Uma estrada. Uma casa – nela, a luz apagada. Uma porta semiaberta – um aviso pendente, quase sem cor: “cuidado com o baú, nele pode estar tua dor“. O baú estava no canto. Sua alça, apesar do pó, brilhava como um encanto. Abri-o. Olhei no fundo. Espanto. O que vi: uma carta ali. O que fiz: eu a li. O que dizia? Isto:

 



*.
Não lestes o aviso? Quanta teimosia.
Suspeito que quebrar as regras não te é um problema,
tampouco uma preocupação.
Quiçá gostes mesmo é de heresia.

Mas, já que aqui estás,
puxe aquela cadeira de latão
(se ainda não foi levada pelo ladrão),
a carta é curta, fala de minha morte.
Mas, não se pilhem os eventos, vamos enxergá-los sem alteração.
“Destes sorte”!

I.
Eu nasci como todos nascem, desnudo e sem nada.

Levava um pulmão que jamais havia provado do ar da imensidão;
olhos que nunca haviam enxergado cores – cinza era a solidão; 
Ela, que me alegrava por ser cinza, que me aliviava por ser segura,
causava-me medo por não mudar – provocava-me usura.

Não temia exatamente a letargia, a lombeira, seja como quiseres chamá-la,
mas gemia pela possibilidade de um dia deixá-la.
Parece-me, hoje, que ao sermos uma vez presos,
a segurança de que nada mudará nos torna livres prisioneiros.
Livres, talvez, para não querer assumir obrigações.
Presos, sem dúvida, para nunca agir.
Acomodados, sobretudo, por não precisar sentir.
Tudo está feito. Não existem acusações.

II.
Foi no nascimento, quando colocaram em mim uma roupa que não pude escolher,

fizeram-me de boneco……. minha personalidade quiseram tolher.
Respirei um ar poluído, haviam tantas ideias soltas na atmosfera
que máscara alguma reter a poeira pudera……. não sabes como é doído.
Tiraram-me a segurança……. foi-se a falsa pujança.
Trocaram o cinzento lar pelas cores do arco íris……. feriram a minha íris.

Oxalá fora todo esse o mal.
Ao menos se Ela houvesse parado dessa forma
haveria sido menos letal.
Seria eu uma ave na gaiola, 
que cantaria, sim, cantaria,
mas, iludida e enganada,
não sonharia com o éter que haveria de suster minha esperança alada.

Foi trágico, só sei disso.
Não imagino como ou quando foi,
nem senti dor;

o serviço é feito com cautela, 
como uma casa sem janelas
para que não espiem o seu interior.

Foi pouco antes de morrer que descobri da tragédia seu efeito,
o plano foi quase perfeito,
ainda mais seria se eu não sofresse do mal de pensar
para padecer como padeço desse jeito.

III.
A tragédia, da qual disse, consistiu em inocularem em mim o mal.

Sem que eu percebesse, sem que eu cedesse a minha alma,
colocaram em mim um hóspede letal;
ele era assintomático, parecia fantasia;
como parte crucial do plano, a minha matéria ele convertia em energia.

Não era uma mitocôndria, como eu achava,
mas de fato a endossimbiose afirmava
que viver um sem o outro a ordem comprometeria,
sem matéria, eu o matava,
sem energia, eu morreria.

Algo aconteceu a valer tão planejado que a ligação foi sistemática.
O hóspede maldito era uma partícula do mal, então empática;
mesmo me impedindo o voo, me fazia crer que o subterrâneo era o ideal.
Como vive assim o pardal?
Quem, podendo ser livre no ar, prefere um buraco escuro no quintal?

Comecei a aceitar o meu jugo,
disse eu “
daqui não fujo“;
o quintal estava cheio de pardais
que, como eu, sonhar imaginavam jamais.

O tempo passava, eu crescia,
eu alimentava o hóspede; ele se expandia.
do contrário, também eu morreria.
Suas conexões fizeram parte de todo o meu ser;
eu era ele;
ele era eu;
como não o ser?

(Caro leitor insubordinado 
que, vendo o anúncio na porta, além de entrar, lês esta carta, aí sentado.
Não vás sem que antes descubra quem ou o que me matou; 
quem sabes tu, hoje atraído pela curiosidade,
não prefiras morrer a viver sem saber a verdade.)

IV.
Impiedosas, as horas corriam.
Outro dia, estando eu no chão sentado,
enxergava sombras que se moviam,

mas tinha medo de sair do buraco, já estava acostumado;
além de que o hóspede jamais permitia;
dizia que lá fora haviam predadores,
que aquelas sombras que iam de um lado para o outro
eram dos monstros de sonhos desoladores – e de dor portadores. 

Se, ainda que por um dia, eu sair dali pudesse, 
ainda que como Ícaro, subiria ao céu, se asas firmes eu tivesse;
mesmo que o preço fosse derreter-me como o mel,
não mais aceitaria ser ao hóspede fiel.

Mas, de que adiantava tanta revolta,
que forças eu tinha?
Se eu enxergava com seus olhos,

falava com sua boca,
ouvia com seus ouvidos e
se eram as suas pernas as minhas,
esquecia a revolta – era ele para mim quase como uma escolta.

