O presente ensaio tem por objetivo analisar aspectos existenciais que se destacam no filme “Coringa” (Joker – em inglês), do diretor Todd Phillips, lançado em 2019. Para tanto, alguns modos conceituais serão utilizados, para que a interpretação aqui esteja dentro de algumas áreas do conhecimento que oferecem suporte para tal. Nesse sentido, a Psiquiatria, a Psicologia, a Psicanálise e a Filosofia serão as que mais se mostrarão como ferramentas nesse percurso. Mas lembre-se, isso é um devaneio.

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Como se pode verificar logo na descrição oficial, o filme “mostra um homem lutando para se integrar à sociedade despedaçada de Gotham. Trabalhando como palhaço durante o dia, ele tenta a sorte como comediante de stand-up à noite… mas descobre que a piada é sempre ele mesmo. Preso em uma existência cíclica, oscilando entre a realidade e a loucura, Arthur toma uma decisão equivocada que causa uma reação em cadeia, com consequências cada vez mais graves e letais, nesta exploração ousada do personagem”.

Iniciando pelo ponto de vista psiquiátrico, alguns especialistas apontam para um conjunto de síndromes que o personagem [Arthur Fleck] apresenta e que têm implicações em sua vida psicossocial. Segundo Antônio Egídio Nardi, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Academia Nacional de Medicina (ANM), “o personagem apresenta sinais de personalidade esquizoide e tem depressão; ainda assim, é preciso deixar claro que o filme não é engajado em vencer o preconceito contra as doenças mentais e tampouco é perigoso. É o que é: apenas uma ficção e não há um diagnóstico na psiquiatria para o personagem.” Nardi acrescenta que “O nível de transtorno psicológico que gera a deterioração do indivíduo, como o emagrecimento exagerado e os vícios [o personagem fuma durante todo o filme] é raro, mas possível. Já o volume de violência é incomum para qualquer transtorno psiquiátrico”.

Nesse contexto, vale chamar a atenção para o fato de o filme fazer um percurso que não acompanha necessariamente aqueles observados no cinema tradicional que envolvem super-heróis e vilões. Ao contrário do que se está acostumado nas grandes narrativas, em Coringa a estória se desenvolve em torno do próprio Arthur, que é protagonista de suas ações em todo o filme. Mais que isso, o tipo de vilão representado por Arthur é construído ao longo da trama cinematográfica, a qual demonstra no desenvolvimento do filme que Arthur vai criando e formando uma consciência de si na medida mesma em que toma consciência de seu lugar na sociedade e, principalmente, da sua condição como está posto nesse conjunto.

Crédito da imagem: aqui.

A própria caracterização do personagem como um palhaço serve de metáfora para a “crítica social livre”. Tal metáfora abriga em si a ideia de que, sendo um indivíduo totalmente descaracterizado do meio social (como o é o palhaço) e, ainda assim, aceito como um integrante que tem o direito de fala, ele pode, então, dizer livremente aquilo que pensa. Dito em outras palavras, e com uma ressalva importante, uma vez sob as vestes do palhaço, ele será interpretado socialmente de um modo que compreendam a fala do palhaço como descomprometida, sem responsabilidades e sem necessariamente ser carregada de um valor moral válido.

Todavia, é importante salientar que, apesar desse lugar de fala, a liberdade de se expressar não é de todo real, sobretudo se considerar que sua fala não é em si – perante o olhar alheio – uma fala, mas uma forma de entretenimento, do qual se espera o potencial de realizar prazeres – um prazer que parece residir sempre em que o contempla. Assim, embora se queira dizer o que pensa, esse ato, em si, não é recebido pela sociedade como um protesto – logo, a liberdade de se manifestar para se libertar não necessariamente existe junto da liberdade de falar. Isso,a menos que se ocorra o que o filme brilhantemente elucida: uma atuação em partes figurativa, mas com impactos literais.

Arthur caído em um beco, depois de ser espancado. Créditos da imagem: aqui.

Assim, de uma maneira muito nítida, Coringa traz à luz um personagem que dialoga constantemente com suas crises existenciais, com suas dores e seus sofrimentos. E embora Arthur trabalhe como palhaço, vê-se que ele não tem sucesso em sua profissão. Logo de início, cenas fortes mostram o personagem posto como um alvo de zombaria, que sofre agressão e perseguição. Desde então, a trama começa a desenrolar-se suscitando cada vez mais características de Arthur que, na somatória do longa metragem revelam um indivíduo em processo de interiorização.

