Parágrafo (9999)0
É sempre tardia a constatação. De fato, isso não poderia ser diferente – não se constata algo que sequer aconteceu; no máximo, e com um olhar esquisito, pode-se prever o inacabado. E a primeira constatação aqui é esta: não se morre apenas quando se deixa de funcionar enquanto um sistema biológico. A morte pode vir antes mesmo que a vida se esvaneça; antes mesmo que “se dissolva a força dos músculos“, como dizia Homero. Nesse ponto, espero não ter que dizer com clareza que, supunha você ou não, a morte pode anteceder a própria morte. Logo, também é possível morrer e estar vivo, simultaneamente. Dessa forma, e não de outra, não há ressalvas quanto a viver estando morto. E isto se destaca nessa introdução, e que não se dever deixar, jamais, de ser considerado: alguém pode morrer muito antes de estar morto; e ainda assim prosseguir vivo. Mas se bem me questiono, ou se mal me pergunto, o que é viver? O que é estar vivo?
Parágrafo [(¼)·8]
Vivos são aqueles corpos cujas células respiram e em cujos vasos as hemácias transportam oxigênio? Viver é existir? Vivo também é quem tem a capacidade animal de, além de existir, saber-se existente? Talvez seja isso; mas não apenas isso – uma vez que seria miserável se essa pequenez de eventos definisse o viver. Inúmeras outras formas de vida não realizam respiração aeróbica e não possuem hemácias; em muitos organismos vivos não se é conhecido o processo introspectivo de existencialismo e tão pouco sabemos se eles próprios se sabem enquanto existentes num conjunto de outros seres. Pois bem, no que tange a espécie humana, há quem se alegre com o dizer de que vivo é aquele ser humano que, para além dessas burocracias, é capaz de criar abstrações tão poderosas em suas mentes que conseguem, inclusive, sonhar com um dia que ainda não existe. Viver, aqui, seria ser capaz de sonhar. Morre-se, então, quando se deixa de sonhar? Tudo indica que ser capaz de sonhar, de planejar toda uma existência naturalmente vazia e sem sentido, de rechear os dias de esperança e as noites de desesperos seria, muito provavelmente, o motor primevo de uma vida humanizada. “Sonhar é viver, viver é sonhar”: muita gente crê nisso sem se perguntar o porquê. A humanidade é feita de sonhos travestidos – você é um sonho irrealizado de alguém, mas que, na impossibilidade de ser o que originalmente fora desenhado, é travestido de fantasia. A frieza, pressuponho, começa a mostrar-se nas linhas que seguem… Mas não custa perguntar o que é, então, o sonho? Que é sonhar?
Parágrafo √9
Sonhar é fingir. É mentir para si, enganar-se diariamente. Sonho é só mais um poderoso conceito, recebido com a mais bela simpatia pelos povos que, não dando conta da realidade objetiva de suas vidas animais, aderiram ao encanto de poder distanciar de si o atual estado de insignificância projetando-o num futuro tão distante quanto melhor for a elaboração de seus sonhos. Mas sonhar é também uma ferramenta. Quem sonha constrói-se enquanto ser que permanece vivo num cálido estado de vida. Se não fosse o sonho, o que seria das civilizações? Como as religiões degeneradas sustentariam os fiéis, desde os mais desconfiados até os mais desesperados, diante de uma crença que é puro sonho? Sonho, esse, irrealizável. Sonhos são egoístas por natureza. Humanos são egoístas por construção. Quando os dois se combinam, o resultado é a humanização do Homo sapiens. Se saímos um dia das savanas africanas e nos estabelecemos no mundo todo foi porque a capacidade de sonhar abstrações e pensar no amanhã se tornou uma condição sociocultural tão forte que passamos a nos organizar em torno dela.
Parágrafo [(¼)·8]²
Quem sonha, sonha seu próprio sonho – e todo prazer oriundo dele é um prazer que sai de “a“ e volta para “a“. Não existe sonho altruísta; na melhor das hipóteses, a realização de um sonho egoísta pode servir de ajuda a outrem, mas antes serve de alimentação puramente narcísica. Qual é o seu maior sonho na vida? Esse sonho inclui quem? E se esse sonho, certamente mesquinho e de alcance reduzido, fosse estendido a toda a humanidade, ele seguiria sendo tão plausível quanto o é para o seu pequeno espaço existencial? Mas isso não poderia ser de outra forma? Como saber? Aparentemente, sonhar é manter viva não só uma estrutura biológica (o ‘seu’ corpo), mas uma rede de outros corpos. Sonhar é paradoxal: sonha-se de forma egoísta, cada qual a sua maneira e desespero; no entanto, sonhos somados e alimentados em conjunto constroem sociedades tão resistentes que capturam cada vez mais membros sapiens para dentro de seu invólucro. Tudo isso – e muito mais – porque sonhar faz bem e dá uma sensação de que sonhando vive-se de fato.
