– Tem muita gente confundindo liberdade emocional e afetiva com falta de comprometimento. Não ser presente, não se dedicar a um afeto e ainda tratar as pessoas como se elas fossem afetividade disponíveis no mercado das relações não é ser uma pessoa não-monogâmica. Isso tem muito mais a ver com usurpação: usa-se a não-monogamia como o escudo que te protegerá de suas inseguranças e de suas incapacidades relacionais, sem se responsabilizar em nada;

– Além disso, responsabilidade afetiva é, acima de tudo, sobre cuidar de si sem prejudicar as outras pessoas, é sobre sabermos que não existe uma vida livre de sofrimentos mas que, embora não sejamos necessariamente responsáveis pelas emoções alheias, podemos contribuir não criando mais razões de sofrimento dos quais sejamos nós a origem;

– Sou grato pelas trocas que tenho em minhas relações. Aprendo sempre, e a amizade, o acolhimento e a transparência sempre serão as bases dessas construções afetivas;

Hierarquias em relacionamento não precisam passar pelo caminho da autoridade excludente/exclusivista; privilegiar afetos não é sinônimo de supervalorizar uns em detrimento de outros; se isso não ficar nítido a não-monogamia será apenas um modo que sustenta uma falsa autonomia;

– Reitero, ainda tem gente confundindo as coisas por aí. Pessoas na Não-Monogamia de Fachada, ou por Conveniência, usam dessa teoria para acobertar suas incapacidades de relacionamento. O que é muito contraditório, já que a não-monogamia é esse espaço simbólico no qual podemos nos permitir sentir em nossas variadas facetas. Mas para isso precisamos assumir nossas singularidades e nos respeitar e respeitar às demais pessoas com sinceridade. Sem consciência de nossas dificuldades pessoais tudo servirá de escudo. E não existe escudo mais atraente que a falsa ideia de liberdade.

* * *

Ao contrário do que algumas pessoas possam deduzir, a vivência não-monogâmica está repleta de angústias, pois segue sendo uma vivência humana, entre seres humanos. Diferente do imaginário popular, no qual a não-monogamia figura como um formato de relação sem comprometimento, sem envolvimentos profundos e com liberdade acima de tudo, ser uma pessoa não-monogâmica é, entre outras coisas, colocar-se em desafios. Desafios esses que vão desde o modo de lidar com os afetos que se recebe das pessoas até a maneira como se passa a entender as próprias emoções.

Quando falamos de relacionamentos estamos falando de aspectos que envolvem as nossas emoções, os nossos sentimentos, o ambiente que nos rodeia e, obviamente, a nossa história de vida. Um indivíduo tem um percurso de vida que compõe, constrói e desconstrói quem ele é ao longo do tempo, e esses componentes são parte central do funcionamento dessa pessoa, seja consciente ou inconscientemente.

Quando vivemos numa sociedade que opera a partir de mecanismos de controle dos corpos – seja direta ou indiretamente, física ou virtualmente – estamos dialogando sobre o quanto esses mecanismos encontram em nós potenciais aderências. A Monogamia é um modelo que se adere ao social sobretudo por ser um modo de funcionamento que se constrói sobre sentimentos e emoções que afetam muito os seres humanos: medo, ciúme, angústia.

Um sistema monogâmico “bem-sucedido” é aquele em que emoções como a angústia, o ciúme e o medo são tratadas como problemas, como defeitos de personalidade e como fraquezas que, evidentemente, devem ser evitados. Assim, se essas evitações encontram amparo e se são reforçadas nas normatividades e nas normalizações socioculturais, o sistema tem aí um solo fértil para aprofundar suas raízes. Fugir dessas dinâmicas tão profundas requer, inevitavelmente, escavar o solo, desenraizar essas emoções tão basais e olhá-las não mais como erros de conduta, mas como pontos a serem [auto]conhecidos pelos sujeitos.

