Leia atentamente o parágrafo seguinte (isso será fundamental para você entender o restante do texto):

Em minha casa há uma garrafa verde, de vidro; uso-a para guardar água na geladeira. Tempos depois, comprei outra garrafa; dessa vez, transparente – passei a usá-la também para a mesma finalidade. A garrafa verde tem uma tampa originalmente roxa, enquanto a branca tem uma tampa originalmente verde. Foi quando, de repente, tive uma ideia: para combinar melhor as cores, pensei em trocar as tampas, já que ao testar percebi que uma se encaixava na outra. Fiz isso! Ficaram ótimas! A garrafa verde ficou com a tampa verde; e a branca com a tampa roxa. Guardei-as na geladeira. No dia seguinte, a surpresa: tentei abrir a garrafa verde, que estava com a tampa da garrafa branca – foi uma luta! Forcei o máximo que pude, esquentei a tampa para ver se ocorria dilatação térmica, usei um pano para dar mais atrito, forcei um pouco mais… e nada mudou… não consegui destampá-las. Deixei a garrafa fora da geladeira… depois de muito tempo e esforço, consegui desrosquear a tampa. Que sufoco. Eu apenas quis deixar o conjunto visualmente bonito!

No exato momento após o sufoco, inevitavelmente me veio uma reflexão:

Quantas são as pessoas que levam vidas de garrafas? Quantos de nós somos assim? Somos garrafas, cada uma com sua cor, formato e tamanho. Mas, e as tampas? A quem pertencem? Ao que parece, vivemos em um mesmo mundo [simbolizado pela geladeira], carregamos em nós uma essência Humana similar em “substância” [representada pela água], mas que assume a forma do recipiente no qual vivemos [como o formato da garrafa], desenvolvendo uma cultura, uma crença e um estilo de existência que pode ser variável.

Tudo poderia seguir o seu curso normalmente, cada um em sua função, sendo original e singular. Mas não, as mãos poderosas do sistema decidem operar trocando as tampas das garrafas, simplesmente por acharem que fica melhor se forem formados grupos em que cada um segregue seus semelhantes. Assim, se uma garrafa é verde, então ela deve ter a tampa verde, se a outra garrafa é azul, sua tampa deve ser azul, e assim por diante. Para estabelecer essa nova “ordem”, arranca-se as tampas de todas e começa-se uma troca violenta para que, ao fim do processo, tudo pareça combinar perfeitamente. Crescemos e somos feitos garrafas, nossas tampas [nossas ideias] nem são originalmente nossas, mas as mãos poderosas do sistema acharam que ficaríamos melhores assim.

Observe que após as trocas cada garrafa passou a unir-se à sua nova tampa de maneira que – diferentemente da configuração original – uma eventual separação seria forçosa e complicada. Essa separação exigiria tanto esforço, de forma desmedida, além de tempo, e tanta paciência que correria o risco de se quebrar a garrafa, por ser considerada inútil.

Assim somos nós na vida. Quando um sistema – que pode ser a própria sociedade, as igrejas, a família ou qualquer outra fonte de manipulação e alienação – decide utilizar de estereótipos para manter cada grupo bem distinto um do outro, a ideia gruda tão bem que parece ter sido nossa desde sempre. Acreditamos tanto que resistimos impedindo que as arranquem de nós. Mas isso não é o natural! Fomos feitos para pensar; e não reclamem comigo, acertem as suas contas com a evolução. Isso significa que nossas ideias deveriam ser facilmente cambiadas, passíveis de mudanças, prontas para enfrentar o novo a qualquer momento. Não há nenhum mal em querer doar a nossa substância para saciar a sede de outra pessoa, podemos compartilhar nossas dúvidas e experiências, isso é ser Humano!

Porém, quando temos uma [tampa] ideia que não é nossa, tornamo-nos egoístas e cegos. Aceitamos viver cada um fechado para si, na ideia de proteção exagerada de uma identidade que – se observássemos com mais acuidade – perceberíamos tratar-se de uma manipulação.

Eu disse em outros Posts, e repito aqui: duvide de tudo que te impede de pensar, de ousar suas ideias e de buscar pelo novo. Algo que diz tornar-te mais Humano jamais te obrigaria a excluir pessoas só porque elas não têm a tampa exigida pelo sistema. Essa manipulação é evidente quando o agente manipulador escolhe um grupo e diz que ele contamina o restante. Ou, ainda, quando tentam convencer e converter-te à base da ameaça ou da recompensa.

Dessa maneira, acho interessante que não sejamos nós aqueles que conduzirão as trocas das tampas. Não temos o direito de incutir ideias novas em ninguém – muito menos sob violência (no máximo, podemos sugeri-las). Em primeiro lugar, isso é ilícito porque não temos a capacidade de decidir por alguém o que é melhor ou não para sua vida. Em segundo, porque uma pessoa só muda seu comportamento quando ela escolhe – genuinamente – abrir a sua tampa e liberar o seu conteúdo ou receber um conteúdo novo. Como dizia um escritor francês – Marcel Proust -, “a sabedoria não se transmite, é preciso que nós a descubramos fazendo uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira de ver as coisas“.

Tudo isso me veio à tona enquanto olhava para aquelas garrafas após voltá-las às suas configurações originais. No entanto, uma coisa ficou muito clara, e me aliviou bastante: muitas vezes não é necessário que exista um sistema que, com suas mãos poderosas, realize essas trocas mal-intencionadas. Em muitos casos, nossas próprias mãos são as feitoras dessas ações. Isso significa que podemos parar para pensar, e escolhermos viver uma vida que não seja forçada – somente porque cai bem com o todo. Pense em quantas vezes você se viu impedido ou impedida de abrir uma tampa que ao menos era legitimamente sua.

 

#VocêJáParouParaPensar?

 

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos