Pense em algo ou alguém que seja necessariamente excelente! Mais: esse algo ou alguém deve ser simplesmente a melhor coisa que já aconteceu em sua vida – a melhor de todas!
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Um pouco de História & Reflexão
Desde o momento em que o Homo sapiens passou pela chamada Revolução Cognitiva – há aproximadamente 70 mil anos, segundo alguns historiadores – a maneira pela qual o tempo e o espaço era concebida mudou drasticamente. Olhar para o grupo de caçadores-coletores que estava mais distante exigia algo “sobreanimal“; conviver em um grupo que apresentava mais de dois sapiens não era somente uma ação instintiva, pelo contrário, isso demandava relações políticas e estratégias de sobrevivência que excediam àquelas provocadas por cascatas hormonais. Fazia-se necessária a criação de artifícios imaginários que servissem de elos entre “eu” e “você”, “eles” e “nós”. Entretanto, algo deveria justificar esse elo para que ele fosse mantido por tanto tempo – seja a força física, o status social, a “beleza”, a divindade, etc -, constituindo, dessa forma, uma sociedade tal como conhecemos hoje. Falo do poder da comparação.
Embora nem sempre nos damos conta disso, somos movidos por comparações em praticamente todos os aspectos da nossa vida – seja ao longo de toda a vida ou em uma única manhã de um dia qualquer. Quando acordamos, seguimos alguns passos que são mais mecânicos que livres: trocamos a chamada roupa de dormir pela roupa de trabalhar; tomamos um banho; penteamos o cabelo de maneira que ele fique bonito; passamos um desodorante para ficarmos cheirosos; olhamos as mensagens nas redes sociais (descartando aquelas que achamos chatas e compartilhando as mais interessantes); ao chegarmos no local de trabalho, começam as comparações: reparamos naquela pessoa que estava com um cabelo bagunçado, ou dissemos que fulano está muito alegre, ao passo que ciclano está mal humorado; e por aí vai. Certo é que em tudo há alguns mililitros de comparação envolvidos. E esse hábito/necessidade de compararmos tudo com todos tem alterado a dinâmica das sociedades, criando padrões considerados “aceitáveis” e garantindo de rebaixar outros ao status de “desprezíveis”… Bom e ruim, bonito e feio, grande e pequeno, potente e impotente, claro e escuro, pouco e muito, só podem existir se um parâmetro (ou padrão, ou estereótipo) for escolhido e estabelecido. Todo o resto fica por conta da comparação.
Se remontarmos a história a um período muito importante, dizem, como quando os europeus decidiram “dominar o novo mundo”, veremos que dizer que é melhor tomar banho e pentear os cabelos do que ser “fedido” é puramente uma questão de ponto de vista. Relatos históricos mostram que quando Hernán Cortéz – por volta de 1519 – invadiu o atual México, enquanto a sua tropa caminhava seguida por grupos de nativos, estes acendiam incenso – um atrás do outro. Acontece que os europeus (que passavam dias, e até semanas, sem um único banho) acreditavam que os incensos eram um sinal de reverência asteca ao povo estrangeiro; no entanto, segundo relatos de nativos, o aroma servia para disfarçar o odor extremamente desagradável que provinha do “povo superior e bem vestido”. Não vale dizer que naquela época não existiam chuveiros, e por isso os europeus eram fétidos; povos nativos, da América por exemplo, tomavam mais de um banho por dia, e eram mais limpos que os “civilizados” europeus. Nota: não tente justificar a sua repulsa pelo banho diário – cada avaliação deve ser considerada dentro de seu contexto histórico-cultural. No século XVI, não tomar banho era “normal”, não havia alguém que tomava banho para que servisse de comparação e, por isso, influenciasse os outros fedidos. Hoje… ser fedido é “errado”. O mesmo é válido para comparações entre alegria e tristeza, cabelo bagunçado e arrumado; para que uma coisa seja melhor que a outra obviamente que devem existir no mínimo dois parâmetros. E cada um escolhe o seu preferido – ou o que está em alta no momento.
Na minha época…
Quem nunca ouviu os pais ou os avós dizerem algo como “na minha época, havia menos violência no mundo”? Com certeza, se você perguntar a um idoso, hoje, o que ele acha do lugar onde vive, sua resposta será que “na minha época, eu deixava até a porta aberta, e ninguém roubava, mas hoje…“. A verdade é que, essa afirmação não é necessariamente mentirosa, porém é muito restrita a uma comparação individual. É verdade que no Brasil o índice de homicídios tem aumentado desde os anos de 1980. O Mapa da violência 2016 deixa isso bem claro, mostrando, inclusive, que do ano de 1980 a 2002 – por exemplo – a taxa de violência por armas de fogo crescia de 8,1% ao ano, enquanto de 2002 a 2014 ela caiu para 2,2% ao ano. A violência continua crescente, claro, mas sua taxa tem reduzido ano após ano.
