Assim acontece com quem sente um profunda culpa dentro de si:
forja-se todo um discurso feito para durar e resistir aos ventos frios, à chuva torrencial e ao sol escaldante;
em sua forma de pensar e reger seus sentimentos: instabilidade e esfacelamentos;
em seu discurso: amor, respeito, cuidado, acolhimento da dor;
na prática do viver: descaso vestido de <insira aqui o que você quiser>.

Não é o mesmo que dizer que para tais pessoas adeptas ao descarte essa prática se dá na superfície da consciência ou no desejo ativo de assim proceder;
talvez seja;
talvez não;
deixo essa resposta com você.

Mas também não me parece uma atitude sempre e totalmente desprovida de um certo “querer”;
o ponto é o que fazer para assumir esse querer sem que ele seja percebido em sua crueza e em sua abjeção tão suja?;
uma saída parece ser produzir, ou não impedir que sejam produzidas, culpas e culpados para seus desejos não elaborados;
uma vez essa produção feita, é preciso achar agora uma maneira inseri-la em suas práticas sem que sejam percebidas em seu mal cheiro, sem que seu rastro de sangue seja notado e sem que o próprio sujeito descartante se sinta dessa forma, pego à espreita.

Ora, ora, porque não lançar mão da amizade?
É tão importante manter laços de amizades abertamente sinceros e leais, dizem;
é tão valorizado socialmente quem se sente na maturidade de não precisar descartar pessoas só porque a vontade de transar com elas acabou;
é tão mais adulto dizer que “a gente não precisa se afastar, podemos manter a nossa amizade!”

O engodo, para quem está ao menos um pouco treinade é percebido no primeiro ato;
a pergunta interna que vem na mente logo que nos dizem “vamos manter a nossa amizade” é uma:
Que amizade?

Essa relação baseada numa unidirecionalidade; esse relacionar-se quase que construído sobre cascas de ovos; esse diálogo que não pode ser sinceramente vulnerável (digo, que só uma parte pode ser vulnerável, a outra jamais, que beba do cale-se narcísico); essa ideia de relação detém em um sujeito a exigência de uma disponibilidade (se uma parte quer, se encontram; se não deseja falar, que não se falem; se não está bem, que se vire, mas acolha essa demanda, de preferência em silêncio, falar muito gera o pânico);
isso tudo é o que para você? Seria isso amizade? Amizade?
Guarde-a para você!

Não é amizade se te trata como descarte!
Quando depois de uma série por vezes progressivas de afastamentos desavisados;
quando depois de friezas perceptíveis e disfarçadas;
quando não resta nem mesmo a segurança de um poder abraçar intimamente;
quando a conversa se torna tão seca e tão desértica quanto jamais foi antes;
é nesse momento que se lança mão de um “Vamos ser amigues?”.

São discursos desonestos,
feitos para durar para sempre,
afinal, a pessoa não quis acabar com tudo, quis amizade;
afinal, a pessoa não está te descartando, quer ser acolhedora num outro formato relacional;
afinal, no final, nunca houve um começo, só vendaval.

Existem casos e casos,
pessoas e pessoas,
mas sempre a parte privilegiada em algum aspecto é a que sente mais conforto nesse ato;
seria isso um acaso ou um fato?

É como quando se fala em suicídio…
existe uma “preocupação” “imensa” e “profunda” com quem tem essas ideações;
criam toda uma narrativa cósmica,
elencam todos os motivos do mundo pelo qual nossa ideação suicida é ou doente e/ou egoísta;
dizem que somos egoístas por desejarmos um rompimento de ciclos com as pessoas,
afinal, “para que você cria vínculos se sabe que vai rompê-los?”, questionam essas vozes recalcadas.
ao menos essa me parece a indagação mais vazia que podem nos fazer…
numa chantagem esvaziada ainda dizem que “se você fizer isso deixará muito sofrimento”;

Ora, o vazio desse discurso – que, novamente, é feito para durar – está em quem o fala;
as pessoas que te acusam de irresponsável por construir laços que podem ser desfeitos em uma ação suicida são as mesmas que de um dia pro outro pararão de falar com você e nunca mais olharão na sua cara;
aí fica a pergunta: essas pessoas acreditam mesmo que a única maneira de se suicidar é rompendo com a própria vida, biologicamente falando?

