Relacionamentos costumam figurar no imaginário coletivo como um local subjetivo no qual temos alguma possibilidade de acolhimento ou, no mínimo, um espaço imaginário para nos protegermos das escuras noites de carência emocional em que enxergamos pouco o que está ao nosso redor. E não raramente procuramos por relações que nos proporcionem mais segurança em comparação a outras.

Entre outros muitos fatores, a construção do ideal de relacionamento – ou que seja da valorização ou da própria simbologia do que é um relacionamento – passa também pelas construções socioculturais. O que é um relacionamento pode variar se falamos de pessoas religiosas, de pessoas ateis, de pessoas do ocidente geopolítico ou do oriente. Culturas sustentam, cada uma a partir de seus mecanismos internos, formatos e possibilidades relacionais.

Apesar disso, o que possivelmente acontece é que, independentemente do formato de relacionamento, enquanto humanos estamos em busca de um local que ofereça segurança emocional (sobretudo subjetivo, mas que também pode se materializar no concreto-objetivo). Buscamos maneiras de reduzir o sofrimento produzidos pelo medo de ficarmos sós; é angustiante para o ser humano estar em desamparo. Logo, buscamos por meios de aumentar a segurança e a esperança de que teremos ao menos um conforto psicológico ao nos relacionarmos com alguém. Buscamos momentos de conforto; ou, na melhor das hipóteses, buscamos vivências com menos desconfortos e sofrimentos possíveis.

Nesse movimento cultural de buscar por segurança e/ou por uma atenuação do sofrimento e das angústias, o ato de se relacionar foi ganhando hierarquias e classificações. A estrutura social ocidentalizada se desenvolveu a partir da construção de um formato de relacionar-se. Como parte da demanda capitalista, a produção de núcleos afetivos baseados na hierarquização foram ganhando cada vez mais espaço; isso ainda mais com o forte e indispensável apoio da crença religiosa, sobretudo a cristã – que sustenta que relacionamento (nesse contexto, o afetivo-sexual) deva acontecer dentro de um escopo, em que tudo que foge disso é considerado artificial – ou antinatural. Assim, hoje não se fala apenas em relacionamento, isso não parece ser o bastante. É preciso que seja umrelacionamento sério”.

Historicamente, a construção do ideal de relacionamento esteve intimamente ligada a construção de família. Construir uma família era sinônimo de tomar para si a responsabilidade de construir algo sério. O formato monogâmico aparece, então, como aquele que serviria de suporte ao ideal de funcionamento de um sistema que é também organizado a parti do gênero (o Patriarcado), da classe (o Capitalismos) e da religião (no Brasil, o Cristianismo).

[A família monogâmica] baseia-se no domínio do homem com a finalidade expressa de procriar filhos cuja paternidade fosse indiscutível e essa paternidade é exigida porque os filhos deverão tomar posse dos bens paternos, na qualidade de herdeiros diretos. A família monogâmica se diferencia do casamento pré-monogâmico por uma solidez maior dos laços conjugais que já não podem ser rompidos por vontade de qualquer das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-los e repudiar sua mulher. Ao homem, igualmente, é concedido o direito à infidelidade conjugal, sancionado ao menos pelo costume […], e esse direito se exerce cada vez mais amplamente, à medida que se processa o desenvolvimento social. Quando a mulher, por acaso, recorda as antigas práticas sexuais e tenta renová-las, é punida mais rigorosamente do que nunca. [1]

Para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, a mulher é entregue incondicionalmente ao poder do homem. Mesmo que ele a mate, não faz mais que exercer um direito seu. [2]

Com isso, uma pergunta emergente dessa classificação é: o que significa, na prática, um relacionamento ser chamado de sério? Se precisamos dizer que um relacionamento é sério é porque os outros talvez [ou necessariamente?] não o sejam? Seja qual for a resposta, suspeito que essas atribuições de sério e não-sério falam muito do modo como tratamos os nossos afetos.