Como dito em outro texto [A Não-Monogamia e o Medo do Abandono], pelo medo de sermos abandonades por algo/alguém procuramos contratos que sejam no mínimo aparentemente sedutores e que prometam, mesmo que jamais cumpram, alguma garantia de que uma determinada relação será duradoura, indefinidamente – se possível, “até que que a morte nos separe”. Além disso, a fantasia monogâmica constrói caminhos que levam os sujeitos a acreditarem que toda relação é um pacto de exclusividade. Por consequência, a exclusividade pressupõe o direito de um corpo sobre o outro, bem como o direcionamento de seus prazeres corporais a uma única pessoa contida na relação. Se considerarmos a noção de prazer de um modo mais amplo, podemos incluir a existência de exclusividade entre afetos não afetivo-sexuais, como família, amizades mais longas. Ou seja, nessa Mono-Lógica monogâmica, a produção de afetos pautados na exclusividade se expande para qualquer construção afetiva.

Socialmente existem pactos nos quais certas relações contém sujeitos que têm mais direitos sobre outros. Familiares acreditam que têm mais direito sobre a atenção e dedicação de seus membros do que teriam outras pessoas fora da família. Em eventos muito importantes, e com vagas limitadas, não é raro que, a depender do grau de parentesco, se convide primordialmente pessoas da família (mesmo que não exista uma afinidade que justifique essa escolha). Amizades de longa data geralmente são preferidas caso se receba um ingresso para um show incrível. E assim vai…

Dentro do modo de funcionamento monogâmico, o critério de escolha muitas vezes está intimamente ligado ao modo como as relações são construídas, ou seja, pautadas na hierarquia autoritária. E relações construídas a partir de hierarquizações não planejadas e não conscientes, tendem a funcionar também de modo não planejado e não consciente, em que o componente autoridade atua como a cola que prende os afetos.

Ou seja, se hierarquias são criadas a partir de símbolos e dispositivos de poder – no sentido de controle sobre algo/alguém -, como acontece em relações por vínculos geracionais (como famílias), em casamentos monogâmicos (sobretudo heterossexuais) e em ambientes nitidamente hierarquizados (comunidades religiosas, escolas, universidades e empresas), suas performances serão também pautadas em funcionamentos estruturados. Dito ainda em outras palavras, quando as relações, e os afetos que elas contêm e [re]produzem, são construídas sobre bases historicamente instituídas, que se retroalimentam ao longo do tempo e que não exigem (ou não comportam) uma análise crítica para funcionar, o caminho que se percorre não é outro senão o da hierarquia pautada na autoridade.

Pensando Hierarquias – definindo para compreender

Numa análise breve sobre o termo hierarquia, temos que, segundo o Oxford Languages, sua definição é de uma “organização fundada sobre uma ordem de prioridade entre os elementos de um conjunto ou sobre relações de subordinação entre os membros de um grupo, com graus sucessivos de poderes, de situação e de responsabilidades. (grifo meu). Ainda, segundo o dicionário Michaelis, hierarquia é definida como uma categoria atribuída às pessoas ou às coisas, classificadas de acordo com a ordem de importância, crescente ou decrescente. Dessa forma, embora hierarquia possa envolver uma organização baseada em estruturas de poder, isso não é por si uma hierarquização.

Logo, seguindo as definições acima, assumo aqui no texto a definição de hierarquia em consonância com a ideia de que hierarquizar é organizar um conceito, um objeto ou uma instituição a partir do grau de prioridades que cada elemento apresentam dentro dessa ação organizacional. Adicionalmente, insiro aqui que moralizar o termo é inseri-lo dentro de uma ótica que inclui o certo e o errado, bom ou mau. E, nesse contexto, se levamos esse termo para as nossas relações precisamos estar cientes de que uso estamos fazendo deles. Assim, em se tratando de não-monogamia, compreendo que hierarquizar e privilegiar os elementos presentes nas relações não precisa ser uma ação compreendida do ponto de vista moral.