Tal processo apresenta ao público um sujeito que passa a pensar por uma outra construção imagética, que enxerga a vida e a sociedade como um conjunto ambíguo, o qual ao mesmo tempo que lhe serve de lugar físico também lhe é totalmente estranho, fazendo uma reflexão inversa da existência: o seu mundo é uma existência ao mesmo tempo que é um não-existir. Lançando mão de uma interpretação Gestaltista, vale dizer que o personagem revelado no final do filme é muito maior que todas as suas etapas de construção; em outras palavras, “o todo é maior que a soma das partes”. Além disso, seria ingênuo acreditar que o filme fala de um personagem, quando na verdade ele fala de muitos – quiçá de mim, quiçá de você.

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Considerando a sociedade e a família como produtoras e mantenedoras de neuroses (como de fato acredito que aconteça), cada uma à sua maneira, mas ambas intensamente, nota-se um produto dessas neuroses na forma do personagem. Se outrora a metáfora eleita foi a personificação do palhaço, agora é o próprio Arthur que serve de metáfora para a sociedade Norte Americana (mas lanço o palpite seguro de que não somente a Norte Americana, mas a ocidental como um todo).

O filme traz recortes de um uma cidade melancólica, dramática, simbolicamente carregada de neuroses e de sofrimentos; um ambiente atordoado e pouco acolhedor no qual vive o personagem: um apartamento sombrio, iluminado por feixes de luz quente, na tentativa de fornecer um abrigo simbólico; vê-se ainda que todo o entorno está sempre acordado, uma cidade que não dorme, ruas que sempre estão movimentadas, e que sempre guardam algum tipo de violência: seja um violência física ou uma violência simbólica, esta assalta a possibilidade de um descanso físico e mental. Daí, desse ambiente [despropositadamente] construído para oprimir (mas mantido fortemente nesse caminho), ou arquitetado inconscientemente para produzir neurose sobre sujeitos alienados e angustiados, sustentado coletivamente (mas sem ninguém precisar se dar conta disso) para manter em seus lugares os potenciais desvios de personalidade e de existência, mostra-se na cena aquele que certamente fala por muitos, um personagem representativo, logo, representante. Dentro de um sistema que sustenta a opressão e o sofrimento os desvios e as revoluções são eventos esperados; o sistema está preparado inclusive para isso.

Arthur, então, representa a busca pelo saber, a qual marca a existência de todo ser humano. Em alguns momentos, pode-se dizer assim, episódios chocantes, ou marcantes, provocam rachaduras no invólucro construído sobre o sujeito sujeitado. Estas rachaduras, a depender de suas proporções, podem permitir ou que vaze o conteúdo interno e este atinja o externo, ou que do exterior algum tipo de feixe luminoso acenda o conteúdo interno de forma a permitir o sujeito enxergar-se no seu tempo e no seu espaço. Pode acontecer de ambas as formas ocorrerem num mesmo sujeito, concomitantemente; e, ao que parece, foi o que houve com Arthur. Por exemplo, ao ver-se em uma apresentação de Stand Up, ele nota que embora seja a sua intenção provocar o riso na platéia [e isso de fato acontece], o que de fato se mostra é que a plateia ri não do conteúdo da piada, mas do corpo no qual ela foi produzida. É como se Arthur percebesse um deslocamento na sua maneira de enxergar; em vez de sentir o reconhecimento da sua fala como aquilo que chamou a atenção do público, ele se percebe não o construto do riso, mas o próprio objeto que produz toda a zombaria. A partir de então, com um modo de se enxergar ao ambiente e a si cada vez mais introspectivo e desprovido de uma moralidade outrora controladora, ele começa uma busca por saciar-se em seu autoconhecimento. Novamente, é como se ele iniciasse o processo de busca pela realização/satisfação de seu próprio gozo, ou, para não me comprometer, talvez ele está tentando dar vazão às suas angústias e saber de suas origens. Em suma, nota-se uma tentativa de descobrimento. Mas que aqui não deve ser romantizada.

Crédito da imagem: aqui.

Olhar para dentro de si não é necessariamente equivalente a se tornar um ser humano “normal”, que se comportará à mira de um arquétipo, ou que sirva de modelo divino. Olhar para si pode ser como olhar para um abismo, para um espelho que reflita o que está por trás de sua máscara. E como quase ninguém está preparade para essa reflexão, costuma-se dizer que o autoconhecimento é sinônimo de tornar-se melhor, que é atingir a tal “essência humana”. Mas, cá entre nós, essa essência foi construída antes do nosso nascimento, e mantida para sustentar uma ordem social que nos encaminha pelo corredor estreito da moralidade. O autoconhecimento como é propagado na pós modernidade, de modo otimista, pode ser nada além de uma invenção, uma mentira, um ópio.

