#23 – Perdão. No embalo da culpa e, mais precisamente, sustentando a necessidade de ser culpado e dar sentido ao condenado, surge o perdão. Para que o indivíduo culpado possa se sentir menos imundo e para que a parte vitimada tenha a oportunidade de gozar do direito de ao menos uma vez na vida ser exaltada, surge o perdão como um ato glorioso. Perdoar precisou ser elevado ao mais alto gesto de nobreza; tornou-se o símbolo máximo e imaculado da capacidade sensitiva e emocional do vulgo Humano; quem é capaz de perdoar recebe de toda a sociedade o amuleto da boa conduta, da libertação de seus pecados e de suas vergonhas. Perdoar é como tornar-se tão puro e brilhante quanto o diamante. Melhor que isso, só se você perdoar os seus inimigos. Ao menos é essa a versão mais vendida nas livrarias da ilusão existencial do Homo sapiens, chamada também de vida. Porém, o que poucos querem admitir é que o perdão, assim como quase tudo que alimenta a existência imagética humana, não passa de uma invenção, uma ilusão, um mecanismo de controle e de destacamento social – mas que é uma mentira. O perdão, como se pretende na realidade, não existe; na verdade, ele nem pode existir. Pois, por assim dizer, perdoar é eliminar do culpado a culpa; desfazer de dentro de si as mágoas, o ódio, limpar-se daquele rancor sulfúrico e dilacerador. Quem perdoa deve ser capaz de, mesmo que não esquecer, não mais lembrar. Quem perdoa deve ser capaz de domar sua própria memória, suas emoções e seus sentimentos ao ponto de apagar de si um episódio marcante e certamente doloroso – uma ação tão nobre não seria convocada para eventos triviais. Assim, supondo o perdão como uma ação que depende do perdoador, arrisco dizer que quem diz perdoar simplesmente mente; ou, na melhor das hipóteses, chama de perdão um episódio de amnésia. Ninguém consegue simplesmente, por pura e espontânea vontade, apagar de si um sentimento que fizesse necessário esse tal perdão somente ao dizer “eu te perdoo”. Ademais, essa comunidade que diz perdoar é geralmente a primeira a revogar o veredito quando o supostamente perdoado não retribui o ato. Pede-se perdão por coisas que não dependiam do controle para serem feitas (pois se dependiam, o perdão funciona como um suspensor da responsabilidade, logo nem é tão nobre assim); perdoa-se pecados; perdoa-se assassinatos, perdoa-se dívidas. Mas nada disso é perdão. Isso é apenas uma maneira rápida de sentir-se nobre por poder, mesmo diante do terror, erguer-se perante a comunidade e mostrar o quanto de bondade pode ser forjada em um ato. Quer saber mais? Se o perdão existisse, ele seria tão insignificante quanto passageiro: pois se perdoa apenas o instante; se na sequência se repete o ato, não cabe mais perdoar, mas punir. Perdoar uma vez já é difícil, imagine duas? “Errar é humano, permanecer no erro, fica difícil”, já dizia Inês. Que dirá perdoar duas vezes o mesmo erro? Assim, não deveria ser ousado dizer que inventaram o perdão apenas para que o perdoado se sinta favorecido e, por isso, subserviente. Se divindades te perdoam é porque te querem de joelhos, em prostração e servindo-lhes com sangue até o último minuto. Quer saber quem controla a sua vida? Saiba de quem você espera o perdão; de igual maneira, se quiser saber quem você deseja dominar, olhe para quem você direciona o seu perdão. Perdão é o nome dado à nossa sensação de grandeza; uma grandeza que revela o quanto somos carentes de hierarquia e ordem.
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Andreone T. Medrado
Devaneios Filosóficos
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NOTA: a imagem utilizada para compor a capa dessa publicação foi obtida aqui.