Embora “Afeto” seja uma palavra muito utilizada e que está ganhando cada vez mais espaço nos meios que falam sobre relacionamentos e autocuidado, ela nem sempre é compreendida em sua totalidade. Poderíamos pensar em vários sentidos para essa palavra; poderíamos, por exemplo, entendê-la como um sentimento de afeição, ou seja, aquilo que nos leva a “pender” para algo ou alguém. Mas também podemos compreender o “afeto” usando esse sentido anterior mas acrescentando o fato de que essa afeição afeta as relações. Ou seja, entender afeto como um sentimento que nos inclina em direção a outra pessoa/objeto e que afeta a relação em que ele atua.

Pensar nisso é muito importante para valorizarmos os nossos sentimentos, mas também pode nos proteger de certas armadilhas socialmente instaladas nas nossas construções afetivas. Por exemplo, quando pensamos em “Rede Afetiva” não é raro supor que estamos falando de uma rede de pessoas que nos acolhem, nos inspiram e de uma rede nos dá algum tipo de suporte, como o emocional. E em certa medida isso não está equivocado. Todavia, a armadilha é justamente achar que toda rede afetiva funciona assim. Isso porque dentro da construção da ideia de “afetos” a família costuma ser colocada como o núcleo no qual o sujeito tem sua maior e mais importante rede afetiva; uma rede que sempre estará com ele e que não medirá esforços para que de fato possa, como numa rede, acolhê-lo. Mas isso não é necessariamente uma realidade.

Dito isso, destaco que:

(I) Rede Afetiva pode ser qualquer rede que contenha afetos;

(II) afetos nem sempre serão positivos, ou seja, nem sempre os afetos transmitem cuidado, prazer e acolhimento – alguns podem ser limitadores e inclusive tóxicos, logo, prejudiciais;

(III) é saudável saber que tipo de afeto estamos recebendo em nossas relações;

(IV) é muito importante tentarmos entender, como esses afetos nos afetam;

(V) não preciso mencionar que também é importante saber como distribuímos nossos afetos, não é? Mas fica a dica.

Por mais que agora possa parecer muito óbvio/nítido, é importante sabermos que nem todo afeto é positivo, porque, como mencionei, alguns deles podem ser tóxicos. A monológica afetiva, aquela que pressupõe exclusividade, é a mesma que fortalece socialmente a ideia de que o núcleo familiar está acima das nossas escolhas, logo ele é o fundamento de cada pessoa. Mas famílias (sobretudo as mais conservadoras) podem ser grandes produtoras de neuroses e de adoecimentos psicológicos.

Além da família, pessoas com as quais nos relacionamos – também na monológica, agora monogâmica – podem ocupar esse lugar de exclusividade, produzindo manipulações, opressões e adoecimentos. E quando um sistema é dito “ideal”, ou quando um sistema é construído para não ser questionado, corremos o risco de buscar maneiras infinitas de enquadramento aos seus discursos, inclusive considerando que o problema não está no afeto que recebemos, mas na nossa incapacidade de aceitá-los bem. É uma armadilha!

Nem todas as pessoas que estão do nosso lado querendo nos ajudar nos fazem bem. Aceitar isso pode ser doloroso, principalmente quando somos ensinades a amar incondicionalmente (mesmo que esse “amor incondicional” não seja possível na prática). Além disso, também é importante entendermos que não é porque algo é bom que ele necessariamente nos faz bem. É bom como? É bom para quem? Às vezes uma rede afetiva, construída a partir de determinada orientação religiosa, política ou cultural tenta passar para nós os afetos tais como lhe foi transmitida originalmente, mas esse afeto nem sempre nos ajuda a crescer e viver ou sequer nos faz bem. Pode, sim, haver uma boa intenção e uma tentativa de cuidado, mas não significa que em nós essa ação terá um efeito positivo. Entre outras características, é preciso maturidade para perceber que também podemos decidir por não receber certos afetos e, com isso, reduzirmos os efeitos desses afetos em nossa saúde mental. Isso não é ser egoísta, é autocuidado.

