Uma palavra entre tantas outras que dividem a mesma cela na penitenciária dos termos esvaziados porém socialmente atuantes: a culpa. Apesar de ocupar um papel sociocultural muito importante na história da humanidade, tal palavra pode ser – e geralmente o é – desonesta e por vezes descabida. Dizer-se culpado/a é pretender encerrar uma constatação, aprisionando, assim, o que dela poderia derivar; culpabilizar é em grande parte coibir a possibilidade de um potencial vir a ser; também é querer dar por conhecida a causa, por entendido o efeito e todo o mais.

A culpa encerra dentro dela própria o ato de trabalhar-se um problema mais amplamente; ela elimina a necessidade lógica da mudança; a culpa encerra um debate e cria um abate – o abate do questionamento. Por isso, pensar na situação sem se “fechar um/a culpado/a” pode ajudar na compreensão da gênese estrutural de um problema. Quando se assume uma culpa, o próximo passo histórico é a construção da ideia de que o agente acusado deve necessariamente pagar pelos seus atos e que deve, assim, carregar sobre si todas as valências e ambivalências que o estar-culpado lhe exige e lhe impõe. Contudo, há que se tomar cuidado para não fazer da culpa a única maneira de problematizar uma questão.

Parece evidente que na incapacidade de resolver um problema de maneira mais construtiva e racional, ativamos a culpa sem sequer nos perguntarmos o que vem depois dessa atitude. Será que quando culpabilizamos – e quando fazemos só isso – estamos de fato combatendo algo ou alguém efetivamente? Encontrar a suposta causa culpada e nisso criar diferentes explicações de porque a culpa lhe é atribuída, resolve o que estamos problematizando? Quando culpamos os/as brancos/as pelo complexo de superioridade e pela desigualdade histórica disso resultante; quando culpamos a “estrutura social” por ser demasiadamente sexista e heteronormativa, avivando todos os seus demônios como a masculinidade tóxica, a homofobia e o feminicídio; quando culpamos os alemães pelo nazismo; e, não menos grave, quando culpabilizamos a dita “natureza humana” como a responsável por incontáveis e reincidentes mazelas cometidas entre gentes e gentes, nação e nação; quando fazemos tudo isso pela perspectiva da culpa, estamos atacando o problema em seu cerne? Responda para si! Ou estaríamos, na verdade, direcionando nossos olhares para o que está acontecendo, ou, na melhor das ingenuidades, estamos olhando apenas para o que aconteceu, sem necessariamente buscar uma solução pragmática do problema? Fechar uma discussão no aspecto da culpa pode ser, neste momento, uma maneira de esquecer o que está de fato envolvido na problemática e, quando não, encerrar aí uma luta legítima. Se achamos seus culpados e os punimos, tudo está resolvido?

Nesse sentido, raramente olha-se para o gérmen, para a semente, para a origem do problema. Em muitos sistemas políticos (e sem dúvidas inclui-se aqui o sistema religioso), salvaguardar um ser culpado permite simultaneamente não aprofundar-se nas causas de certas desordens; antes, o fenômeno da culpabilização compulsiva consegue reunir em torno de um objeto-alvo, ou de um bode expiatório, determinados aliados, como se se seguisse um certo algoritmo: encontre um objeto-alvo, culpe-o de supostos crimes ou desvios, transforme-o num inimigo em comum, espalhe o medo da ameaça para os arredores, recrute núcleos aliados e nascerá um novo motivo de guerra. Ainda arrisco dizer que boa parte da genealogia da moral humana encontra-se alicerçada da ideia de culpa.

Mas será que esse percurso nos trilhos da culpa é eficiente como um todo? Quando se encerra um caso destacando a culpabilização, não seria isso mais próximo de criar novos problemas sem haver resolvido o antigo? Depois de tantas acusações aos comportamentos humanos, quantos deles seguem a todo vapor sendo reproduzidos no cotidiano dos indivíduos que, por se sentirem na honra de encontrar e punir o agente culpado, acabam por acreditar que a perturbação de fato foi resolvida? Quantos de nós dormimos satisfeites quando um acusado é reconhecido culpado, desconhecendo [“ingenuamente”] que as questões que originaram aquela acusação se repetem nos recônditos sutis da humanidade? Enquanto não pensarmos pela perspectiva do quê causa o problema e enquanto não buscarmos por um meio efetivo de abordar questões (sem precisar pegar o bonde da culpa), seremos criaturas iludidas e donas de fantasias que fazem necessária a invenção do diabo como o responsável pelos males humanos, em vez de ver-se como um reprodutor/a de atitudes repudiáveis que precisam ser trabalhadas. Ou, num uso ainda mais comum, seguiremos dizendo que “a culpa é do Governo”, ou que “o ser humano foi sempre assim, não tem jeito” – e seguiremos culpando a História.

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vjppp

Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos

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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.