Caros leitores,

Hoje é uma tarde cinzenta, o dia não está nem quente nem frio, mas ameno. Pensar na vida é algo de que gosto, faço isso com assuntos variados, basta que passem pela minha mente e, quando percebo, estou filosofando a respeito. Como seria diferente dessa vez?

Em um mundo “tão pequeno” como o nosso, caminhos cruzam-se a todo instante; pessoas diferentes acabam se encontrando, eu as noto, e daí surgem minhas observações. Vejo pessoas que vivem vidas totalmente opostas e que assim são também por razões opostas. Entretanto, observei o comportamento de duas senhoras que vivem como se suas existências fossem opostas, mas que na verdade apenas expressam “fenótipos sociológicos” diferentes. Ok! Eu te explico!

Na biologia, o termo fenótipo diz respeito à aparência que decorre da expressão de determinado genótipo em combinação com os fatores do meio ambiente. Por exemplo, coelhos do himalaia podem ter o genótipo (conjunto de genes para determinada característica) para possuir uma pelagem escura em determinada região do corpo e mesmo assim serem brancos. Para que essa cor preta se manifeste, é preciso uma combinação com o meio ambiente. Da mesma forma que uma pessoa pode ter um genótipo para ser alta e, devido uma carência nutricional, desenvolver uma estatura menor que o esperado. Desse modo, transportando conceitos da biologia para a sociologia, ousadamente, criei o termo fenótipo sociológico.

Agora que introduzi a temática, posso dizer um pouco sobre essas senhoras.

Dona Plácida, uma senhora que chegou ao Estado de São Paulo ainda na flor da idade, trazendo consigo todas as suas esperanças dentro de uma mala e acompanhada do [ex]marido e de filhos, relata seus dias com muito pesar e descontentamento. Arrepende-se de não ter feito escolhas mais consistentes enquanto supunha ser livre. Dona Estrela, por sua vez, chega à Cidade de São Paulo, também por volta da mesma idade; entretanto, recém-casada e convicta de sua plena felicidade, acreditava viver momentos mágicos, transformadores e de uma coragem exemplar. Aquela, deixando a terra do sol vermelho de Candeias, arriscou-se – com muita desconfiança – sem saber o que fazia. Esta, dizendo tchau à terra do palmito, estava segura de que aqui se iniciaria uma nova vida.

Curiosamente, Dna. Plácida Dna. Estrela eram devotas donas de casa; o trabalho externo pertencia aos maridos – não porque elas não queriam isso [elas bem que queriam trabalhar], mas eles não “tinham” a mente muito aberta, “preferiam” comprar a ideia do homem provedor. E faziam de tudo para que elas não tivessem esse direito de liberdade. No que diz respeito à criação dos filhos, ambas agiam vetorialmente igual: na mesma intensidade, direção e sentido. Não importava que uma tivesse o triplo de filhos que a outra, eles eram criados e direcionados à instituições religiosas, não havendo nada mais importante na vida delas que Deus – logo, faziam de tudo para que seus filhos vivessem sempre dentro da igreja, não falassem palavrão, tivessem boa conduta ética e que não desviassem em nada seus propósitos.

Ainda sobre a vida de donas de casa, elas pareciam esquecer-se de tudo que não circunscrevesse a família. O agravante entra aqui: elas não consideravam nem mesmo suas próprias existências. Viviam com doação total de energia para a família [filhos e marido] que sequer lembravam que debaixo daquele manto de pele sobre carne existia uma essência humana, que precisava ser nutrida e valorizada.

Durante muito tempo, Dna. Plácida era considerada uma verdadeira mãe e esposa. Suas amigas e seus amigos clericais a considerava uma excelente pessoa, mas não pense que olhavam para ela. Não! Raramente a chamavam de Dna. Plácida, seu nome era, predominantemente, “Esposa do Fulano da Silva“, ou, no máximo, “Mãe dos Meninos”. Ela parecia satisfeita com essa “Divisa honrosa”. Todavia, como numa tempestade, uma hora tudo isso desmoronou. Seu Fulano saiu de casa, arrumou outra Plácida, um pouco mais pálida. Dna. Plácida, que nem concebia a si própria como gente, entrou em depressão, passou por situações de puro amargor. Viu-se como um entulho social, que para nada servia. Passou a olhar-se no espelho como alguém sem valores – seu valor havia pulado a cerca e buscado novos rumos. Ela, que não se conhecia minimamente, rendeu-se à lamentação. Esperou de Deus uma solução, uma saída; parece que Ele ainda não contabilizou o pedido. Esperando por isso ela sofreu, mas, mesmo sofrendo, não aprendeu! Desde a data do incidente, há 15 anos, até hoje, ela não vê razões para existir. Basta um silêncio e a casa vazia para que lágrimas quentes corram sobre sua face fria, abatida e serena, ou plácida. É uma placidez triste, que não pode esconder o quanto de desgosto a vida lhe trouxe. Jamais, em seu tempo de quixaba verde, imaginara que viveria como vive.

Atualmente, nem todos os filhos de Dna. Plácida frequentam a igreja, alguns casaram-se e precisaram se mudar para mais longe; dos que com ela moram, não retribuem sequer em 5% todo aquele cuidado pueril – o que seria uma missão quase impossível. Às vezes se falam, mas não é nada extraordinário. Se não fora a netinha para salpicar alegrias de infância e fazê-la sentir-se alguém – no caso, sentir-se Vó, afinal, seu nome ainda não é Plácida, mas Vovó! – sabe-se lá o que seria de seus dias.

Do outro lado da cidade, Dna. Estrela vivia uma “vida de renúncias” – palavras frequentemente usadas por ela! Ela e Seu “Fulano dos Santos” trabalharam arduamente pela construção de seu ninho de concreto. Abriram mão, segundo dizem, de viagens, luxos e prazeres superficiais – tudo para construírem uma moradia! Como eu disse antes, ela vivia religiosamente a “missão materna” e, juntamente à “missão de esposa devota”, isso “fazia” dela alguém. “Sentia-se” muito bem por esses títulos que recebeu na Terra, não fazendo a menor questão de conhecer a si mesma. Seus filhos cresceram, formaram-se e casaram-se. Pronto, naquele momento ela disse algo surpreendente: “Agora posso morrer! Tudo que pedi para Deus já aconteceu: construí minha casa, criei os meus filhos, eles puderam estudar e casaram-se debaixo da graça de Deus! Tudo que vier será lucro!“. Essas palavras apenas confirmam a ideia de que de fato ela viveu apenas para os outros e não para si. Do contrário, jamais diria que dados esses acontecimentos superficiais sua vida havia sido plenamente vivida, cabendo inclusive a aposentadoria existencial.

Hoje, Dna. Estrela brilha ao lado de Seu Fulano dos Santos. Mais uma vez na história da humanidade uma mulher é bem vista porque seu marido é bem visto. Ela existe também como “esposa do Fulano“, “mãe dos meninos“. Arrisco dizer que se perguntasse a ela quem ela é, diria: “sou mulher, casada, mãe de filhos lindos e educados, obrigada!“. Mas, certamente seguiria sem saber quem ela é, pois nem ela sabe disso! Vale dizer que, se Dna. Plácida “perdeu o chão” depois da separação, Dna. Estrela “fulgura” alegremente uma vida de pura devoção [quiçá para que não tenha o mesmo fim que aquela]. Essa devoção inclui colocar os planos de Seu Fulano dos Santos em primeiro lugar, incluindo não comprar uma coisa de que ela goste caso não seja também do gosto dele; se algo novo for acrescentado à casa, deve-se primeiro passar pela triagem do marido – e geralmente ali mesmo é decidido. Às vezes não sei se seu nome deveria ser Estrela ou Lua. [Em tese]Caberia mais chamá-la de Lua, já que essa [a lua] é que reflete a luz de uma certa estrela. Mas, sendo honesto e otimista, acredito que somos todos “estrelas” – o mal decorre da cegueira espiritual que invisibiliza o potencial Humano, fazendo com que alguns prefiram atuar na Vida como se fossem “luas”. Seria triste dizer que isso é um direito, uma vez que é também uma escolha?