Nesse processo de existir num mundo normativo e normalizante, o Arthur enfrenta os preconceitos também por suas características biológicas. Esse é o caso do riso involuntário, que, segundo Francisco Javier López, coordenador do grupo de estudo de Epilepsia da Sociedade Espanhola de Neurologia (SEN), pode ser algo que “costuma ocorrer mais em pacientes que estão começando a sofrer os sintomas de uma demência. O riso inapropriado seria uma reação à causa inicial de uma deterioração cognitiva, como o Parkinson, a esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou outras doenças neurodegenerativas em que há afetação do bulbo”. Sugerindo, portanto, que Arthur sofre de uma epilepsia gelástica. Além disso, a percepção de que se está num mundo no qual poucas pessoas são capazes de entendê-lo e que, para viver, é preciso se recriar, Arthur começa a produzir imagens e contextos em sua mente, como num processo alucinatório – tal quando ele cria uma parceira romântica, que vive em seu apartamento; enquanto no caso da sensação de invisibilidade, ele chega a dizer à sua terapeuta que ela não o escuta, e que ninguém o escuta. Você já se sentiu assim alguma vez? Falando, falando e falando… mas ninguém parece te escutar. Você também já passou por isso?

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A partir desse conjunto de autoentendimento, Arthur começa a julgar exequível aquilo que sua mente produz. Passa-se, então, a realizar de imediato os desejos que lhe ocorrem bem como suas pulsões que, num indivíduo amparado por um superego “ativo” e devidamente moralizado, não seria colocadas sequer no campo das possibilidades. Nesse ponto, quando por exemplo ele mata a tiro três homens no metrô sem que seja seguido pela sensação de culpa, ou quando mata um de seus companheiros de trabalho de modo brutal, mas sente-se aparentemente aliviado, fica evidente que o modo como os pensamentos do personagem são produzidos e processados não são mais codificados pela moralidade vigente. E às vezes penso se esse não seria o desejo mais subterrâneo de cada pessoa existente nesse mundo; mas que isso é duramente barrado, interrompido e, geralmente de modo violento, proibido de ser sequer cogitado.

Seria possível [ou até razoável] dizer que Arthur perdeu o medo constituinte da socialização, da alienação, aquele mesmo que molda e direciona os corpos em uma  sociedade de controle? Ou ele teria esse medo, no entanto não se perceberia medroso? Relembrando as palavras de Theodor W. Adorno, o supereu, a instância da consciência moral, não apenas coloca perante os olhos do indivíduo o que é proscrito socialmente como o mal em si, mas também mescla irracionalmente o medo arcaico de aniquilação física com o medo muito posterior de não pertencer de não mais pertencer ao conjunto social, que abraça os seres humanos em vez da natureza. Este medo social, alimentado por fontes atávicas e repetidamente bastante exagerado, mas que novamente pode a todo momento se transformar em medo real, acumulou uma força tal que já deveria ser um herói moral quem se livra dele, mesmo quando discerne seu caráter delirante”.

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Assim, os movimentos do Coringa são feitos a partir outros algoritmos, direcionados a outros propósitos que não necessariamente o de se encaixar na sociedade, mas talvez de separar-se dela. Dessa forma, a análise do filme permite compreender em partes os efeitos de uma construção subjetiva cheia de lacunas, que irrompe na liberação de pulsões individuais que buscam sua realização sem considerar necessariamente o que se passa em volta. Esse clímax é atingido quando Arthur assassina a tiro o apresentador de um programa de TV, o mesmo apresentador do qual ele foi um admirador, mas que se sentiu usado quando foi zombado. Assim, entender o filme Coringa é também entender parte do processo de assujeitamento e de construção sociopsicológica aos quais todas as pessoas estão submetidas – mas que os caminhos percorridos pelos sujeitos sofrerá alterações e intervenções ao longo do seu desenvolvimento.

Crédito da imagem: aqui.

