O caso
Há um tempo fiz uma compra pela Internet. O produto chegou. Quando abri a caixa, vi esta mensagem deixada pela empresa: “Que Deus te abençoe, Jesus te ama – confie e o mais Ele fará“.

A problematização
Não é o ideal, mas acontece… Há uma crença generalizada de que falar de Deus não tem problema e não ofende, pois é sinônimo de se falar em amor e bondade. Pode “até” ser, para quem acredita nisso – porém, nem todes acreditam. Mas e se – no caso desse bilhete – trocasse “Deus” por “Vishnu” e “Jesus” por “Krishna”? Será que todas as pessoas religiosas leriam a mensagem da mesma forma, com simpatia e doçura? Será que diriam que a empresa estava apenas querendo desejar bênçãos para a sua clientela?

Primeiramente, é importante pensar na normalização que o falar de Deus assumiu em nossa sociedade. Existe um acordo inconsciente trazido pela cultura religiosa cristã de que esse falar sobre Deus é algo que nunca beira o absurdo; em contrapartida, qualquer sussurro que ameace a crença teísta soa imediatamente como uma ofensa a seus seguidores. Alguns indivíduos ateus, inclusive, temem expor suas opiniões em relação à não-crença em Deus, pois pactuam tacitamente desse acordo e – ainda que não percebam – legitimam a ideia de que falar contra a existência divina é no mínimo errado.

Em uma sociedade historicamente construída sobre a base de um cristianismo propagandista, fala-se de Deus o tempo todo; seja no agradecimento após uma compra em lojas – “Que Deus te abençoe”; após uma despedida de família – “Vá com Deus!”; na forma de um “graças a Deus que deu certo!” ou num “Deus me livre!”; ou até mesmo na mensagem que acompanha uma compra feita pela internet. Fala-se de Deus como se fosse universalizada uma crença nessa entidade. Por consequência, quem “ousa” dizer qualquer coisa em contrário destaca-se logo como herege; excomunga-se por livre e espontânea vontade.

A liberdade de culto não é tão bem clara quanto se supõe a Constituição Federal; talvez porque, quando dizem que todas as formas de manifestações religiosas devem ser respeitadas e asseguradas, estão pressupondo que seja lá qual for a crença, que seja alguma – não nenhuma, não o ateísmo. A polidez com que se exige o pronunciamento de tudo relacionado ao Deus cristão é exageradamente totalitária e pretensiosa. Não faltam adjetivos para menosprezar religiões de matriz africana – pelo contrário, na falta de palavras, usa-se da própria violência física e destroem-se com toda fúria os locais de cultos desses grupos religiosos – mais uma vez, a teoria constitucional não corresponde à prática humana cristã e benevolente.

Em outros contextos, o descaso é tamanho que, não bastasse dialogar com o mesmo Deus e com o mesmo livro sagrado (em tese, a Bíblia), dever-se-ia falar exatamente a mesma coisa, do contrário, também é considerado um erro. Testemunhas de Jeová são corriqueiramente consideradas inconvenientes por saírem de porta em porta dizendo que existe uma nova proposta de salvação para a humanidade. Por esse motivo,  e considerando minha análise pessoal, religiosos protestantes (sobretudo pentecostais, neopentecostais e presbiterianos) desdenham da ideia de que o mundo será o paraíso, e não exatamente aquele céu fastioso proposto por João – dizem.

Não se trata aqui de dizer que a religião é um problema sociocultural, embora eu realmente creia que o seja. Trata-se, sobretudo, de reconhecer o quanto o discurso religioso é tão opressor quanto se propõe acolhedor. Dito em outras palavras, ao mesmo tempo que se espera atingir um maior número de pecadoresespalhando a semente da fé purificadora” e convertendo-lhes à verdade máxima, faz-se também uma disseminação forçosa de uma ideia não necessariamente aceita por todes. Para além disso, está o que ressaltei acima: essa opressão discursiva é tão engendrada no meio social que realmente tem-se a sensação de que não se pode falar mal de Deus; acredita-se que uma fala que questione o cristianismo deve ser imediatamente combatida, não porque isso seja intolerância religiosa e que o respeito deve ser o bem máximo da humanidade, mas porque fala-se mal do Deus. Aceita-se – e evidentemente sem nenhum receio executa-se – todo tipo de discriminação no tocante a qualquer outra crença; mas não contra o supremo cristianismo. Este deve estar no ápice do que se entende por perfeição.

