Por quê?
O que dizer?
Para quê dizer?
Responder a essas perguntas pode até ser pertinente nesse momento, todavia, não importa tanto assim. Ou melhor, não fará da carta mais ou menos válida – a propósito, ela reflete minhas experiências, que podem ou não ser semelhantes ao seu ponto de vista. Para cada um o abraço tem um cheiro e uma intensidade diferente.
Primeiramente, desculpe-me a liberdade tomada, você assumiu tantos nomes desde seu nascimento que fiquei confuso de como te chamar. Optei por Kilise, achei fácil de pronunciar, imagine se fosse церковь, nem sei como começaria a falar. Entendo bem que no Brasil – de onde te falo – esse termo (Kilise) não é tão usual. Sei também que poderia te chamar de Ekklisía (se fosse na terra do poeta Homero), ou também de Eaglais (se na terra do filósofo Edmund Burke), porém, decidi minha escolha pelo que te chamavam na terra do pensador Al-Farabi. Só quis, por hora, justificar-me perante ti – que é tão venerada pela imensa gente. Vai que não me compreendam caso essa carta seja desviada e nem a ti ela chegue. No mundo em que vivemos, pessoas gostam de ler cartas dos outros, parece que é prazeroso. Só pode! Lembra-se daquelas cartas que a ti enviaram em vários lugares ainda no começo da era cristã? As chamadas epístolas! Lembrou-se? Então, vai que usem desta carta com os mesmos descuidos. Seria lastimável que tudo que te digo fosse mal interpretado e usado para disseminar egoísmos e manipulações. Nem consigo imaginar direito. Ainda, arriscando um palpite, seria tão difícil escapar dessa armadilha quanto foi para Odisseu escapar da Cila e de Caríbdes, certamente algumas vidas seriam ceifadas por isso. Credo! Ops!, que horror!
Pois bem, Kilise, fico pensando sobre nossa apresentação – ocorreu há mais de 30 anos. Sinceramente, não tenho muita clareza de como foi que tudo aconteceu, quando me tornei capaz de perceber racionalmente o mundo, já havia passado um septenário. Só sei que eu estava a visitar-te. Naquela época, eu só poderia seguir os meus pais – iam eles a ti, lá estava eu. Até hoje eles dizem que te encontram – às vezes às terças, às vezes aos sábados. O encontro aos domingos era sagrado, hoje nem tanto. Sabe de uma coisa curiosa?, até hoje dizem por aí que aqueles que estão em ti são melhores que os pobres infelizes – perdidit ovium – que tomaram uma xícara de chá contigo e, sem nada dizer, saíram. Claro que em mim há uma forte tendência a discordar dessa última parte. Fui um dos que tomaram o chá e saíram – nem por isso sou infeliz. A propósito, o chá estava saboroso, mas você – cara comparsa – bem sabes que prefiro um café. Alguns chás me dão sono. Já o café… que isso… sem ofensas (perdoai aos que te ofendem, diz o livro ímpar que está em sua estante)… ele me desperta. Não gosto de café de cafeteira, prefiro os feitos com coadores, o aroma é divino – e nada de café frio, deixo isso para os americanos. Mas não fique triste, temos uma coisa em comum, você serve vinho, e eu também gosto muito.
Por enquanto, só quero deixar claro um detalhe muito importante. Dizem por aí que estamos brigados. Que você me ofendeu, que me irritou, ou que me disse coisas feias. Falam tantas coisas que nem sei relatar aqui, de tão extensa que é a lista. Mas, saiba: é mentira! Estamos bem, tanto quanto antes! Apenas não vou mais na sua casa cinza. E reitero, não somos inimigos! Continuo a respeitar-te como sempre, não há razões para o contrário. Entretanto, não posso deixar de te contar uma coisa um tanto triste (mas não detalharei nada aqui – farei isso na próxima carta): andam usando o seu nome para disseminar muitas discórdias, e não é de hoje – isso vem desde a chamada Idade Média. Então, vale a ressalva: Abundans cautela non nocet. Pior, insistem em dizer que Soíd-Le só existe se for entre suas paredes. Eu sei que você não concorda com isso. Mesmo assim, dizem tudo com muita veemência. Absurdo, não é?
Nobre Kilise, preciso despedir-me de ti. Mas não me demorarei, contar-te-ei tudo, sem nada esconder. Promete que me esperará? Torço para que leia essa carta. Se alguém irromper em ódio antes por havê-la lido sem minha permissão, paciência! Alea iacta est. Quanto a ti, só digo Adhuc sub judice lis est.
Ad astra et ultra
Andreone T. Medrado
Fevereiro de um ano qualquer, num sofá qualquer, ao som do Concerto para Piano, No 17 em Sol maior, de Mozart!
Abraços!
Consulta das expressões em Latim:
– Abundans cautela non nocet: Cautela em excesso não faz mal a ninguém
– Ad astra et ultra: Até os astros e além
– Adhuc sub judice lis est: Não julgar apressado, esperar o fim
– Alea iacta est: A sorte está lançada
– Perdidit ovium: ovelha perdida
NOTA: para consultar mais expressões em Latim, utilize deste link!