Dna. Estrela leva uma vida “plena, debaixo da luz do Senhor”. Ela afirma que tudo que fez até hoje não passou de uma grande obra divina e que seus caminhos foram alinhados para serem de vitórias. Não raramente ela cantarola em plenos pulmões que “você é um espelho que reflete a imagem do Senhor“… isso, mais uma vez, me daria o “direito” de chamá-la de Lua, mas mantenho-me otimista. De fato, e infelizmente, ela canta sua própria vida nessa música – com um adendo: ela reflete praticamente tudo que possa ser refletido, à exceção de sua própria existência e de seus próprios desejos.

Essas são elas, Dna. Plácida e Dna. Estrela! Representações vivas de muitas outras estrelas plácidas que, podendo brilhar e vibrar a elevadas frequências, contentam-se em morbidamente serem apagadas dia após dia! Mas cuidado! Perceber a vida de Dna. Plácida e de Dna. Estrela como antagônicas – ou seja, que uma ocorre em contrário à outra – seria aceitável apenas se isso fosse fruto de uma leitura rápida e desatenta.

Estrela e Plácida são “donas” apenas no pronome de tratamento, pois na vida real não amam a si, logo não podem dizer que são donas nem de seus sonhos – tratam da vida como no no filme “Central do Brasil”: o que pedirem a elas será escrito na carta. Cada uma é como um papel, o desejo dos outros é o texto – no final, só está escrito ali o que deseja a sociedade alienada, jamais o que palpita em seus corações. Elas, suspeito eu com dores no pensar, não fazem nem ideia de que podem ser algo nessa vida, não assumiram o papel de seres pensantes no que diz respeito às suas próprias vidas. E, se fazem ideia, já desistiram de persegui-las.

Ambas, por não se enxergarem como pessoas capazes de existirem Humanamente, doam-se aos caprichos dos que as cercam. Dna. Plácida já assumiu que não é nada porque nada possui – sente-se tal qual um pacote de células e de substâncias químicas sem maiores funcionalidades. Dna. Estrela, por sua vez, apega-se à matéria de forma tal que planeja reformas perpétuas àquela casinha que construiu logo que chegou à São Paulo; no entanto, tire isso dela que será assumidamente vazia e triste, da mesma forma que já é Dna. Plácida. Elas partilham do mesmo mal, da mesma maldição: da pobreza de sonhos. São incapazes de sonharem uma vida mais Humana, preferem medirem seus valores pelo número de bens adquiridos. Isso é fatal!

Quem vive como elas certamente será produto do meio – mas o será por opção! Enquanto uma sorri, outra chora. O motivo de choros e sorrisos é o mesmo: achar que são o que têm e mostram. Quando, na verdade, poderiam olhar para dentro e descobrirem que a essência Humana é a única coisa que têm como verdadeiramente suas. É como diz o budismo tibetano: “nada que seja seu poderá ser tirado de ti!“. O seu carro, a sua casa, os seus filhos, a sua pele, e qualquer outro dos seus bens podem ser tirados de ti? Então aceite que nunca foram seus! A sua consciência  sim é sua – quem a tiraria de ti senão você mesmo?

Se eu tirasse tudo o que tem Dna. Estrela, ela seria uma pessoa tristemente plácida que se sentiria um entulho social. Por outro lado, se eu desse à Dna. Plácida tudo que lhe falta, seria como uma estrela radiante. Mas nenhuma seria o que realmente podem ser: Humana!

Acredito que você já me entendeu! Aquilo que faz brilhar Dna. Estrela é exatamente o que apaga Dna. Plácida! Doaram-se tanto, que hoje pegam empréstimos dos outros; não aprenderam [e parecem não querer aprender] que o potencial delas está dentro, e não fora! Como você deve ter observado, isso não passa do que eu chamei no começo do texto de Fenótipo Sociológico – ambas apesentam o mesmo “genótipo” (foram “programadas” para não se “enxergarem como Humanas), no entanto os fenótipos mostram-se diferentes, uma vez que o meio onde vivem também é diferente.

Quando julgamos como ruim determinada situação em outra pessoa, não estaríamos, ocasionalmente, apresentando um fenótipo sociológico?

O que estamos fazendo de nós?

O que/quem define nossos valores?

Para onde apontamos nossos olhares?

Queremos ser ou ter? Servir ou ser servidos?

Queremos algo?

 

#VocêJáParouParaPensar?


São Paulo, Junho de 2018


Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

 

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