Hoje eu vi a dança da fumaça…
ali na varanda,
numa manhã de uma vida corida,
numa manhã de fazer vários planejamentos;
no intervalo entre uma demanda e outra,
uma tragada no cigarro montado no dia anterior,
ele acabou,
deixei seu resto no cinzeiro de latão;
e nos feixes de luz,
à meia sombra,
a fumaça subia,
ela dançava,
girava em espirais,
se {des}fazia no ar…
no cenário, a jiboia verde limão brotava,
a alocásias abertas,
algumas folhas mortas,
a toalha balançando no varal,
e a fumaça dançando…
De alguma maneira a fumaça me remetia à vida,
à minha vida {?},
ao movimento irregular que se regulava no ar;
lembrava a vida em sua {im}perfeição,
em suas tortuosidades que se formavam,
e suas vivências que se dissipavam lentamente;
quisera eu um dia entender os porquês inexplicáveis de existir,
quisera eu alguma vez compreender a incompreensível dança dos corpos,
estes que chegam num vento, e se dissipam logo ali,
logo ali onde não conhecemos mais;
enterrem meu coração na curva do rio,
no lugar onde as correntezas levam os desejos quebrados,
os corpos subjugados,
as expressões marginais,
corpos sujos,
corpos animais,
seres banais…
de tanto banalizarem meu olhar,
de tanto se aproveitarem do meu ser e estar,
aprendi a dançar,
aprendi a dançar como uma fumaça,
ela, que também veio das chamas,
do ardor,
da ideia de amor,
nem sempre é só dor,
ela apenas é,
eu apenas sou;
onde derramamnos nossas emoções?
onde creditamos nossas sensações?
que fazemos nós das nossas {c}a{n}ções?
qual a altura do teto que abriga o nosso afeto?
quem topa mirar no espelho e não somente ver a si no reflexo?
narcisismo!
sonho incerto!
aprendi a observar antes de falar,
aprendi a esperar para entender,
mas talvez tenho observado e esperado tanto que tenho deixado de ser…
qual o tamanho do telhado que cobre o desejo?
esperamos tanto pela exclusividade do amor e do corpo,
desejamos tanto o espaço de destaque,
ansiamos tanto pelo controle,
que deixamos de lado nossa animalidade,
deixamos de desejar a fluidez para imitar o concreto da cidade:
cercados,
telas,
grades,
câmeras,
inspeções,
angústias,
frustrações…
isso não leva a outro lugar que não o adoecimento generalizado!
E a fumaça seguia dançando,
se movimentava nas curvas,
desenhava o caminho que se formava ao passo que se [des]fazia;
essa é sua dança: se mostra enquato se desfaz;
sonhei com o dia em que as cores e os sabores seriam aconhegos,
chamegos e sorrisos que formavam as nuvens de repouso,
abraços e beijos que diriam sobre o renovo,
“mas os tigres vêm pela noite,
com vozes suaves como trovões”
e {des}fazem…
dançando como uma fumaça,
mas interrompidas pelo sopro violento da depressão,
a baixa,
o silêncio,
a {in}compreensão:
mas não me toque nessas horas,
deixe-me dançar como ela…
como custa olharem para mentes {a}típicas e perceber que
nem tudo que gira gira no mesmo sentido,
que nem tudo que parece funcional para uma mente para a outra é ideal,
esquecem que a cor do {cor}po é uma impressão material que na imaterialidade produz o ser {des}humanizado {?},
mas também cansei de {ter de} pedir sempre pela escuta;
cansei {de ter} sempre {de} esperar o caos alheio passar para eu poder ser;
lembro-me bem daquele dia em que a fumaça dançava em mim,
que me invadia as hemácias,
que formava a escolha mais minha,
o que surgiu dali foi um conjunto de outras fumaças que dançam a dança do {des}fazimento;
ele não é mais ele,
o desejo não é mais igual,
a energia não flui mais da mesma maneira,
as máscaras não são mais obrigatórias,
o fingimento ficou só na oratória…
o choro custa aparecer para qualquer pessoa,
se represa por falta de rio que o suporte sem querer desviá-lo…
a fumaça seguia dançando,
se movimentava nas curvas,
desenhava o caminha que se formava ao passo que se [des]fazia;
essa é sua dança: se mostrar enquato se desfaz;
o que posso oferecer senão aquilo que eu tenho como ser?
