Era em uma cidade pequena que morava um Sábio chamado Otasnes Okulam. Essa cidade não era tão desenvolvida ao ponto de possuir um sistema ferroviário, mas também não era pequena o bastante para que não houvesse nela uma robusta rede comercial. Embora fosse raridade também por ali, Okulam era um homem sábio – sábio o suficiente para ser considerado como um ser humano de brilho, “aquele cujos conselhos eram magníficos e cujas ideias eram tão bem organizadas que pareciam vindas de outro mundo” – diziam.

Okulam apresentava um semblante constantemente sereno, seu rosto mostrava as marcas da avançada idade, sempre acompanhado de um sorriso acolhedor; sua fisionomia carregava sempre um olhar penetrante, que por si só já dizia coisas inefáveis. Sua saúde causava admiração a todos; com exceção de alguns quadros de dores de cabeças que sofria vez ou outra, sua saúde física era impecável. Ele era viúvo e sem filhos, e trabalhava em sua própria casa, na Rua Juca Pirama – lidando com jardinagem; vivia do plantio e venda de aráceas; dizia-se encantado com a exuberância de suas folhas, que assumiam as mais variadas formas e tamanhos – sua preferida era a Colocasia gigantea.

Sobre os seus conhecimentos, embora ele próprio não fizesse questão de registrá-los em nenhum livro ou sob qualquer outra forma de escrita, os habitantes de Burla não perdiam tempo. Cada um dos que ouviam seus preciosos conselhos tratava logo de contá-los aos seus familiares e amigos, que espalhavam a notícia como a uma epidemia; além disso, com o advento da internet, publicavam-os nas redes sociais; os burlenses sentiam-se tão identificados com as palavras do Sábio que diversos livros foram lançados como sendo “inspirados nos conselhos de Okulam“.

Verdade é que Burla se orgulhava de possuir um sábio vivo, uma vez que alguns até diziam que Okulam não deixava a desejar quando comparado ao Buda ou ao Jesus bíblico. Isso causava muito incômodo no velho Sábio – logo, ele fazia questão de dizer que não era preciso comparar-se a ninguém, mas que o verdadeiro humano simplesmente o é. Dizia, ainda, que o mal da humanidade era a doença compulsória da comparação com o outro; uma vez que bastaria fazer o melhor de si com aquilo que se possui, as coisas caminhariam para o bem de todos – não era, portanto, necessário medirmos forças com o outro. Ao outro damos o que temos, e não roubamos o que fazem – ele acrescentava.

Interessantemente, a cidadezinha era diferenciada das demais em um aspecto: à parte os exageros da população em declamar sua admiração pelo Sábio, observava-se um grande respeito pelos seus conselhos, de tal forma que boa parte daquilo que era feito na região – como leis e normas morais e éticas – levava em consideração os seus ensinamentos. As escolas aplicavam suas ideias de uma educação livre da relação de “punição e recompensa“; em casa os pais ensinavam que, como dizia Okulam, “família era toda a humanidade, devendo ser o Amor distribuído a todos e não como um ato egoísta delimitado pelo registro civil”.

O tempo passou e, num certo momento de sua vida, Okulam começou a queixar-se de fortes dores de cabeça – que persistiam há duas semanas. Foi quando seus solidários conterrâneos decidiram levá-lo ao Hospital Central, especificamente ao neurologista mais prestigiado. Foi realizada uma anamnese mais por prazer de conversar com o Sábio que por necessidade. Inúmeros exames foram solicitados. Passados alguns dias após sua dor ser amenizada e serem colhidos os exames, Okulam foi liberado para casa. Três dias depois, em posse dos resultados, o médico mostrou-se confuso e perturbado. Por conhecer e admirar o idoso, o especialista ficou perplexo com os resultados. Para evitar maiores confusões técnicas, pediu autorização ao Sábio para realizar um exame genético – o qual foi permitido.

O Resultado do exame veio como uma bomba Little Boy. Okulam foi diagnosticado com uma doença mental raríssima, causada pela presença do gene mutante DF86. Embora raríssima, essa doença é apelidada no meio científico como doença do Maluco Sensato, pois ela é responsável por produzir alucinações moderadas no portador de tal maneira que ele não as perceba e viva como se fossem reais – seu comportamento era tão natural que parecia tratar-se de uma pessoa sem qualquer tipo de problema. Acreditava-se que essa doença se manifestava desde os primeiros anos de vida do portador, o qual poderia morrer sem saber do mal – salvo pelos incômodos causados pelo tumor característico. Como consequência da evolução da doença, o portador desenvolvia um tumor cerebral que, no caso de Okulam, começava a causar picos de cefaleias com mais frequência – praticamente duas vezes por semana. Okulam foi o portador que sobreviveu por mais tempo com a doença, raros foram os que passaram dos 33 anos. O Sábio faleceu em seu jardim, à sombra de uma Colocasia, dois anos depois de receber o diagnóstico.

Fântaso, o neurologista, tentou esconder a causa da morte de Okulam o máximo que pôde – julgava desnecessário que todos soubessem o motivo. Mas, dada a fama do falecido, isso tornou-se insustentável. Às vésperas da homenagem a ser feita ao Sábio um ano após sua morte, Burla conheceu toda a verdade. Sabe-se lá como, mas alguém havia acessado o arquivo no computador do especialista e, como em um piscar de olhos, a causa mortis já estampava os jornais e revistas mais importantes. Não se falava em outra coisa na cidade senão que “o Sábio era também louco“. Os moradores de Burla foram tomados de uma indignação e decepção tão grande que a cidade enchia-se de burburinhos maliciosos: os moradores não acreditavam que seguiram os conselhos de “um homem que fora louco durante toda a sua vida, mas que ninguém desconfiava“.

Não passou muito tempo para que aquelas normas éticas e morais fossem revisadas e substituídas; os conselhos que outrora foram motivos de publicações nas redes sociais viraram memes que se espalharam como gases ideais; sem dizer que bastava uma pessoa querer dar conselhos que era tachada de Maluco Sensato. Burla foi burlada? Seus moradores, que acreditam seguir a verdade, passaram a seguir suas próprias regras. A cidade tornou-se um caos. A corrupção era a moeda de maior valor; o respeito era mais raro que diamante; se alguém servia de inspiração ali eram as telenovelas, que passaram a ocupar os espaços dos conselhos do velho falecido; tudo isso por conta de um diagnóstico: presença do gene DF86. O “maluko sensato” morreu, mas nasceram os sãos que acreditavam deter toda a sabedoria.

 


 

#VocêJáParouParaPensar?


Andreone T. Medrado

Devaneios Filosóficos

 


Nota: Imagem usada para a capa compor a capa dessa publicação:
Casa de Loucos (1808/1812), Francisco de Goya.