Retrocedendo um pouco no tempo, se os seus pais ou avós são dos anos de 1930 (ou seja, se hoje eles têm cerca de 88 anos), o mundo no qual eles viviam – caso fosse o planeta Terra – passava por momentos turbulentos. O período entre guerras encubava ideias que mais adiante foram responsáveis por genocídios desmedidos.
Por exemplo, em 1933, na Alemanha, ascende ao poder aquele que encabeçaria o projeto nazista, responsável pela morte de mais de 6 milhões de judeus, além de milhões de humanos de outras etnias – o que ficou conhecido como Holocausto Nazista. Poucos anos depois, em 1943, na Índia, também movido por princípios genocidas – dessa vez, ingleses -, acontece a Grande Fome de Bengala, deixando aproximadamente 2 milhões de indianos mortos. Isso, obviamente que não é tudo, há uma lista imensa de guerras que assolavam as mais diversas partes do globo: como a Guerra de 41 (1941), entre Peru e Equador; a Guerra Argélia (1658-1962); a Guerra de Independência de Angola (1961-1975); a Guerra do Vietnã (1964-1973); a Guerra dos Seis Dias (1967), entre Israel e a frente Árabe; a Primeira Guerra do Líbano (1982); o Genocídio em Ruanda (1994), que deixou 800 mil mortos em cem dias; Guerra Etíope-Eritrea (1998-2000), entre a Etiópia e a Eritreia, considerados, na época, os países mais pobres do mundo; a Segunda Guerra da Chechênia (1999 até os dias atuais) […] sem falar da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985 … talvez futuros historiadores incluam o ano de 2018 como o início da parte II dessa história).
Portanto, como dizer que “na minha época, havia menos violência no mundo”? A única justificativa para isso é considerar que na sua época o mundo era apenas um pequeno punhado de terras, cercado com egoísmo e cegueira e pertencente somente a ti, numericamente insignificante se comparado ao todo. Admitir tal ideia só é possível se usarmos de comparações muito limitadas, que fazem de nós autores únicos da história, ao ponto de considerarmos como nossa uma época que não era de ninguém. Mais uma vez, são as comparações impulsionando a nossa crença em algo que ao menos entendemos de verdade.
Estereótipo: o bichinho de estimação da comparação
Você seria capaz de acreditar que estereótipos existem por si, e nada mais? O que reina no oculto dessa ideia [estereótipo] que a torna tão poderosa e arrendatária de milhões e milhões de seguidores todos os dias, por todo o mundo?
Considerando a beleza segundo o estabelecido pela sociedade, ela só existe se puder ser comparada. Em uma festa, a sua roupa só será a mais bonita ou a mais feia se existir mais alguém vestido naquele lugar; o seu cabelo será arrumado apenas se alguém usar um penteado que não seja aceito pela maioria, logo esse será o bagunçado; o seu carro só pode ser considerado novo e possante se você estabelecer uma comparação entre um que existe há mais tempo que o seu e que não tem tanta potência assim; da mesma maneira, o seu cônjuge só será o melhor do mundo se você estabelecer um critério que te permita identificar alguém não tão bom assim. Enfim, nada está solto. As coisas existem ao menos aos pares. Este texto só será legal se você já leu um que considerou chato; ou apenas será um tédio caso algum escritor tenha conseguido prender a sua atenção por mais tempo. Comparamos tudo o tempo todo. Bebemos água e respiramos oxigênio, mas é como se além disso ingeríssemos um pouco de comparação para garantir a nossa sobrevivência. Seria essa a nova vitamina do mundo?
Comparações acontecem o tempo todo, seja onde for, venha de quem vier – elas são o produto de uma reação que acontece lentamente, mas que nunca para. Algumas dessas comparações não fazem diferença somente por existirem, uma vez que já foram incorporadas à cultura e são praticamente mecânicas e imperceptíveis. Contudo, outras são problemáticas e estão na base formativa de nossa sociedade, causando mazelas desde sempre até para sempre. Nessa reação, algo sombrio pode funcionar como um catalisador: o preconceito.