Hierarquia vs Autoridade – não são sinônimos nem dependentes

Antes de dizer sobre a hierarquia dentro de relações, cabe destacar que um sistema pode ser hierárquico sem necessariamente ser pautado em figuras de autoridades. Todavia, não se pode negar que a união entre hierarquia e autoridade não é nem rara nem difícil, pelo contrário, com bastante frequência caminham juntas dentro de relações de poder. Como exemplos de hierarquias pautadas na autoridade, temos:

(I) a família – em que figuras mais velhas (se a hierarquização for a partir da idade, por exemplo) exercem autoridade prática e/ou simbólicas sobre as mais novas, valendo o memso para o aspecto geracional: quem gera a família se constitui como quem possui a família (as pessoas genitoras, avô, avó, pai, mãe, etc);
(II) matrimônios monogâmicos heterossexuais – se o componente hierárquico for o gênero, e muito provavelmente o é, de modo geral se elege uma figura – a masculina – sobre a qual giram as dinâmicas da relação; é geralmente a partir do homem que se consolidam as decisões mais importantes; a autoridade masculina se demonstra dentro e fora das relações; Ao trocar o componente gênero, como em matrimônios homossexuais, a hierarquia com autoridade pode ser inserida a depender de outros fatores, como raça, classe, idade, escolaridade, etc.
(III) em ambientes “militarizados– são ambientes que tenham funcionamento semelhantes ou iguais aos de espaços militares, nos quais a organização do grupo é feita a partir de escalonamentos; em que esses escalonamentos são graduados de acordo com o poder e a autoridade que uma entidade tem sobre a entidade imediatamente anterior na enumeração da organização;
(IV) espaços educativos – sobretudo em espaços mais tradicionais/conservadores, o sistema educacional opera em categoria hierárquicas, minimamente instituídas entre discente e discente. No momento que se exercem atividades coercitivas no processo educacional e no momento em que a fluidez e o trânsito de corpos e/ou de ideias e comportamento estão sujeitos às dinâmicas impostas por algumas entidade (docentes, por exemplo), temos um sistema que , além de hierárquico é também autoritário;
(V) Religião Cristã – inegavelmente o cristianismo propõe uma ideia de amor que implica em inúmeras cessões por parte de quem segue essa tradição religiosa. A hierarquização é nítida desde o começo: Pai, Filho e Espírito Santo, depois, quem for firme e fiel. Essa hierarquia é autoritária a partir do momento em que a figura suprema de poder, masculina também, [caso existisse] poderia impor suas vontades sobre a humanidade.
Outros exemplos vão longe, e pode-se pensar nas empresas que agem pautadas no totalitarismo que usa da ameaça para manter ou afastar pessoas trabalhando ali; mas exemplos ainda mais presentes inclui o Estado; a Medicina, o Direito, etc. Pense aí e com certeza lembrará de muitos outros.

O que esses exemplos têm em comum é que a maioria deles funciona com o apoio histórico da aliança entre hierarquia e autoridade. Se hierarquiza para organizar um sistema e se aplica a autoridade para controlar e manter a ordem desejada. A pesar disso, não é adequado supor que um elemento não existe sem o outro, que hierarquia não existe sem autoridade. Pode haver hierarquia sem autoridade, como pode haver autoridade sem hierarquia (monarquia, oligarquia, etc).

Priorizar relacionamentos é um problema?

Por sua vez, a priorização de elementos em uma relação não precisa sequer passar pelos crivos da autoridade para serem pensados. Muitas prioridades surgem espontaneamente, a partir de conectividades que são mais intensas, mais consistentes, mais profundas. E isso não tem nada a ver com serem melhores ou piores. Quando se inicia uma relação entre duas pessoas essa relação é composta por dois universos desconhecidos entre si; duas subjetividades que podem ou não ter coisas em comum, que podem ou não possuir elementos que se comuniquem e que criem entre si pontes pelas quais fluirão as trocas e os compartilhamentos afetivos.