Parágrafo (25÷√25)
Como sustentar um nacionalismo, uma crença religiosa ou uma cultura se não existir o sonho de que a “união faz a força“? E o sonho de ser livre? Quem seria capaz de – em sã consciência – acreditar-se livre, de ser dominante sobre suas escolhas, de se imaginar autor absoluto de seus atos? Quem? É simples: quem sonha. Se se deixa de sonhar, deixa-se também de projetar conceitos pérfidos e avassaladores sobre a sua existência. Por outro lado, se você não faz isso, quem garante que estará vivendo? Que é, num ponto de vista que inverte a cena, capaz de dizer-se não-sonhador(a)? Existe alguém que, na esperança de não se prender ao emaranhado de conceitos criados de forma transgeracional, seja capaz de não sonhar? Se sonhar é fixar e idealizar uma previsão de forma mais clara, qualquer fixação seria sonho: até mesmo a ideia de nada fixar como previsível, planejado ou possível. Todos e todas sonhamos. Todos e todas vivemos. Todos e todas somos produtos de um vazio que intenta com certo sucesso tornar coeso o grupamento de Homo sapiens ao redor do mundo. Não obstante, ainda que vivos, alguns indivíduos morrem lentamente uma morte que nada tem a ver com deixar de viver, mas de existir.
Parágrafo SEIS
Pessoas de pouco vocabulário confundem com facilidade o determinismo com os limites aos quais somos impostos por definição. Como queiram, não é o caso de eu explicá-los aqui. Todavia, constatando apressadamente que o viver humano ultrapassa os limites biológicos do viver real; que estar vivo enquanto “ser” é ser capaz de sonhar; e que, por sequência, sonhar é iludir-se; diga-me: quem realmente vive com vida e quem nunca viveu mas continua por aí? Pessoas que não têm a capacidade neurológica de se perceberem em sociedade, que não conseguem tomar decisões e que não têm senso de julgamento por razões patológicas, são vivas? Elas sonham? Quem se encontra em coma profundo, sem se saber existente, é apenas um ser inanimado, um animal humano desumanizado que jaz sobre um leito? Qual o limite entre o viver e o morrer? Quando alguém diz que perdeu as esperanças – e supondo honesta sua fala -, essa pessoa morreu ou está em vias de? E se eu quiser não sonhar mais por perceber que sonhos são furadas no plano da existência? Que fazer? […] A vida, em si, é uma invenção que adoça a existência humana. A natureza não se sabe por natureza; rios não tem consciência de si; astros seguem suas órbitas sem jamais necessitar de cálculos matemáticos; cachorros dormem e acordam como se estivessem sempre no mesmo dia – o futuro não lhes é dado por conceito. Apenas nós, humanos, desejamos um controle sobre todas as coisas. Queremos saber de tudo, da forma mais clara e controlada possível. Queremos seguir sonhando sem grandes possibilidades de equívocos – embora estes sejam inevitáveis. Vivemos uma vida construída, forjamos uma natureza humana, inventamos criaturas no além e damos a elas nossos desejos. Tudo uma ilusão que nos constitui seres pensantes. Outra vez: a vida não existe senão na mente do ser humano; o mundo não existe senão em nossos conceitos; o nada pode ser inclusive tudo, bem como o tudo, nada. O que é é, e não precisa de nomes para ser – mas nós não conseguiríamos ser o que somos se não fôssemos também sonhadores alucinados. Uma espécie insignificante só se tornaria humana se lançasse mão de sonhos para se significar – e fez isso milenarmente. […] Por fim, numa ótica fria e distante, ninguém está vivo, mas crer-se vivente e sonhar-se gente é negar-se bicho e fazer-se humano – e essa é a maior constatação que aqui repousa. Mas não se preocupe muito com isso, são apenas seis parágrafos estranhos sobre viver, morrer e sonhar. Nada além […]
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
Escrito dia 20 de outubro de 2019.
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Créditos da imagem: A imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtidas aqui.