“Nós” e “Eles”, “isso” e “aquilo”
Quando comparamos incessantemente a nossa roupa, a nossa casa, o nosso carro, ou qualquer coisa material e não material, geralmente o fazemos porque já absorvemos a mania (ou maldição) da comparação como um estilo de vida. O que nem sempre percebemos é que todos os preconceitos e certas causas de depressão só existem porque também algo foi comparado e uma das partes saiu vencedora, subjugando, então, a outra. Resta saber cada vez com mais profundidade quais foram os critérios utilizados para essa escolha – quanto às suas consequências, elas são bem evidentes.
#VocêJáParouParaPensar? O que me faria acreditar que o céu é o melhor lugar para passar a eternidade? Com base em que eu deveria acreditar nisso? Como ter certeza de que, ao me privar de certos costumes mundanos, sendo honesto e fiel, receberei como recompensa o tão desejado céu? Existem muitas respostas para tais indagações, porém, deixo aqui como insight a suspeita de que fomos ensinados (senão doutrinados e/ou adestrados) a comparar as coisas para chegarmos à conclusão de que qualquer outro lugar é ruim; ou, ainda, fomos ensinados que qualquer indivíduo que não pense assim seja condenado, sem direito a uma única explicação.
O inferno precisou ser bem pintado, aquecido sete vezes e odorizado com enxofre, cheio de almas gritando, nadando no caldeirão de fogo, tal como representado inúmeras vezes na arte – por exemplo, em uma tela de Hieronymus Bosch; ou, para isso, teve seus costumes revelados por Guaixará, no Auto de São Lourenço – obra do Padre José de Anchieta (1534-1597). Seja como for, criaram uma ideia, transformaram-na em vilã e destruidora e, por comparação, decidimos que além das nuvens está o paraíso – o nosso paraíso. Não existe outra maneira que justifique o céu por ele mesmo, sem precisar, para isso, criar infernos e demônios, nuvens de algodão e arcanjos? É realmente preciso estabelecer um comparativo para que exista uma crença na eternidade?
Partindo do mesmo princípio, quando pensamos em preconceito racial ou em homofobia, está nitidamente exposto que o negro só é considerado inferior porque alguém não-negro é dito aceito como superior; e que a heterossexualidade só é a melhor maneira de existir enquanto ser humano porque algum heterossexual decidiu por a+b (ou, por homem+mulher) que todos que não sejam assim merecem ser considerados como escárnio, um entulho social e, portanto, devem ser eliminados. Devem ser eliminados, dizem, porque eles contaminam a pureza da sociedade e a da cultura. Mais ou menos como diz um historiador israelense, “quer que algo seja proibido, diga que ele contamina o resto“. Nem um pouco longe de sofrer semelhantes preconceitos estão as mulheres, ditas inferiores e incapazes de fazerem outra coisa que não “esquentar a barriga no fogão, ou molhá-la no tanque de lavar roupas”.
Assim, quanto mais adeptos decidem diariamente em estabelecer um comparativo entre os grupos, maiores serão os preceitos estipulados e, consequentemente, mais distante ficamos de uma solução. Se deixarmos de comparar a cor da pele e a opção de gênero com os “valores” estereotipados, sem dúvidas reduziríamos drasticamente nossos falsos motivos para acharmos que os negros, os LGBTs e as mulheres não “merecem” as mesmas coisas que os “poderosos”. Então, por que ainda comparamos? Seria por que não queremos sair da zona de conforto, ou por que somos idiotas e desprezíveis mesmo?
Há ainda uma preocupação latente. Se a comparação acontece no âmbito individual, mesmo que dentro de um quarto trancado a sete chaves, ainda assim ela pode ser perigosa, senão letal. Várias teorias discutem sobre as possíveis causas da depressão, e elas variam desde questões hormonais a psicossomáticas, além de forte influência social – mas é aquela influência sutil e discreta. Acreditem (ou melhor, pesquisem), comparações demasiadas entre “nós” e “eles” podem nos abater emocionalmente ao ponto de acreditarmos que não temos valor enquanto indivíduo, ou que não nos encaixamos em nenhum lugar. Raramente olhamos para nós mesmos sem estabelecer alguma comparação com o mundo externo ou com aquilo que gostaríamos de ser. Precisa mesmo ser assim?