Essa dinâmica depende de vários fatores – desde aqueles subjetivos (por exemplo, condições emocionais, expectativas afetivas, ideologias, entre outras) até os objetivos (distância, atratividade afetiva/sexual, projetos materiais de vida, etc). Acontece que nem sempre temos condições de controlar quais desses fatores (nem como cada um deles) serão mais intensos entre as partes envolvidas na relação (ou nas relações); cada pessoa apresenta seu repertório subjetivo, e só conseguiremos acessá-los na medida em que nos permitirmos uma comunicação pessoal que se produza no contato e na vivência. Naturalmente cada uma dessas dimensões (subjetivas e objetivas) se intercruzarão e se conectarão. De acordo com essas conexões as prioridades são criadas, são formados pontos de afetividades que podem ser mais intensos que outros – e intenso não é sinônimo de melhor nem de mais importante. Apenas quer dizer que nesses pontos de intensidades também estão pontos de possibilidades que por vezes podem representar um maior investimentos da nossa parte. E está tudo bem nisso.

Pensar a não-monogamia é pensar essas questões, sem a necessidade Mono-Lógica de moralizar as escolhas a partir do que é bom e ruim, mas pensar a partir do que é possível de acontecer e o que não é. Indispensavelmente, destaco a importância de sabermos nossos limites. Somos realmente capazes de tratar como iguais todas as relações e todos os afetos? Será que precisamos fazer e exigir isso? Conseguimos mesmo esse malabarismo? A ideia de relações sem hierarquias e sem priorizações é uma possibilidade ou uma fantasia que nos protege de nós mesmes? Ou seria o caso de, ao tentarmos nos movimentar desse modo supostamente livre estarmos na verdade nos amarrando a regras implícitas, que nos desobrigam de sermos presentes, mas sem usarmos esse nome pois ele se aproxima da monogamia?

A Hierarquização e a Priorização em relações Não-Monogâmicas

Ao se falar de não-monogamia, uma das primeiras questões que surge no debate é sobre não hierarquizar afetos e não criar prioridades entre eles. Tanto que algumas pessoas preferem marcar nitidamente esse conceito utilizando nomeações como anarquia relacional. Considero o termo [talvez] seria adequado apenas se levado ao pé da letra, sendo anarquia a ausência de um poder pautado na autoridade. Logo, anarquia relacional, ou seja, a ausência de uma organização pautada na autoridade interna que uma relação exerce sobre a outra é fundamental para que se possa repensar a construção saudável dos afetos. Apesar disso, supor que que anarquia é sinônimo de ausência de hierarquia não soa muito coerente, e isso ainda pode criar um movimento de tentativas de anulação de qualquer hierarquia a qualquer custo.

Pode, sim, haver horizontalidade nas relações ao mesmo tempo em que exista algum tipo de hierarquia e priorização. A hierarquia não é o que produz os problemas nas relações; ao menos não no sentido dela prejudicar a construção e o sentir dos afetos. Considerando a hierarquia como modo de organização, o problema existe quando sem se conhecerem o bastante as pessoas percorrem um caminho não-monogâmico rejeitando maneiras que poderiam ser positivas; e que potencialmente acontecem naturalmente, por melhor que sejam as relações.

Muitas vezes as pessoas são traumatizadas em relações anteriores; sofreram as reais consequências de uma forte dependência emocional; experimentaram as dores de um relacionamento abusivo e ainda são abaladas pelo medo da substituição e do abandono. Todos esses traumas, medos e receios são reais e podem, sim, atingir qualquer pessoa em variados níveis e deixando diferentes marcas em suas subjetividades. A questão é como nos movimentamos para lidar com eles, caso desejemos isso.

Se esse movimento vai no sentido de compreender como somos afetades por essas emoções e experiências, potencialmente um caminho interessante seja não nos afastarmos dessas questões, mas tentarmos uma aproximação delas (no nosso tempo e respeitando os nossos limites). A não monogamia realista, aquela que não tenta criar subterfúgios de atenuação dos problemas, é um caminho reflexivo de autoconhecimento e de enfrentamento de nossos fantasmas internos.

Por outro lado, se a ideia é criar uma cobertura grossa que servirá como um tapete sob o qual jogamos nossas dores, então talvez caiba a ideia de uma não-monogamia atenuante isenta de responsabilidade e covarde, que reproduz lógicas de liberdades inconsistentes, com regras “invisíveis” e com normalizações perigosas. Digo isso porque está crescendo o discurso de que uma relação não-monogâmica deve respeitar, e até aceitar, as incoerências das pessoas, que todes erramos e que todes temos flutuações em nossas emoções e condutas. Nitidamente todes temos flutuações emocionais e de conduta, mas não significa que por isso devemos partir dessa premissa para construir os afetos desamarrados e ao vento, como se eles fossem de fatos soltos.

