minuto dois
começam os movimentos lentos, como se quisessem varrer uma superfície inteira;
sorrateiramente seus olhos percorriam todo o território,
vasculhavam todos os cantos, sabia que esquecera de algo,
sabia que nenhum escaneamento poderia trazer à vista o que o tempo talhou
e o que de forma bastante singela lhe escondeu;
Ali, bem em frente ao espelho, num silêncio gritante,
olhava-se e se perguntava de onde vinha aquela aparente mudança,
que caminhão trouxera aquilo que se estacionava em frente ao reflexo plano e cujos raios de luz transformavam em imagem;
A pela não era mais da mesma maneira,
os olhos cujos cantos encurvara-se, pesados, não se abriam como antes,
seu brilho ora radiante suplantava um quê de mistério,
os rios que deles escorrem – e que, negando a física, não era simétrico – já não são tão quentes como antes;
Ali estava Koniec, olhando o que de si havia feito com o que lhe fizeram;
passou seu segundo minuto assim, entrando por portas e mais portas,
mas sempre guiando-se por um fio invisível, como se fora Theseu ajudado por Ariadne na luta contra o Minotauro;
em semelhante analogia, Koniec também saiu do labirinto após vencer Sued e “matá-lo a sangue frio”;
mas não foi só do labirinto de Sued que se livrou, foi também da imagem que construíra de si para si e para os demais;
Não só, mas na companhia dos poetas mortos, rompera laços bem amarrados;
rejeitava dia após dia aquilo que amara noite após noite,
cada ponto visto no espelho era um detalhe que se mostrava novo,
cada detalhe, um abandono,
e a cada abandono, um abraço no desconhecido.
Os segundos foram os mesmos de sempre,
mas a intensidade…!
Há quem diga não ter visto nada,
que sequer dera-se conta da lagarta virando crisálida e, dessa, a borboleta…
seria desatenção?
Talvez sim…
Mas talvez não também, já que nem mesmo Koniec se percebera num processo complexo,
num silêncio de uma introspecção meticulosa,
da qual a percepção se dava ali, no espelho,
no justo instante em que sua consciência escaneava a planície reflexiva
e denunciava que algo, então, soía de um jeito que não o era antes. Mudanças…
minuto um
Antes, quando pouco se percebia onde começava e onde terminava a placa refletora,
quando apenas se via por se ver,
sorria-se por sorrir,
culpava-se sem saber,
ali mesmo, das janelas da mente,
num olhar fixo – sem movimento – parado em si,
dentro de algo, mas fora de tudo;
estava a observar quem era, mas sem saber o que quisera.
O primeiro minuto foi importante ao menos para formar na mente imberbe uma imagem de si;
essa tal primeira impressão era bastante pedida, aclamada; perdida, camuflada;
era ela que, dentro do manual do mundo, desenharia a batom um rosto no espelho,
uma face pronta, desejada ser imutável,
uma cabeça sem cérebro,
um cérebro sem cabeça,
um olho sem vida,
ou, se ficar assim mais claro: uma vida sem olho.
Mudanças?
No primeiro minuto era apenas contemplação,
achara tudo natural,
mas tão natural, tão natural,
que qualquer questionamento seria rechaçado,
excomungado, descreditado, lançado fora imediatamente.
Era preciso mais tempo de observação,
era preciso mais paciência,
mais paciência…
muita paciência.
Contudo, como não esperava por nada,
muito menos por mudanças, foi-lhe absurdamente fácil ter paciência,
já que não esperava por coisa alguma, a paciência era-lhe uma virtude,
era um ser virtuoso por nada fazer,
apenas contemplava e achava que, por isso, estava tudo bem.
Koniec “acreditava que a vida era bela, e porque acreditava, ela o era“.
minuto três
Embora já não lhe soía como antes, o que ali via tornava-se ainda mais distorcido;
o terceiro minuto no espelho foi assim, cada segundo marcado por uma observação que coçava, mas que não se sabia onde;
distorcido, sim, mas esperado.
O notório estava ali, em sua frente, aos seus olhos tristes e caídos,
no escorrer do suor,
no lento afrouxar do riso,
no arrefecimento das volumosas linhas sobre as suas janelas,
no tintilar das pestanas.
Estava como está para você, leitor e leitora:
compreensível, mas nem tanto,
inteligível, mas de sentido não tão óbvio…
é assim mesmo, antes de olhar bem e juntar os pontos não há desenho.
Olhava para o espelho, olhava para fora dele,
olhava para o seu reflexo no espelho,
olhava para a solidez do quarto,
assim desenrolava-se a vista, ora aqui, ora ali,
mas sempre olhando, varrendo, escaneando.
“Espelho, espelho meu, existe alguém mais […] do que eu?”
voz nenhuma se ouvia,
apenas imagens se alternavam,
ora espelho,
ora quarto,
ora em si,
ora no todo;
E, aos poucos, tudo que era tornava a não ser.
E o feito se desfazia em fatos.
Aos poucos foi se percebendo,
vendo-se melhor,
entendendo onde estava,
fazia barulho na Terra de Santa Cruz,
subia o mormaço podre de uma nação que amava as imagens dos espelhos,
que idolatrava o que se mostrava, sem se questionar jamais.
… 2 minutos e 59 segundos…
Olhava no relógio pendurado à parede,
o primeiro minuto passou cheio,
depois o segundo, num tom de espanto,
o terceiro se foi num compilado de aberrações,
destruições,
reconstruções,
crescimento que também era míngua.
Lá caminhava o ponteiro para o quarto minuto…
Apesar da impressão que você [leitor e leitora com pressa] possa ter criado aí em suas janelas,
Koniec estava de certa forma em satisfação com o que mostrava aquele reflexo,
sabia que seria naquele fluxo descontínuo,
naquela modificação que se estendia ao acaso,
no acaso que não fazia caso,
“é inconstante, sem liberdade, sem escolhas reais, apenas o é“
e, segundo aprendera com Clarice, “já que sou, o jeito é ser“.
* * *
Koniec tinha algo nas mãos,
algo amarrado pelos “fios de Ariadne“: questionamentos;
era algo suavemente rígido,
geladamente candente,
vaporosamente tátil,
obscuramente preciso
e vivamente aterrador.
Dois passos para trás:
“de longe, vê-se o alto”, diziam os romanos.
afastou-se por um momento muito rápido,
deixou ir tudo que podia,
deixou-se ir como soía,
afastou-se disso, daquilo, desses, daquelas;
solidão, não; solitude.
o ponteiro maior de todos contou apenas mais dezoito tics desde que o terceiro minuto se principiara…
[…] sublime estilhaçar do espelho,
…
complexos fragmentos complicados,
reflexos multiplicados, centenas deles,
todos espalhados no quarto,
todos refletindo aleatoriamente apenas parte de Koniec.
Assim, em serenidade, com tranquilidade, disse que não mais quisera observar aquela reflexão especular,
não mais naquele momento,
não mais naquele lugar,
naquele minuto.
Koniec deixou o quarto num instante,
numa calmaria,
no silêncio mais vivo de todos,
no desabrochar do lótus em plena primavera,
no desejo latente,
na realização candente;
fechou bem a porta ao sair,
mas seu reflexo permaneceu impresso nos cacos espelhados.
LaGent chegou,
só o que fez foi colar o espelho,
mas a colagem se deu de modo que LaGent acreditava ser o certo.
Foram cento e noventa e oito segundos em frente ao espelho,
pouco mais de três minutos.
* * *
Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: a imagem usada para compôr a capa dessa publicação foi obtida aqui.