Pensar no significado de sujeito é um exercício que pode acontecer por diferentes caminhos, por variados percursos sociais e históricos e por complexos modos conceituais que, sejam eles quais forem, certamente que não garantirão uma universalidade. Entretanto, e sem o objetivo de homogeneizar o debates, pode-se pensar em um sujeito humano que surge na hora mesma que ele se constrói como o sujeito de saberes, termo que utilizo aqui para dialogar brevemente sobre como a sociologia e a psicologia precisam se entender, mas, ainda que isso não ocorra harmonicamente, o sujeito está aí, posto à prova diariamente em sua construção.
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Se usarmos as palavras de Michel Foucault, nossa perspectiva sobre o nascimento do ser humano torna-se um tanto quanto menos nublada que aquelas circulantes em sua época. Todavia, permanecem envoltas numa nuvem que permite interpretações e variações de pontos de vistas, uma vez que, nas palavras do pensador
“na medida, porém, em que as coisas giram sobre si mesmas, reclamando para seu devir não mais que o princípio de sua inteligibilidade e abandonando o espaço da representação, o homem, por seu turno, entra, e pela primeira vez, no campo do saber ocidental. Estranhamente, o homem — cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a mais velha busca desde Sócrates — não é, sem dúvida, nada mais que uma certa brecha na ordem das coisas, uma configuração, em todo o caso, desenhada pela disposição nova que ele assumiu recentemente no saber. Daí nasceram todas as quimeras dos novos humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia”, entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem. Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber, e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova. […]*
[…] O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do pensamento clássico — então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia”.**²
Nesse sentido, nota-se a sugestão de que o ser humano, enquanto um ser que produz saberes e que por esses saberes também é produzido, nasce logo que a aurora do pensamento clássico surge; nasce quando – ao menos no Ocidente – o saber assume um lugar central no modo de vida em sociedade e que, “serpentinamente” ou não, delineia as estruturas sociais, os comportamentos de seus participantes e, como em um processo autocatalítico, o humano volta-se para o próprio saber construído e dele gera um novo saber. Assim, talvez não seja tão ousado dizer que o ser humano é uma invenção recente, uma invenção não simplesmente de si, mas daquilo que ele mesmo produz; torna-se humano quem compreende as facetas desses saberes, quem percebe que os conceitos constroem os mais variados tabus sobre os quais a humanidade percorrerá o seu trajeto; que saberes formam privilégios – verdadeiras ilhas conceituais. Não menos importantes, as subjetividades, os componentes psicológicos, os sentimentos e as emoções certamente que figuram nesse movimento social, certamente que deslizam sobre o tecido estendido sobre o que se chama de sociedade, e emaranham-se de modo tal a formar uma trama de conceitos e ideologias que, uma vez na sociedade, o Homo sapiens se torna humano, e o humanizado torna-se sujeito. Mas não um sujeito qualquer – sem identidade, sem logotipo ou sem coordenadas. Antes, nasce aí como que um sujeito de saberes, um sujeito que, para pertencer ao meio em que se encontra deve sujeitar-se, deve incorporar em si e para si as táticas silenciosas de um sistema invisível, logo, subjetivo; mas que provoca transformações práticas, logo, objetivas.
Theodor W. Adorno afirma que a existência de um componente subjetivo chamado supereu é notória; e arriscamos dizer que ela funciona como um componente que mensura a moralidade e, quando não, interfere na percepção de sociedade. A existência de um componente julgador, capaz de dar forma a um código moralizante (em outras palavras, à sustentação de tabus) implica na necessidade de uma homogeneização de modus operandi – é preciso que haja estabilidade social para que um sistema composto por seres plurais possa existir. E é aqui que as produções de saberes e os tabus entram como ferramentas num jogo de poderes, em relações que ocorrem em direções diversas, atravessando desde classes sociais mais privilegiadas até a menos privilegiadas, pois as costura numa rede de dependência mútua. Essa rede é também uma rede de colaboração, que produz identidades das quais espera-se que a maior parte dos indivíduos pertençam, que constrói nestes a capacidade de serem sujeitos. Isso porque, ao lançarem mão de identidades, marcas e tabus, assujeitam-se, num processo que se utiliza de componentes importantes, os quais sedimentam-se no sujeito na medida em que este é construído. E esse ser construído precisa colaborar para manter-se sujeitado. Nessa linha, Adorno menciona o medo como um motivo objetivo da racionalidade objetiva, partícipe do processo de pertencimento. Em suas palavras, “o medo é mediado”.