O maior medo da pessoa não-monogâmica apressada é ser confundida com uma pessoa monogâmica. Para evitar a confusão muitas vezes lançam mão de pequenas “regrinhas” para construírem sobre si a imagens de que são desconstruídas e que têm afetos artesanais e leves. Não-monogamia não é o inverso de monogamia, é, em vez disso, uma maneira de relacionamento que vai por caminhos [bem] diferentes; isso não significa que se rejeita toda e qualquer semelhança. E o ponto que deveria ser mais importante, na minha opinião, é o de que os afetos devem partir do pressuposto que estarão alinhados com os nossos limites afetivos. Não temos o dever de expandir nossos afetos para além do que conseguimos lidar. E está tudo bem!

Ser uma pessoa não-monogâmica não é sobre abrir-se para todos os afetos que surgirem. Em vez disso, é se permitir viver afetos reais, com sinceridade e transparência, sem que precisemos lançar mão de exclusividades e possessividades para que alguém permaneça conosco; nem nos aprisionarmos a outras relações por medo de sermos objetos afetivos descartados. Uma pessoa pode ser não-monogâmica e permanecer com apenas uma parceria ao longo de toda a sua vida; assim como ela pode ser não-monogâmica e nunca se relacionar com ninguém. Da mesma forma, alguém pode ser monogâmico e possuir muitas “parcerias” – os casos de traições (relações extraconjugais na monogamia) evidenciam isso.

O medo profundo de lidar com os próprios afetos leva as pessoas a criarem fantasias de desprendimento e de liberdade afetiva que não condizem com suas próprias realidades. Está ok se você consegue se relacionar de modo mais amplo, sem precisar do contato físico mais intenso, sem precisar segurar as mãos nas ruas e sem querer dar nomes aos seus modos de afeto. Isso é válido! Mas tome o cuidado de saber porque isso é dessa maneira.
(I) é dessa maneira porque você tem medo de ser confundida com uma pessoa não-monogâmica?
(II) é assim porque você não quer produzir um envolvimento emocional muito grande por medo de seus traumas passados, portanto prefere manter um distanciamento emocional?
(II) é porque realmente isso não faz sentido na sua vida e não te faz bem dentro do seu ideal de relacionamento?

Devemos pensar nas nossas ações. Do contrários sairemos criando contos de fadas não-monogâmicos nos quais tudo é resolvido a partir do descompromisso. “Não precisa cobrar a presença”; “Não pode estar muito junto se não parecerão namorades”; “não pode querer morar junto com alguém, porque assim estará priorizando um afeto”; “tem que aceitar as imperfeições, do contrário estaremos forçando que as pessoas se adequem a nós”. Todas essas frases são muito faladas por pessoas não-monogâmicas que dizem que suas relações não são baseadas em regras nem em contratos. Hipocrisia? Apois!

Ninguém é obrigade a mudar para nos satisfazer/agradar, mas também podemos nos reservar o direito de querer ficar ou de querer sair da relação; e isso não é ser menos não-monogâmique. Uma das armadilhas de pessoas que se apressam demais em mastigar teoria e que não se percebem na vivência é que acham que deixar de ser super abertas a tudo que aparecer fará delas menos não-monogâmicas. Não é real! Cada pessoa deve se respeitar e respeitar seus limites. O que serve para uma, não necessariamente serve para a outra.

Por essa razão, e finalizando esse texto, mas não esse assunto, hierarquizar relações é apenas uma maneira de organizar nossos afetos dentro das nossas possibilidades reais e sinceras; as prioridades surgirão conforme os afetos são construídos, não precisamos forçar esse processo. Se a relação se construir naturalmente sem hierarquias e sem prioridades, maravilha, a pessoa descobriu qual é o seu modo de funcionamento, e está ótimo! Se houver prioridades, pensemos sobre como elas surgiram, se são espontâneas, deixemos fluir, observemos como se desenvolvem, quais seus impactos e, principalmente, como elas afetam nossas relações. A partir daí pensamos o que fazer delas, se precisar ser feito algo.

