pessoas racializadas e precarizadas se doem até o infinito ou se anulem nas suas necessidades afetivas, para que apenas tenham espaço as demandas, os desejos e a vida deles (brancos) são o que senão pessoas que assinam reiteradamente o contrato da branquitude? 

Cada relação é singular, e seu lugar na configuração não mono vai estar mediada pelas prioridades decorrentes da parentalidade, e junto com isso, por outros marcadores sociais como raça e classe que precisam ser observados para sermos solidáries com todas as partes. Mas vale a pena o questionamento: qual o espaço da parentalidade nas discussões sobre relações afetivas? A parentalidade é uma responsabilidade que deveria acontecer tal como para mães e outras pessoas com crianças ou, só porque está no contexto do homem cis branco ela passa a ser um estrelismo, um aspecto de dignidade? Até quando homens, que fazem o mínimo, usarão desse mínimo (muitas vezes um mínimo bastante mal feito) para legitimarem novamente seus desejos e suas vontades em detrimento de outros grupos sociais?

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Yarlenis Mestre Malfrán
& Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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  1. ↩︎

Corpo dissidente negro, vivendo e pesquisando sobre sistemas de dominação. feminista.