“A Bíblia é um guia da moralidade entre membros do mesmo grupo, contendo instruções para o genocídio, para a escravização de forasteiros e para a dominação do mundo. Mas a Bíblia não é malévola devido a seus objetivos ou à glorificação do assassinato, da crueldade e do estupro. Muitas obras antigas fazem a mesma coisa — a Ilíada, as sagas islandesas, as lendas dos sírios da Antiguidade ou as inscrições dos maias, por exemplo. Mas ninguém sai por aí vendendo a Ilíada como base da moralidade. Aí é que está o problema. A Bíblia é vendida, e comprada, como um guia para orientar a vida das pessoas. E é, de longe, o maior best-seller de todos os tempos.”
[E não é que a fala de John Hartung me parece muito sensata? Faz todo sentido.]

Mas o cristianismo é cego ao mesmo tempo que propõe a libertação do antigo homem. É egoísta tanto quanto se diz empático. É degeneração em seu estado conceitual e prático mais avançado tanto quanto são os demais monoteísmos. Seria pedante mencionar os acontecimentos que tem a fé judaico-cristã como protagonista histórica – e acrescente aqui a fé islâmica. Falando especificamente do cristianismo, massacres na Idade Média – como as cruzadas promovidas também em nome dessa fé -; o genocídio indígena¹ principalmente nas Américas; a justificação da escravidão de africanos a partir da religião; fogueiras que devoravam pessoas vivas por negaram alguns princípios ditos divinos; entre outros inúmeros eventos, mostram como se construiu a ideia de que há uma supremacia inconsciente acerca da potência de um Deus. Embora digam que certos assuntos não se discutem, ao falar de política, de futebol e de cinema, as pessoas empregam todos os tipos de tons e palavras – desde palavrões a elogios polidos. No entanto, quando a questão é Deus, e desde que seja um deus específico, qualquer mostra de insatisfação será motivo de condenação simbólica.

A ideia de que eu defendo a “liberdade” de expressão não deve ser associada ao fato de eu não poder criticar religiões. Seria justamente o oposto. Todas as religiões devem ser criticadas, e todas as pessoas devem possuir o direito de fazê-lo tanto quanto de se defender das críticas, caso queiram. Poder criticar é uma questão de expressão. Assim, o problema que identifico, e ao qual tenho repulsa, é o de soar mal qualquer pronunciamento contrário àquele que inclua uma ideia socialmente construída como ideal. Ressalto, ainda, que toda crítica deve ser argumentada e exposta sem desejar um absolutismo sobre a verdade, sem destituir a dignidade de quem crê. Por isso que este Blog é um espaço no qual eu exponho meus pontos de vista; fazê-lo aqui é dar-me a oportunidade de exercer meu senso de observação, de crítica e de argumentação acerca do que me parecer necessário; quem porventura ler os meus textos – assim espero – o fará por sua própria vontade/curiosidade; jamais por obrigação ou imposição. Criticar o que escrevo, dizer que não concorda e que acredita que estou equivocado nisso ou naquilo, é não apenas um direito de quem me lê, mas um convite o qual deixo aqui desde sempre.