Só não deveríamos usar do discurso de não-hierarquia e não-prioridades para nos autorizarmos a tratar afetos todos somente a partir da nossa ótica, sem considerar o que eles demandam. Precisamos avaliar as demandas. Está tudo bem no permitirmos adequações às demandas alheias, desde que isso seja também positivo para nós. Mas não podemos achar que “liberdade afetiva” e a “artesania de afetos” é costurarmos somente de acordo com nossas limitadas linhas e agulhas. Não-monogamia é um caminho de enfrentamentos e de desafios. Não precisa ser doloroso nem recheado de frustrações, mas não quer dizer que seja sempre fácil e sem angústias.

Não precisamos ser pessoas que usam de fraquezas, fragilidades e, porque não, de incapacidades afetivas para pregar relações livres e desprendida de presença, atenção, cuidado e ausência de prioridades. Ao se prender demais na necessidade de definições do que é a não-monogamia podemos cair na grande armadilha de que existe um modelo específico, lapidado e detalhado do que é viver esse formato de relacionamento.

* * *

Finalizando com uma reflexão sobre Responsabilidade Afetiva

Antes de qualquer palavra: responsabilidade afetiva não está restrita à não-monogamia, e não pretendo dizer que em outros formatos de relacionamentos ela não exista. É bom deixar falado logo de início.

Dito isso, queria pontuar aqui que, para mim, responsabilidade afetiva é uma maneira de respeito e de [auto]cuidado. Ela não diz respeito necessariamente à cumplicidade, à reciprocidade ou aceitar tudo que a relação propõe. Em vez disso, considero que responsabilidade afetiva é sobre ter conhecimento dos nossos limites; é ter a noção do quanto nossas ações implicam nas nossas vidas e nas vidas de quem afetamos.

Devemos considerar que todas as pessoas estão sujeitas a dores e a sofrimentos pelo simples fato de existirem nesse mundo; e por mais que desejemos, jamais conseguiremos impedir que as pessoas sofram certas circunstâncias da vida. Ter responsabilidade afetiva é não atuar como um motivo a mais de sofrimento na vida das pessoas quando podemos evitá-los. É ter maturidade de agir sinceramente; nem tudo é fácil de ser dito, mas pode ser necessário.

Quando respeitamos alguém afetivamente, estamos dizendo que compreendemos o quanto os nossos afetos podem interferir na vida alheia, produzindo mais ou menos sofrimentos. É responsável buscar sempre a redução da possibilidade de se causar dores e sofrimento nas pessoas.

Precisamos saber que não devemos agir com afetos como se fossem apenas brinquedos e divertimento. Estar em contato com outro corpo é participar de sua vivência; e precisamos fazer isso com o máximo de respeito possível.

Digo isso porque para muitas pessoas a não-monogamia se trata de “sair por aí pegando todo mundo”; e nessa lógica “é mais não-monogâmica quem se relaciona com mais pessoas”. Ainda, não é raro ouvir que na não-monogamia não há um envolvimento profundo – que não se tem comprometimento nem se cria conexões afetivas reais, pois “é apenas um lance”.

Mas é bem o contrário. Na não-monogamia se procura entender o outro corpo e suas subjetividades como um universo sensível, o qual tem suas vivências e suas particularidades. E a responsabilidade afetiva deve estar sempre presente independentemente da duração. Não dá para se dizer em não-monogamia e não agir com essa responsabilidade; o nome disso seria mais perto de oportunismo.

* * *

A não-monogamia na qual eu acredito leva em conta que vivemos o confronto do mundo fantástico (da fantasia) e o prático. O que se produz quando o mundo subjetivo se choca com o objetivo é a nossa percepção daquilo que podemos ser e sentir. Somos esse ser em choque, nos fragmentamos, nos reconstruímos, vemos peças que se vão e ganhamos novas partículas. Somos possibilidades.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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