Por sua vez, a “Rede de Apoio” diz respeito a um conjunto de afetos que, como sugere o nome, servem de apoio para nós. Esse apoio pode ser emocional, financeiro, de segurança física, de saúde, ou de qualquer outra modalidade. E essa rede é de fundamental importância em inúmeros casos. Como mencionei num texto anterior [“Não-Monogamia e o Medo do Abandono”], somos animais grupais, estamos envolvides com outras pessoas, e é importante, sempre que possível, possuir uma rede de apoio que nos acolha. Assim como é importante que saibamos ser parte de uma rede de apoio para outras pessoas. Até aqui, esses conceitos são perfeitamente aplicáveis tanto à Monogamia quanto à Não-monogamia. A grande questão é como cada perspectiva (Mono e Não-Mono) nos permite trabalhar essas redes.

Somos pessoas imersas em ações cotidianas que nos induzem a construir castelos nos quais poucas pessoas podem entrar; esse é o castelo do “amor verdadeiro”. No entanto, mesmo assim, ainda somos capazes de amar de forma muito intensa muitas pessoas simultaneamente (parentes muito próximos, amizades muito muito próximas, etc). Mas ao viver num grupo social MonoLógico aprendemos a destinar um tipo de amor para cada “tipo” de pessoa, isso a depender do lugar que ocupam na hierarquia – por exemplo, a familiar. Quando esse amor ocorre em pessoas sem ligações parentais e que juntamente são acompanhados de atratividade e interesse íntimos, só chamamos de “amor” quando firmamos um compromisso; ou, sentimos o desejo de firmar um compromisso tão rápido quanto maior for esse sentimento de atratividade física. Assim, a monogamia sustenta a ideia de que “se amamos precisamos ter conosco, necessariamente”, e às vezes para sempre – “até que a morte nos separe”.

Não bastasse esse trajeto emocional de amar e desejar (ou de desejar por amar), a monológica afetiva pressupõe que sejamos capazes de suprir os desejos alheios, ou, na melhor das hipóteses, ela nos seduz a acreditar que uma pessoa pode ser capaz de atender a todas as nossas demandas afetivas. E o que torna essa monológica bem-sucedida é que por vezes acreditamos que estamos satisfeites com o que recebemos, ou que precisamos de motivos muito disruptivos para percebermos que não cabemos mais em determinada relação; tanto é que a maioria das relações precisam de um motivo muito violento para ser considerada passível de um rompimento: raramente se terminam relações de modo pacífico, mantendo os laços afetivos posteriormente – em vez disso, na maioria dos casos precisa-se cultivar o ódio, para que ele sirva de um encerrador de ciclo. Quando falamos de família, caso seja uma rede afetiva tóxica, o rompimento é dificultado de acordo com a toxicidade: quanto mais tóxica, mais tendemos a nos prender.

O que deve emergir de tudo isso que está sendo dito é que se faz muito necessário compreender e vivenciar o fato de que não podemos completar uma pessoa com nossas características, bem como não existe uma pessoa que possa nos completar sozinha. Para que essa completude a partir de um único sujeito aconteça precisamos ser condicionados por muitos anos, do contrário essa ideia não se sustenta. Para além de do pensamento de completar, a ideia que para mim faz sentido é a de complementar. E isso é um aspecto muito rico na vivência não-monogâmica. Somos complementos nas vidas das pessoas, e elas nas nossas. Quando aceitamos isso aceitamos também que somos frágeis, que tem vezes que precisamos de ajuda, que não somos autossuficientes e que não precisamos dar conta de todos os afetos que alguém possa precisar.

Da mesma forma, na não-monogamia temos a oportunidade de entender que se alguém não consegue nos dar todos os afetos dos quais sentimos falta, essa pessoa não é descartável, tampouco ela está de má-vontade. Temos limites, não damos conta de tudo. Por que, então, as demais pessoas precisam dar conta?

Assim, quando admitirmos que podemos nos conectar com diferentes pessoas, de diferentes maneiras e em diferentes intensidades teremos entendido melhor o que é uma rede de apoio; também é a partir desse entendimento que teremos ferramentas para reconhecer nossas redes afetivas e vivenciá-las de modo mais saudável (ou com menos sofrimento). Eu acredito na Não-Monogamia que descoloniza os afetos, que cria possibilidades.

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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa desta publicação foi obtida aqui.