se o que tenho não é suficiente,
também não é saudável querer transformar nem a minha nem a sua mente;
o que existe, se {r}esiste, é o que pode ser,
nesse momento, ou em outro, somos o que podemos,
não cabe dar o que não temos…
na varanda, entre uma demanda e outra,
ela olhava na fumaça, na jiboia, na gota da torneira, no vento sobre as árvores,
e se perguntava: por quê?
talvez se perguntar {ainda} seja a prova mais complexa de que algo ainda pode ser num mundo que clama pelo seu fim;
mas o cansaço chega como fardo,
se Sísifo carragava uma pedra,
me pergunto o que carrego,
e nem preciso mais me questionar o motivo,
mas carrego a cor,
o gênero,
o funcionamento de ser {inadequada}mente,
a maldição do pensamento que não descansa,
um corpo {ina}ceitável;
“Já que sou, o jeito é ser”
“quem é limpa, limpe-se mais ainda,
quem é suja, suje-se mais ainda”
que seja assim,
que suja assim,
que eu seja animal,
que seja a aberração espetacular,
seja eu a suja que surge para combater a pureza,
a abominação que não se pretende admiração,
que escreve torto por linhas retas,
quem desalinha o projeto de amor branco e embranquecido,
que {trans}torna a si ao desviar do que se espera de corpas adestradas;
sinto-muito, mas não posso ficar!
não me prenderam por muito tempo na gaiola do amor,
do afeto que exclusiviza a fluidez,
no corpo que pertence a uma única história,
no afeto que se cobre com um teto,
não me prenderam por muito tempo, e não tornarei para lá;
“por escolha própria escolheu a solidão”,
Não pergunte sobre mim,
não pergunte como estou {se não quiser saber de mim},
não queira saber do meu dia {se isso for só uma fantasia}.
Não me force a mentir outra vez {apenas para dizer a sua verdade}.
Não me abrace {se a ideia for me prender},
não me beije {se o propósito for o cárcere},
não me aperte {se não for para nos aquecermos juntes},
não sussurre ao meu ouvido {pedindo para eu me esconder de mim}.
Não me ame {se também eu não puder me amar}.
Em vez disso me corte:
corte meus braços,
separe minhas pernas,
arranque as minhas mãos,
divida a minha língua,
remova os meus olhos.
Me enterre fora desse lugar.
Espalhe cada parte pela cidade morta,
não deixe nada atrás da porta,
leve-me para longe,
onde o vento foi e nunca mais voltou.
Me jogue outra vez fora, esqueça onde você pisou.
Mas não olvides o coração;
este não leve para outro lugar que não seja o rio das lágrimas,
no recanto da solidão.
Enterrem meu coração ali, na curva do rio,
onde param os entulhos e destroços trazidos pela força das águas,
num lugar cheio de tudo,
mas de valores, vazio;
Enterre-o ali,
onde o indesejado repousa,
onde entrar ninguém ousa.
E que seu grito ninguém ouça.
a fumaça segue sua dança,
{des}pretenciosamente, numa graça gloriosa,
ela dança anunciando que não deveríamos nos preocupar tanto,
pois única e real promessa é de que a vida passa,
que ela escorre pelas mãos,
atravessa as brechas entre as folhas,
escapa da nossa noção de verdade,
desafia a liberdade…
dança a fumaça que um dia foi chama,
e que no {des}fazer-se a viver nos chama…
Hoje eu vi a dança da fumaça…
ali na varanda,
numa manhã de uma vida pateticamente corrida,
numa manhã de fazer vários planejamentos;
no intervalo entre uma demanda e outra,
numa tragada no cigarro montado no dia anterior,
a fumaça dançou até se dissipar,
e ali acabou…
* * *

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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