Se pensarmos de maneira mais descolonizada, sem precisar eleger O relacionamento que será O ideal e sem ter a necessidade de procurar por essa classificação, talvez notaremos que todos os relacionamentos podem ser sérios. Lembraremos, ainda, que a seriedade não está no tipo de acordo firmado, muito menos no nome que o relacionamento recebe, caso o tenha, mas na maneira como tratamos e compartilhamos os afetos. Que afeto é esse que temos em nós [ou que recebemos de outrem] que é tão frágil ao ponto de construírem relações “não-sérias”? Seria o caso de vivermos relações superficiais, sem uma entrega de qualidade e sem sinceridade?

É nesse momento que se mostra pertinente considerar o pensamento não-monogâmico. Embora na monogamia possam haver trocas sinceras de afetos e que também nela são possíveis as vivências de cuidado (ao menos em alguma medida), as dinâmicas monogâmicas são também restritivas. Se a relação é monogâmica, ela se baseia no comportamento de controle do corpo alheio; e isso, uma hora ou outra, resultará em uma necessidade hierárquica – trazendo a ideia de “relacionamento sério VS não-sério“. Por outro lado, na não-monogamia, várias relações podem acontecer em diferentes intensidades, com conexões que variam entre si e, mesmo assim, podem ser sérias – não existindo a ideia de que uma relação merece o cuidado afetivo e efetivo e a(s) outra(s) não.

Na não-monogamia podem, sim, haver relações que são mais conectadas entre si, ao passo que outras sejam com menos conexões simbólicas (ou sejam, resumidamente, pontos em comum ou pontos de troca e de interesse entre as partes) entre as pessoas envolvidas, mas isso não significa que o número de conexões simbólicas funciona como marcador classificatório das relações. Todas podem ser sérias. Sexo casual, beijos em baladas, contatos virtuais e outras interações, mesmo que não sejam nomeadas de relacionamentos afetivo-sexuais pode ser conexões sérias.

Quando precisamos de marcadores que digam o que é UM relacionamento sério, passamos a buscar obstinadamente por esses marcadores. Seja na forma de uma aliança no dedo, de um pacto de “felizes para sempre”, de um rótulo social explícito e piscante como autoafirmações, seja na forma de uma promessa de exclusividade ou de algo do tipo, esses marcadores não garantem seriedade alguma à relação, não são sequer garantia de que haverá alegria e leveza ali; provavelmente eles apenas supõem uma anestesia de nossas inseguranças e de nossas profundas carências. Ao marcar muito a “embalagem” damos pouco valor à vivência e à potência do conteúdo.

Eu sempre observo muito o comportamento humano nos aplicativos de relacionamentos. E de vez em quando apago um termo da minha bio: quando vejo que o perfil está meio “parado” (com poucas curtidas) eu retiro o termo “Em relacionamento Não-monogâmico”. Em menos de um dia as curtidas voltam a aparecer; quando coloco de volta o termo elas param. Pessoas acham que a gente não-monogâmica não consegue ter relacionamentos de confiança? Ou a questão é saber se realmente conseguem lidar com relacionamentos baseados na escolha por vontade, e não por contratos de posse? Não-mono é responsabilidade também.

Por isso, penso que um caminho possível para exercitarmos a nossa percepção dos afetos é a ação de passarmos a olhar mais para a maneira como nomeamos o que sentimos. Como, por que e para que nomeamos o que sentimos? Damos nomes porque sempre fizeram isso ou tal ação é resultado de uma reflexão pessoal e social?

As nossas relações tendem a se estruturar a partir do social não-dito. O não-dito em países ocidentalizados é, por si, monogâmico e rotulador a partir de hierarquias; repensar nossas relações requer reflexão e incômodos. Acima de tudo, repensar nossas relações, e também nossos afetos, requer que saibamos que afetos são esses que possuímos e que recebemos e que relações desejamos (e/ou que podemos) construir.

* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

[ . . . ]

Use o espaço dos comentários para compartilhar também a sua opinião por aqui! Você já segue o Blog Devaneios Filosóficos? Aproveite e faça essa boa ação, siga o Blog e receba uma notificação sempre que um novo texto for publicado. Conheça o meu canal no YouTube e o sigam-me no Instagram. #VocêJáParouParaPensar

REFERÊNCIAS CITADAS NO TEXTO

[1] – Friedrich Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Lafonte, p. 75–8. São Paulo, 2020 [1891] – pg. 85.

[2] – Friedrich Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Lafonte, p. 75–8. São Paulo, 2020 [1891] – pg. 80.