O maldito era bem nutrido, 
comia a todo instante,
a cada centímetro quadrado encontrava ele finos e fartos pratos.
em um sortido restaurante chamado “vida debilitante”.

De tudo comia, mais que as liberianas crianças;
desde procrastinação, mentiras e ostentação,
devorava até sonhos e esperanças.

Ainda, o que mais o agradava era uma lasanha de alienação,
ao molho de indiferença, puxado ao fio de ilusão.
O vinho era suave, com uvas de egoísmo, em nada era azedo;
bebia uma garrafa por vez – jamais ficara bêbado. 
O bêbado era eu – que no dia seguinte de nada me lembrava.
Isso garantia-lhe repetir a dose; que eu sequer desconfiava.

V.
Ele cresceu em mim.
Tornei-me hostil,

um homem vil.
Julgava o mundo e as pessoas pela aparência.
A textura dos cabelos e a cor da pele eram para mim identidade e penitência.
Dizia eu de alguém aquilo que ele tinha, 
suas verdades menos que suas conquistas valiam.

Nada me parecia errado,
era como se para a morada cinza e segura eu houvesse voltado,
não queria deixar de ser como eu era, achava que havia acertado.
Errado era o outro,
o engano estava noutro.

Deixei de carregar o hóspede, 
ele que passou a levar-me para onde o quisesse,
desde que o que me pedisse eu lho fizesse.
E o fazia, pois não precisava me esforçar para nada,
bastava o fato de que a massa eu seguia – como mariposas às chamas condenadas.

Eu era preconceituoso,
machista,
um banal orgulhoso,
era um patife egoísta,

Não queria perder,
quando disso, não queria entender;
tinha certezas absolutas sobre a vida, sobre a morte e sobre o céu,
quem pensava diferente, do inferno era réu.

VI.
Foi quando noutro dia, em frente a um casebre abandonado,
tropecei em uma pedra no gramado.

Sob ela estava um papel que refletia a luz do céu.
Nele, um escrito rabiscado.
Por saber o que estava, então, escrito, o hóspede tentou impedir-me de lê-lo, isso por umas cem vezes:
conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses

A terra tremeu, o hóspede tornou-se encolerizado.
Sangrei de dor.
Na hora achei que fui baleado,
hoje tenho certeza daquele estado.
Aquele papel me fez um favor:
lançou luz aos meus olhos, mesmo causando-me dor.

Comecei a olhar para o hóspede que vivia em mim,
ainda não sabia quem, nem como, o colocara ali;
também, pouco me serviria saber daquilo naquele momento.
A urgência era deixar de ser manequim.

Como quem sabia que, se morresse eu, morreria ele,
enfureceu-se para suscitar o pavor, 
oferecendo-me o céu e as nuvens, em troca de um forjado amor,
tudo que pôde fizera, antes que eu do buraco sair quisera.

Não adiantou, dei passos forçosos……. saí.
Dei outros dois…… caí.
Ele se contorcia dentro mim…… sofri.
Eu só mirava pela brecha da porta o muro… parecia delírio puro.

Lá, atrás da porta, havia um muro – cheio de trepadeiras,
atravancado por madeiras, protegidas por Polifemo,
que assustava quem dele se aproximava, pois um anúncio deixava:
Sê quem és, sabendo

Mais adiante, subi.
em cima do muro, outro aviso:
para transpor essa parte, deves estar ciente que não mais te carregarão,
tuas pernas serão só suas, mas tuas dores também te acompanharão;
Sem anestesia, sem ilusão.
A energia de que precisar, de produzi-la terá.
Para isso, indispensável será o ato de pensar.
Isso dar-te-á muito trabalho e o Zôagria a ti custará.

VII.
Desci ao outro lado do muro. 

Estava desesperado, sem a mínima condição de crer que havia feito aquilo.
O hóspede? Seguia como meu inquilino.
Cada hora mais raivoso e ardente;
ele de certo já sabia do anúncio que estava preso logo à nossa frente.

Dizia o anúncio, como palavras de advertência:
Tu que aqui chegastes, 
saiba que ninguém, senão tu mesmo, te forçou.
A passagem é um possibilidade, 
a volta, impossível. 
Quem pensa ter voltado é porque nunca passou de fato, 
mas padeceu aí parado, olhando o outro lado, 
porém com medo da sentença recusou saber da própria essência.
Que sentença e essência? Estas: Se passar, morrerá.
Mas, morto estando, viverás!

Foi então, que, quando dei um passo,
outra pedra – com outro papel debaixo.
Estava escrito: as placas ríspidas de teus olhos cairão, 
enxergarás a vida em sua total crueldade e perfeita imperfeição,
verás que a ordem é a aleatoriedade, 
que a certeza não existe, senão a imagem da verdade.
Ao passar, deixará o hóspede o teu corpo,
mas precisarás tu produzir teu alimento;
pensar passará a ser o teu tormento.
Muitas coisas acontecerão,
outros muros aparecerão
.