A religião […] tem determinadas idéias em seu cerne que denominamos sagradas, santas, algo assim. O que isso significa é: “Essa é uma ideia ou uma noção sobre a qual você não pode falar mal; simplesmente não pode. Por que não? Porque não, e pronto!”. Se alguém vota em um partido com o qual você não concorda, você pode discutir sobre isso quanto quiser; todo mundo terá um argumento, mas ninguém vai se sentir ofendido. Se alguém acha que os impostos devem subir ou baixar, você pode ter uma discussão sobre isso. Mas, se alguém disser: “Não posso apertar o interruptor da luz no sábado”, você diz: “Eu respeito isso”.
Como é possível que seja perfeitamente legítimo apoiar o Partido Trabalhista ou o Partido Conservador, republicanos ou democratas, um ou outro modelo econômico, o Macintosh e não o Windows — mas não ter uma opinião sobre como o universo começou, sobre quem criou o universo […] não, isso é sagrado? […] Estamos acostumados a não questionar idéias religiosas, mas é muito interessante como Richard [Dawkins] causa furor quando o faz! Todo mundo fica absolutamente louco, porque não se pode falar dessas coisas. Mas, quando se analisa racionalmente, não há nenhuma razão para que essas idéias não estejam tão sujeitas a debate quanto quaisquer outras, exceto o fato de que, de alguma forma, concordamos entre nós que elas não devem estar.²

O problema todo foi o escrito do bilhete de “Que Deus te abençoe”? Obviamente que não! Esse bilhete já foi para reciclagem faz tempo. A questão aqui é a naturalização e a normalidade que fazem passar despercebida a ideia não da naturalidade do dizer cristão ali embutido, mas a ausência de uma problematização do ato.

*  *  *

Ao contrário do que talvez possam pensar, quando eu abri a embalagem e li esse bilhete infeliz, apenas dei risada e fiz esse post (originalmente e com pouquíssimas linhas – confira a Nota “a” no final dessa publicação) – hoje decidi expandir o assunto aqui no Blog. Fica, portanto, essa observação: nem todas as pessoas compartilham da mesma crença religiosa; algumas nem religião têm, enquanto outras são ateias. E está “tudo bem” se for assim. Que tal trocar a próxima mensagem por um “Que você tenha uma ótima semana”? Religiosos e ateus certamente que compartilhariam dessa sugestão.

 

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vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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#VocêJáParouParaPensar?

 


NOTAS:
(a)
Hoje não utilizo mais o Facebook, no entanto, o texto tal como foi originalmente publicado naquela rede social é exatamente como se lê abaixo:

Fiz uma compra pela Internet.
O produto chegou.
Quando abri a caixa, vi esta mensagem deixada pelo vendedor: “Que Deus te abençoe, Jesus te ama”
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Não é o ideal, mas acontece… Há uma crença generalizada de que falar de Deus não tem problema e não ofende, pois é amor e bondade. Pode até ser [para quem acredita nisso – porém, nem todos acreditam]. Mas e se trocasse ‘Deus’ por ” Zeus” e ‘Jesus’ por “Atena”? Será que todas as pessoas religiosas leriam a mensagem da mesma forma, com simpatia e doçura? #VocêJáParouParaPensar?

Particularmente, eu li, dei risada e fiz esse post – perdoem-me, não me controlei na hora. Mas fica essa observação. Nem todas as pessoas compartilham da mesma crença religiosa; algumas nem religião têm, enquanto outras são ateias. E está tudo bem se for assim.
Que tal trocar a próxima mensagem por um “Que você tenha uma ótima semana”?
Melhor ainda seria algo como “Viva a Educação Brasileira!”.
#ficaadica
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PS: Andreone sendo Andreone.

31 de maio de 2019, 21:56


(b) A imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi a mesma publicada à época no Facebook, e é uma foto do bilhete que recebi junto com o produto que comprei.

(c) Notas explicativas sobrescritas:
(¹
certa vez, lendo uma dissertação de mestrado defendida na Universidade de Coimbra e que tratava da Eugenia Indígena, logo em seu início havia um agradecimento do autor a
Deus e à Nossa Senhora – justamente entidades imaginadas que moveram o processo de expansão e colonização da América – especificamente do que hoje chamamos de Brasil, as quais têm um impacto inegável no extermínio de milhares de índios. Posso estar exagerando, mas achei isso uma “ironia da vida”.
(²) Discurso improvisado por Douglas Adams, que ele fez em Cambridge pouco antes de morrer. Esse trecho é citado no livro “Deus, um delírio“, de Richard Dawkins.