“Quem não se comporta segundo as regras econômicas, hoje em dia raramente naufraga imediatamente, mas no horizonte delineia-se o rebaixamento socioeconômico. Torna-se visível o caminho para o associal, para o criminoso: a recusa de colaborar torna torna suspeito e expõe à vingança social quem não precisa ainda passar fome e dormir sob pontes. O medo [Angst] de ser excluído, a sanção social do comportamento econômico, internalizou-se há muito através de outros tabus, sedimentando-se no indivíduo. Tal medo transformou-se historicamente em segunda natureza – não por acaso “existência” significa, no uso linguístico filosoficamente não deteriorado, tanto a existência natural quanto a possibilidade de autopreservação no processo econômico.
O supereu, a instância da consciência moral, não apenas coloca perante os olhos do indivíduo o que é proscrito socialmente como o mal em si, mas também mescla irracionalmente o medo arcaico de aniquilação física com o medo muito posterior de não pertencer de não mais pertencer ao conjunto social, que abraça os seres humanos em vez da natureza. Este medo social, alimentado por fontes atávicas e repetidamente bastante exagerado, mas que novamente pode a todo momento se transformar em medo real, acumulou uma força tal que já deveria ser um herói moral quem se livra dele, mesmo quando discerne seu caráter delirante.”
Ainda, segundo Adorno, o apego humano aos bens materiais e imateriais construídos pela dita civilização, sua profunda necessidade de manter-se dentro de um sistema normativo que sustenta comportamentos por vezes questionáveis do ponto de vista prático, não surgem como que natural e espontaneamente. Antes, e tendo em vista a noção de que mudanças bruscas são uma ameaça a estabilidade, tais atitudes de se agarrar desesperadamente a esses construtos socioculturais têm sua base na insistente e forçosa atuação dos meios de comunicação que incutem na mente dos sujeitos que devem a todo custo permanecer na linha que lhes foi traçada para que sigam sendo sujeitos de saberes.
Nosso palpite é de que há, no mínimo, três maneiras possíveis e recorrentes de existir em sociedade: (I) sendo um indivíduo que absorve (ou que é absorvido) pelos processos de retroalimentação dos saberes vigentes e que neles se transforma autocataliticamente em um sujeito de saberes, pertencendo rigorosa e irracionalmente ao meio social em que está posto; (II) rejeitando determinadas formas de saberes e elegendo outra, gerando, portanto, divergências e instabilidades sociais, mas que ainda assim atuam dentro de um processo de “evolução” social [evolução meramente enquanto mudança] ou, ainda, (III), sendo o indivíduo que será socialmente negado a existir. Será um a-sujeito, aquele ser para o qual não lhe é permitido existir sob o mesmo julgo que a maioria, que não pode sequer partilhar dos mesmos saberes vigentes nem dos mesmos espaços geográficos. Seus corpos não podem ser classificados como portadores de sujeitos de saberes. Estes compõem o que talvez se chame de minoria social, mas que na história talvez já receberam o nome de “desumanos”, “animais”, “sem alma”.
Vale pensar que o projeto que trilha o terceiro tipo de existir em sociedade é alimentado necessariamente pelos dois primeiros tipos. E os escravos – do período pré-clássico e clássico, bem como a população negra (a exemplo a do Brasil) do período colonial e a contemporânea são, ao mesmo mesmo tempo a que resiste (existência do tipo II), a que é indesejada (existência tipo III). Seja como for, seja dentro do todo social, seja dentro de cada modo de existência, o sujeito de saberes ainda existe: mesmo que seu saber não seja aceito pelo conjunto maior de saberes, ele é aceito em um micro universo, dentro do todo. O humano que não compartilha saber do mundo externo e interno consigo e com o seu entorno, talvez não se saiba sujeito; talvez não se perceba ao ponto de se individualizar. E, talvez não existe no mundo de conceitos.
É, assim, nesse movimento que se concatena aos modos de existência humana, que se produz em suas reproduções que se faz o sujeito de saberes. Todavia, quando essa forma de produção deixar de acontecer, quando uma nova maneira passar a vigorar, esse sujeito lembrará das palavras de Foucault, e possivelmente se desvanecerá, “como, na orla do mar, um rosto na areia”.
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.; que se chama “Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo”, um quadro do pintor espanhol Salvador Dalí, datado de 1943.
ADORNO, Theodor W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In:__________ Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Tradução: Verlaine Freitas. São Paulo: ed. Unesp, pp. 71-127. (Originalmente publicado em 1955)
CROCHIK, José Leon. T.W. Adorno e a psicologia social. Psicol. Soc. [online]. 2008, vol.20, n.2 [cited 2020-08-20], pp.297-305. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822008000200017&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1807-0310. https://doi.org/10.1590/S0102-71822008000200017
FOUCAULT, Michel. (1966). As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas. Martins Fontes, São paulo, 2000 [(*) página XIX, do prefácio; (**) página 536].