Não tive forças, resisti à maldição de ser livre. 
Tive medo de voar, rejeitei o alvitre;
aqui, no quintal com meus semelhantes,
tinha tudo que queria, sem esforços nem condicionais.
Fui seduzido a viver como dantes – a alienação o tolo satisfaz.
Voltei para casa [na qual estás agora lendo essa carta].

O hóspede, que livre da morte desejoso estava,
aflito e temeroso se mostrava.
Ele já sabia o que em minha mente se passava
e que, depois do muro contemplado, dele não me olvidava.

VIII.
Joguei fora, então, o broquel, decidi que eu existo.
Peguei um papel – o primeiro que achei – todo constrito

canetas eram raras por ali, nunca escrevíamos nada…
as informações eram passadas na base do grito,
gritava mais quem tinha o hóspede mais bem nutrido.
Ninguém lia, de escrever perderam a mania.

O baú era vazio, eu já disse;
não haviam lembranças – não guardávamos fatos de andanças;
não padecíamos de preocupação com roupas que estragavam,

éramos vestidos somente daquilo que nos davam,
nem as vontades – mais importante que as roupas – eram nossas;
quando pareciam-se gastas as vestes,
umas outras vinham, tão novas que pareciam celestes.

Escrevi tudo que lestes até aqui – que agora eu amarro com cetim.
Uma decisão eu havia tomado,
sabia que poderia custar-me a vida passar para o outro lado.

Pensei nisso enquanto o hóspede mórbido hibernava dentro de mim – o que era raro.
Ele somente dormia quando tudo estava em silêncio.

Aproveitei-me do momento;
preparei-me para fugir. 
Estava certo de que para o muro queria seguir.
Desta vez, para transpor a última barreira.
Uma decisão sem volta,
uma ação altaneira.

Por isso, se tu estás lendo essa carta,
é porque, como disse o oráculo, eu morreria.
Morreria nessa existência banal,
para lutar em um campo real.

Não me importei, ao escrever essa carta
fui tomado pela coragem de Esparta.

Sairei em poucos minutos, 
antes de começarem os gritos,
e surgirem os bêbados moribundos.

Antes que acorde o meu hóspede e tente prender-me
sob a ameaça de dores
ou pela promessa de um campo cheio de flores.
Quero ser livre,
e livre serei.

Então, para ti, que me lê até aqui,
saiba: no fundo do quintal há uma porta,
ela está sempre destrancada,
somente pelo Medo ameaçador ela é cercada.
Este não é como Cérbero,
ao invés de três cabeças, tem sete;
a cada uma chamam pelo nome de um pecado que contra o mundo investe.
Mas, a quem o enfrenta, a passagem uma hora cede.

IX.
Ouço rumores lá fora. 

Preciso partir, é a minha chance de sair desse torpor profundo.
Sinto muito por ti,
pois, se me lês,
é porque ainda alimenta um hóspede nesse mundo.

Contudo, se quiseres saber o que será de mim, 
vás até o fundo do quintal.
Não tenhas medo de abrir a porta.
Quem disser para que lá tu não vás, 
será porque lá já esteve e não aceitará que 
tu, sendo mais valente que ele, 
vencedor serás.

Se pensas que nada tenho a ganhar, 
enganado tendes a ficar,
porventura não lestes o que escrevi?
Se não, voltes e leias mais vezes,
pois isso:
Conhece-te a ti mesmo e conhecerá o universo e os deuses“.

X.
Desobediente leitor,

minha desobediência um dia me salvou, 
pois com tu fazes agora, fiz no passado.
Entrei na casa abandonada,
não havia anúncio na porta, mas havia aquela pedra sobre aquele papel no gramado deixada
Eu entrei; tão medroso que estava, não me sentei;
quem ali viveu parece ter saído apressado, esqueceu um pé do sapato;
na mesa, ao lado do candeeiro, um pote de nanquim e uma caneta;
das velas ficou o cheiro… ele deve ter saído essa noite – bem ligeiro.

Dela me utilizo para escrever-te com clareza:
Não tenhas medo de abrir a porta.
Na angústia que te assola, assuma temporariamente uma certeza!

Por fim, repetirei o que li uma vez naquela carta:
Não saias sem escrever a tua história – é a tua missão,
outras pessoas poderão inspirar-se em ti 
para eliminar seus hóspedes e alçarem voo;
quem se questiona não aceita hospedar a alienação

Um dia todos fomos infectados com o hóspede maldito,
inoculam-nos o mal contra a nossa concessão, acredites tu ou não;
podemos viver anos e anos sem percebê-lo
até que surjam sombras e pedras no chão.

Neste momento, a escolha de continuar servindo a alienação é toda nossa.
Escolher seguir a massa do quintal, é uma opção,
não exige sequer uma mínima ação.
Entretanto, tomar posse da carruagem
e trilhar um caminho conscientemente
é para quem realmente tem coragem.

Ele está acordando, preciso mesmo ir! Tenho medo!
Ai! Está doendo aqui dentro!
Ele está acordando,
deve estar suspeitando!
Ai!
Ai!

Lembre-se atentamente:

Periclitante é recuar ante um sonho candente.
Ande!
Lute!
Tente!

Atenciosamente, …


 

vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

 

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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.