Umas perguntas básicas para esse meio de texto que eu te faço é: você realmente acredita que suas manifestações são manifestações revolucionárias? Quando você [e serve para mim também] comenta em uma publicação; quando coloca a sua opinião em um texto de Blog; quando se manifesta contra o sistema opressor que exacerba a desigualdade social tal como se fosse um projeto político; quando você se diz contra a violência e, na somatória, ousa chamar-se de um ser em desconstrução; quando de tudo isso, você realmente acredita que está revolucionando? E se tudo isso estiver dentro das ações esperadas pelo sistema que você combate? Muito além disso, e se essas práticas “revoltosas” forem, inclusive, necessárias para que um conjunto social exista?

Parece otimista demais acreditar que somos liberados para protestar com toda a nossa autonomia. Ora, isso é ingênuo. Se fôssemos Coringas nossas ações não teriam os grilhões da moralidade; não seríamos a maioria cristã – presas fáceis de uma moralização que incute na mente de centenas de milhares de fiéis a ideia de que são livres; se Coringas fôssemos, certamente que não estaríamos onde e como estamos. Não compraríamos à prazo um projeto que nos modela, e ainda pagamos por isso com sorriso no rosto! Um falso sorriso em boas das vezes.

“Faça uma cara feliz”. Crédito da imagem: aqui

Numa sociedade cujo projeto maior é vender a “Felicidade Plena” como o principal objetivo de vida, corre-se o risco de vendermos nossa imagem somente para não sermos excluídos do grande grupo chamado: Pessoas Felizes.

Com isso ocorre a grande exposição nos meios de comunicação. Mas não acho que se expor demais seja sinônimo de mostrar-se o tempo todo em todos lugares – ou não apenas isso. Neste caso, a exposição é da capa, da cobertura imaginada, fantasiada, da esperança e do grito por uma aceitação. Ainda, pode acontecer de pensarem que estão expondo demais suas “conquistas”, seus sonhos, e histórias de sucesso. Mais uma vez: não acho que seja essa a exposição que mereça a nossa atenção imediata.

Expor-se demais pode ser um mecanismo de quem sofre, de quem pede ajuda e, na impossibilidade instrumental subjetiva de se compreender, precisa mostrar de si para o mundo na esperança outra de que ao ser notado/a seja, então, socorrido/a. E é a essa exposição desesperada que me refiro.

Eis a questão: como que, num mundo de “felicidade acima de tudo” as pessoas darão atenção aos infelizes? Ainda, como se perceberão infelizes se suas exposições mimetizam, ainda que sem sucesso real, a cobiçada imagem de “felicidade”? Ao expor suas facetas sempre “positivas”, risonhas e inebriantes, as pessoas estão expondo suas fragilidades. E as expõem num mundo de cegos e surdos; verdadeiros sandeus em busca de prazer.

A “Felicidade plena” é um Projeto Social de opressão, de segregação, de desigualdade, e de injúrias. Nesse mecanismo complexo, um grupo só pode ser “feliz” à custa do outro. E vale dizer que se você vende a sua mão de obra, o seu tempo e sua imagem, certamente você está no grupo dos imitadores da felicidade plena, jamais naquele dos que a “projetam”. Você não é feliz plenamente. Você é uma fraude que deu certo, pois se convenceu de que precisa ser feliz o tempo todo. Você é um parafuso na máquina que gira o mundo da ganância e da aparência.

E as pessoas se expõem dessa maneira porque, segundo esse Projeto, quem não é feliz só pode ser infeliz. Mas quem disse que devemos buscar pela felicidade o tempo inteiro? Ou melhor, o que de fato é a felicidade e onde ela está?

[Texto publicado no meu perfil, no Instagram.]

Você já parou para pensar que parte da nossa luta diária contra o capitalismo alimenta as redes sociais que dão forma ao próprio sistema combatido? Mas a ideia de que temos a liberdade de expressão nos coloca ali, como seres que acreditam estarem sendo ouvidos e que suas palavras são de fato entendidas como importantes. Nossa máscara da felicidade é colocada todos os dias em nossas faces porque, sem elas, somos estranhos; ainda podemos ser rejeitados. E o Homo sapiens teme a rejeição de tal modo ao ponto de precisar de um amparo integral de um amigo imaginário que mora nas estrelas. Romper com a felicidade imposta é romper com o que esperam de você. E, se nem isso você pode fazer, você ainda está na gaiola transparente. E talvez estejamos dividindo o mesmo poleiro.