Digo que não!
Vários suicídios acontecem diariamente nas relações!
Diariamente pessoas decidem que morrerão para uma determinada relação e simplesmente montam o cadafalso.
São pessoas que exigem demais a presença alheia em suas vivências, mas que pouco ou nada conseguem sustentar seu próprio estar;
seja por não querer, seja por não conseguir querer, mas essas pessoas não ficam, embora em seus momentos de carência exijam permanência.

Quiçá isso revele aquela culpa trazida lá acima:
por não conseguir permanecer na vida, seja simbólica ou biológica,
a pessoa incapaz de manter vínculos vê em quem assume isso como sendo uma afronta;
uma afronta criada na própria mente que se sente afrontada.

Ver na outra pessoa uma atitude que nos é cara e desejosa em algum grau, mas a qual somos absurdamente incompetentes e sem qualquer coragem de realizar, deve revirar os piores dos sentimentos;
ver que ali, bem à nossa frente, alguém diz coisas que geram profunda identificação com o nosso âmago, mas que temos certeza de que, ao contrário daquela pessoa, não temos sequer “loucura” de falar disso em voz alta, deve ser algo realmente atordoador; visceral, de tão doloroso; deve ser um sufocamento; um grito entalado na garganta incapaz de ser liberado;
isso tudo deve produzir uma culpa imensurável no sujeito ressentido.

Não é uma culpa comum, não é uma coisa passageira, ela dura duramente;
como estratégia de lidar com essa culpa, é preciso de um anestésico também durável, resistente.

Paralelamente, tem-se que, por ser tão difícil assumir para si essa identificação, procura-se evitar objetos identificáveis;
“que cubram-se os espelhos, se possível, que os quebremos e joguemos seus pedaços fora!”
evita-se sistematicamente ambientes que gerem esse espelhamento;
descarta-se qualquer possibilidade engatilhadora;
pode-se até resistir nessa tentativa de exclusão, isso só para “ver no que dá”,
mas no fim: descarte.

Como pega muito mal, tanto internamente para quem descarta, quanto para sua imagem social, busca-se discursos que camuflem essa ação e as protejam de predadores que vivem em sua própria cabeça.
Pega mal para quem pratica porque, suspeito eu, ao descartar alguém por se parecer tanto com você, no fundo de sua estrutura, o que você está fazendo é descartar a si mesme a partir de outre: ao jogar no lixo um ser humano que se parece conosco ao ponto de espelhar nossa imagem, jogamos fora uma parcela de nós junto. Quanto de nós estamos descartando? Bom, isso depende do tamanho e da intensidade dessa semelhança que não queremos ver de nós espelhada na/s outra/s pessoa/s;
isso pode se estender até o ponto de não discernirmos se existimos de verdade.

Assim, promete-se um nova maneira de se coabitar;
na miséria escassez afetiva de propôr algo transparente e sincero, vamos de “amizade”?
inicialmente, cria-se barreiras de vidro, com isolamento acústico;
porém, aos poucos essa vidraça é ofuscada até ser substituída por uma parede de alvenaria;
o propósito é criar uma ideia de “não estou descartando, apenas o curso natural foi esse de afastamento”;
um curso natural bastante produzido para ser assim.

Quando se tem algo mais duradouro, que estará ali conosco, à nossa vista, precisaremos conviver com aquilo;
como não querem isso, buscam apenas uma curtição limitada e com hora para acabar;
que seja assim, compram e utilizam descartáveis;
não que exista de fato afetos que são descartáveis e outros que são duráveis duráveis, mas para quem não consegue viver o valor das relações para além do seu narcisismo, tudo é lido imediatamente como descartável;
quando não serve mais, não importa do que é feito aquele material: lança-o fora.

É hipócrita usar discursos “duráveis” quando a intenção é colocar um fim definitivo, como quando lançam mão da “amizade para sempre”;
“estarei aqui quando você precisar conversar”;
“pode contar comigo”;
“não quero me afastar de você”.

São promessas hipócritas, pois, nem a própria pessoa se suporta, nem ela conta consigo, nem ela se abraça.

Não deveríamos prometer aquilo que já sabemos que não poderemos (e/ou não queremos) cumprir.

Mas, né, falar isso é se assumir incapaz; é um poço sem fim esse medo tão profundo de falhar que essa sociedade adoecida coloca na nossa cabeça.

E, tentando não falhar em nenhum dia, falhamos diariamente.

Por isso, inventam e utilizam discursos duráveis para lidar com afetos que entendem como descartáveis.

* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem usada para compor a capa deste texto foi obtida aqui.