O sociólogo Émile Durkheim, que trabalhou com os processos envolvidos no suicídio, correlacionou a depressão como uma de suas causas:
“Durkheim, em sua obra O Suicídio, destaca a influência da depressão sobre o ato suicida quando define os tipos de suicídio nos estados psicopáticos. O suicídio melancólico, segundo ele, relaciona-se geralmente a um estado de extrema depressão, de exagerada tristeza, que faz com que o doente já não consiga mais apreciar de maneira sadia as relações que com ele têm as pessoas e as coisas que o cercam.
[…] A depressão emerge como resultante de uma inibição global da pessoa, e afeta a função da mente, altera a maneira como a pessoa vê o mundo, sente a realidade, entende as coisas e manifesta suas emoções. Desse modo, segundo Camon (2001), é considerada uma doença do organismo como um todo, que compromete o ser humano na sua totalidade, sem separação entre o psíquico, o social e o físico. Segundo Coutinho e Saldanha (2005), a sua manifestação acaba por se refletir no relacionamento interpessoal, principalmente na estrutura familiar, e vem provocar, muitas vezes, situações de conflito e incompreensão.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a depressão tem uma prevalência de 17%, e atinge adultos, crianças, ou idosos em algum momento de suas vidas. Segundo Versiani (2004), embora possa ocorrer em episódios – de longa ou curta duração – ou apenas uma vez na vida de uma pessoa, a depressão é considerada uma doença crônica, mais incapacitante que males como diabetes ou insuficiência cardíaca.”
(VIEIRA & COUTINHO. Universidade Federal da Paraíba)
O Marketing e suas mensagens subliminares
De certa forma, propositalmente ou não, a mídia, a sociedade e qualquer que seja a propaganda de marketing, atuam como fornecedoras diretas ou indiretas de comparativos. Basta que você assista ou leia a qualquer tipo de anúncio e/ou propaganda de produtos para perceber que eles embutem a comparação entre o produto anunciado e o do concorrente a fim de nos convencer que um é melhor que o outro. Isso parece mais que óbvio, é o mecanismo fundamental. Há uma propaganda do Mc Donald’s que não tem sequer uma fala entre os participantes (com exceção da música), mas a mensagem de que um deve ser escolhido em detrimento do outro é estupidamente clara. Tudo isso funciona muito bem! Nenhuma palavra precisa ser dita quando somos ensinados a entender a partir do mais sutil gesto de adestramento. O mais curioso, ou perturbador, é o fato de não percebermos nada e, ainda, admirarmos a audácia do anunciante. Mal sabemos que ali está a expressão de um “gene” que assume os mais variados “fenótipos” na história da humanidade. (Dica: assista à propaganda, basta clicar no link).
CONCLUINDO…
Se eu te disser “a partir de hoje não faça mais comparações na sua vida!”, certamente que você riria de mim, e com razão. É praticamente impossível não estabelecermos algum tipo de comparação entre uma coisa e outra. Todavia – e aqui creio que você concorda comigo -, certas comparações além de prejudiciais são desnecessárias. Não precisamos comparar valores ou coisas abstratas. Não sobre tudo. Como você pode ver, quanto mais confrontamos ideias, no sentido de enaltecer uma em detrimento da outra, algo sai errado. Levar a vida pautada em ditados de outros, simplesmente porque acreditam que o melhor é “a” e não “b” e usam para isso um comparativo doente, nos levará ao desgaste – tanto individual quanto coletivamente. Repito, comparar se uma decisão é melhor que a outra, se um livro é melhor que outro, ou se deve viajar para Pernambuco ou Sergipe, requer critérios objetivos e não ofende ninguém. Mas, fazer qualquer uma dessas coisas pelo simples fato de ser uma construção social pautada no preconceito e no etnocentrismo e, assim, ler literatura clássica porque disseram que isso é ser culto, ao passo que ler Harry Potter é coisa de mentes atrasadas, não é saudável nem inteligente. Decidir entre contratar duas pessoas com base em seus currículos e aptidões profissionais e nas necessidades da empresa é algo válido; deixar de contratar alguém baseando-se em sua cor, sexo ou gênero é preconceito.
Portanto, antes de comparar, pense o que gera essa atitude. Se perceber que o motivo é sujo, pare imediatamente! Repense! Tente uma mudança! Não nascemos prontos, também não nascemos preconceituosos, logo, podemos aprender e melhorar nossa conduta a cada dia!
E agora? Você já pensou qual foi a melhor coisa que já aconteceu na sua vida? Com base em que você decidiu essa coisa e não qualquer outra?
#VocêJáParouParaPensar?
Andreone T. Medado
Devaneios Filosóficos