Em um cenário que apresenta mecanismos capazes de – num conjunto complexo de ações e poder – modelar pensamentos, comportamentos e ideias, qualquer prenúncio de liberdade esconde uma potencial armadilha. Se de fato existisse uma liberdade, ela seria no mínimo sobre a ilusão de ser livre. Mas, sinto muito, nem para isso se presta o desejo de não estar preso.

É impossível ser livre dentro de uma série de prisões como é a nossa humanidade. Somos presos, em primeira instância, ao desejo, depois condenados à ânsia de realizá-los ou reprimi-los. Assim, não estar preso só pode dizer respeito a uma prisão em relação à outra; jamais será livre um alguém criado em jaulas conceituais – e todes somos criadxs assim. Todes!

Num estágio menos perceptível, nem por isso insignificante, somos “livres” para fazer aquilo que desejamos, mas não temos liberdade de escolher aquilo que queremos desejar. Por isso, liberdade é um conceito estranho, coberto por uma densa nuvem que torna tudo ainda menos compreensível – é existente por esta razão: ela torna desejável aquele destino social ao qual somos obrigados a seguir e do qual não podemos escapar. Assim, em um sistema que decide tudo por você antes mesmo do seu nascimento, qualquer anúncio de liberdade é uma fraude. E, certamente, é a maior de todas!

Fragmento do texto Uma estranha ideia de liberdade.

Nesse movimento caótico, mas nem tanto, não poderíamos deixar de reconhecer que, sim, nossas atitudes ainda podem fazer alguma diferença à nossa volta. Sim! Embora na maioria do tempo sejamos fantoches de nossas ilusões, também existe o movimento da identificação. Ou seja, na nossa incapacidade de sermos aqueles corpos e aquelas subjetividades que saem do invólucro moral dentro do qual nascemos, vemos em Coringas o nosso desejo reprimido, vemos nossa ânsia primeva, nossas angústias sendo liberadas em outro objeto. E às vezes basta um Coringa para nos “dizer” que dá para ser menos alienado, e mais alucinante. 

Identificamo-nos no/com o outro na medida em que tomamos consciência (ainda que pouco percebida) daquilo que nos falta; o espelho reflete uma imagem em cujo ângulo somos incapazes de enxergar. Ele nos mostra o que temos, mas que de outra maneira não poderíamos ver. Somos atraídos pela nossa carência não percebida, pelo senso aprisionado de quem gostaria de agir de outro modo mas que não tem sequer as habilidades necessária, e tampouco aprendeu que poderia ser diferente do que se é. Há que ter consciência para ter coragem. Mas quem é que sabe que se pode ser um indivíduo corajoso? Além disso, quem foi que disse que aprendemos o que é ter coragem? Mal sabemos o que é ser indivíduo.

Novamente, e partindo para o final do texto, tudo que existe hoje, tudo que vigora nas lutas “tradicionais”, nos jogos de revanches, são em si componentes que dão forma ao sistema opressor. Acostumamos nossas ideias e as acomodamos dentro de um aquário no qual toda opinião crítica se pretende revolucionária. Contudo, nunca houve uma mudança significativa na sociedade sem que que o castelo dos seres privilegiados fosse derrubado, abalado, incendiado.

Nenhum negro foi liberto porque suas manifestações foram acolhidas com compreensão; nenhuma mulher conquistou direitos sem gritar, apenas dialogando pacificamente com o patriarcado. Há quem diga que a paz é o melhor caminho para se atingir um objetivo. Ora, talvez o seja mesmo, caso a sua vida seja repleta de confortos e suas manifestações aconteçam sempre de dentro do seu apartamento na zona nobre, digitando em um Macbook e fotografando com seu iPhone de última geração enquanto você pede a sua comida por um aplicativo. Paz é o nome dado a utopia que almeja um céu perfeito, e que romantiza o sofrimento, sujeitando corpos a aceitarem seu posto e seu fardo somente para não causar intrigas. E a maior ferramenta disponível no mercado da alienação é a falsa ideia de que de fato estamos rodando a roda da história e modificando os fatos só porque compartilhamos algumas fotos subversivas e textos ousados. Mas, quando acaba a bateria dos nossos meios de comunicação, o que fazemos? Vamos dormir? O sistema está preparado para tudo isso!

Enfim, esse próprio texto talvez não sirva de nada na sociedade. Ao menos, ele ainda não derrubou nenhum império, não queimou o racismo, não abalou nenhuma estrutura e não Coringou nenhuma alma. Mas se tão somente você começar a pensar mais no que está fazendo, eu já digo que fico satisfeito.

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vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.